Relendo a profecia de Isaías, despertou-me a atenção o nome do primeiro filho do profeta, nascido depois de sua chamada para o ministério profético, Sear-Jasube, nome hebraico que significa “um resto voltará” (Is.7.3). Todo nome israelita se referia às circunstâncias em que que a criança nasceu ou a algo que os pais quisessem simbolizar. Nesse caso refere-se a um dos temas mais recorrentes na mensagem do profeta Isaías – o remanescente – ao qual ele faz pelo menos nove referências diretas (1.9,25;4.2-4;6.13;7.3;10.20-23;11.11-16;17.6;28.5,6;). O tema é também presente na mensagem dos demais profetas.
Já na ocasião de sua chamada, o profeta foi advertido por Deus de que a missão que lhe estava dando seria um trabalho insano; ele iria profetizar, mas o povo não daria atenção à sua mensagem. Isaías perguntou: “Até quando, Senhor?”. O Senhor respondeu que ele deveria pregar até que restasse apenas uma “santa semente”, um remanescente (Is.6.1-13). Em Isaías 10.21,22 ele diz: “Um resto voltará (no hebraico, Sear-Jasube); sim, um resto de Jacó voltará para o Deus Forte. Porque ainda que o seu povo, ó Israel, seja como a areia do mar, apenas um resto voltará (de novo Sear-Jasube).
Apesar de sua presunção como povo escolhido, Israel fracassou fragorosamente como nação teocrática, por isso o Senhor voltou-se para um remanescente fiel, e foi por meio deste que cumpriu seu plano de redenção da humanidade. Israel deixou de ser a “nação feliz, cujo Deus é o Senhor”, como desejou o salmista (Sl.33.12), para adorar outros deuses e praticar a injustiça. Mas entre os israelitas havia um restante fiel, em quem não havia falsidade (Jo.1.47), que permaneceria como seu povo no mundo. Desse restante fiel é que surgiria Jesus, o Salvador, o qual fundou um novo remanescente, como diz Paulo na Carta aos Romanos (cap.9).
Ao meditar sobre isso, fiz uma ligação imediata com o que grupos evangélicos fundamentalistas vêm defendendo no Brasil: uma “teocracia cristã” a ser operacionalizada pelo aparelhamento do Estado, por meio de intervenções políticas que transformem o país em uma “nação cristã”. Os mais radicais, chegam a propor a Bíblia como Constituição do país. Trata-se de uma irracionalidade, pois as teocracias são regimes políticos totalitários, intolerantes, discriminatórios e supremacistas. Basta dar uma olhada na lista de teocracias existentes hoje no mundo, além do Vaticano: Afeganistão, Arábia Saudita, Irã, Mauritânia e Paquistão, todos estados islâmicos. Alguns até adotam as leis islâmicas como constituição.
Tanto o Israel do passado como os povos que com ele interagiam eram nações teocráticas, em que o poder político era uma derivação natural da revelação divina e à luz dela devia ser exercido e julgado. Não havia separação entre religião e Estado. É grande o abismo sócio-político entre nós e os tempos bíblicos, e isso contamina nossa hermenêutica. E por isso continuamos a repetir “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. Como aprendemos com Isaías, a teocracia israelita não deu certo. Já no Novo Testamento, Jesus não propôs nenhum regime político, muito menos teocrático (Jo.18.36). Pelo contrário, preconizou a distinção entre fé e poder político, estabelecendo o princípio da separação entre a Igreja e o Estado (Mt.22.15-22).
Nos primeiros três séculos da Igreja sua separação do Estado estava claramente delineada, pela simples razão de que ela estava em oposição a César, sua fé não era a fé do Império Romano. Mas, à medida que as duas “fés” passaram a se identificar, o que era de Cristo passou a ser de César, e vice-versa. Roma tornou-se um “império cristão” e a igreja mergulhou lentamente num processo de promiscuidade abjeta com o poder temporal, durante a chamada “Idade das Trevas”, que terminou somente com a Reforma Protestante, cuja vertente principal, infelizmente, perpetuou o Estado teocrático. Redesenhou-se a Europa, que se dividiu em Estados católicos e protestantes.
O moderno princípio da separação entre Igreja e Estado surgiu no seio da Reforma Radical, que o derivou do conceito neotestamentário de fé e igreja. Fé é algo que se exerce por decisão pessoal, voluntária e conscientemente. Igreja é a comunidade dos regenerados, que a ela se unem voluntariamente, sob a única condição de professarem a fé em Cristo e serem batizados, com a finalidade de cultuar a Deus, amar e servir uns aos outros e exercer mútua edificação e disciplina. Ninguém se torna cristão por nascer de pais “cristãos” numa nação “cristã”, mas por aceitar livremente a Cristo e unir-se voluntariamente a uma igreja local. Não há nação cristã, mas povo cristão.
O Brasil é um estado democrático de direito, como a imensa maioria dos demais países, o que implica em pluralismo, diversidade cultural e racial, liberdades individuais, representação democrática por meio de eleições livres e direitos fundamentais à existência humana. Um Estado laico. Assim deve continuar a ser.
O povo cristão é o novo remanescente e assim deve permanecer (Rm.11.5).
Pr. Sylvio Macri