“Os inimigos de si mesmos”

Um balanço da igreja brasileira no contexto pós-eleições presidenciais de 2022

Nesses dias tão singulares, tensos, confusos e tristes que o nosso querido Brasil está vivendo, tenho acompanhado pelas redes sociais e mídia de massa, todo palavrório político, jurídico e popular nesse caldo de emoção, inquietação, indignação, frustração e perplexidade. É o Brasil pós-eleições polarizadas que serviram de pano de fundo para muita discórdia, divisão, ânimos acirrados, agressões e inimizades por todo lado.

Eram amigos até antes das eleições, hoje ofendem um ao outro, bloqueiam-se nos contados e não se falam mais. Era uma família em harmonia antes, agora é cada um no seu canto, sem paz dentro de casa, olhares de ódio e de desprezo entre todos. Antes da corrida às urnas cultuavam a Deus no mesmo templo aos domingos, estudavam a Palavra de Deus na mesma classe bíblica e pertenciam à mesma célula durante a semana; agora um nem mais crê na conversão do outro, julgam-se o tempo todo, e há quem pense, inclusive, que a religião do seu irmão é um fake news e que, na verdade, por ter o outro  votado em quem votou, com certeza vai para o inferno.

E tudo isso ainda no calor das primeiras semanas do novo governo, das expectativas, desconfianças, náuseas e repercussões internacionais que colocam nosso país no foco das reportagens sobre escândalos, desonestidade, mentiras, corrupção e dor, muita dor. A epidemia de discórdias, indiferenças, brigas e caos emocional e espiritual que vimos antes das eleições, mostrou-se bem mais devastadora do que a da COVID-19. A de agora exigirá anos, tavez décadas, para que seus efeitos e reverberações inexistam.

Os efeitos passam por amizades rompidas, casamentos abalados, famílias machucadas e até igrejas e denominações divididas. Laços desfeitos, alianças quebradas, pedaços ao chão. Na mesma lama de acusações, destemperos, impropérios, litígios e lágrimas, charfundam crentes e ímpios, santos e pérfidos, cristãos e satânicos, irmãos e bandidos. É o balanço sócio emocional do Brasil pós eleições presidenciais.

Talvez, sem se dar conta, a igreja brasileira, antes das eleições, acabou fazendo parte dos lados em confronto, foi para a arena e lutou com as mesmas armas, defendendo, cada lado da sua facção, as ideologias dos partidos e dos candidatos. A igreja (pessoas) foi para as ruas, vestiu camisetas, cantou, pulou e mostrou sua cor ideológica; fêz-se militante político partidária.

Se uma parte da igreja estava com a Direita e a outra parte estava com a Esquerda, quem exerceria, então, o ministério da reconciliação? Quem seria a voz da esperança? Quem estaria apontando para o Cristo? Onde estavam os inimigos do mundo e amigos de Deus? Quem daria o sinal que levaria o mundo a saber quem são os discípulos de Jesus? Parece que a perda maior não se deu nas urnas, tampouco nas ruas, menos ainda nos prédios e palácios de Brasilia. Pelo que vemos, a perda maior residiu numa igreja que emergiu das eleições, dividida, suja de lama, envergonhada, sofrida… Enfraquecida, portanto.

Lembrei-me de Karl Barth (1886-1968) quando disse que “a igreja existe para colocar no mundo um novo sinal que é radicalmente diferente da própria maneira do mundo, e que o contradiz de um modo que é cheio de promessa.” Se o teólogo suiço estava certo, onde está o sinal colocado pela igreja no Brasil no nosso tempo? Com tristeza constatamos que o mundo é que está colocando na igreja brasileira o sinal da discórdia, da ambição carnal, do vale tudo pelo poder. Em nome do que chama de pauta inegociável, como o ser contra o aborto, a legalização das drogas, a ideologia de gênero etc, a igreja deixou-se marcar pelo abandono da fé, sem a qual ninguém verá o Senhor; da esperança, que nos faz olhar para os montes, de onde nos vem o socorro; também do amor, que é o maior de todos. Confesso que nesses dias, pela primeira vez, comunguei do sentimento do escritor norte-americano Philip Yancey, assim expresso: “Nada perturba mais a minha fé do que a decepção que sinto com a igreja visível”.

Eu não sei o que vai acontecer no Brasil como resultado de tudo que tem vivido os últimos meses. Também não sei como as ideologias em destaque hoje, serão formuladas, ensinadas e divulgadas num futuro recente; mas no que se refere à igreja brasileira, sinto-a protagonizando o que diz o título em português de um texto do pastor australiano Rowland Chroucher, publicado no Brasil na década de 80, que uso como título também deste artigo: Os inimigos de si mesmos. A igreja de hoje me parece ser, ela mesma, a sua maior inimiga.

Infelizmente a igreja que sobrou após estas eleições no Brasil é uma igreja que atira em seus próprios membros, que mata seus líderes, humilha os seus profetas e expõe seus sacerdotes; ainda é uma igreja que rouba das gerações futuras o legado de um testemunho de fé em Deus e de anúncio do Evangelho da paz. Lamentavelmente nas imagens e nos discursos evangélicos que têm predominado hoje, o foco não está na oração, na comunhão, no testemunho de Cristo e no ministério da reconciliação, mas no ódio, na divisão, no abandono do outro, na resistência ao diálogo e no desprezo dos irmãos em Cristo.

Na verdade, eu nunca esperei nada, nem do Bolsonaro, nem do Lula; tampouco de qualquer partido político ou institução governamental; Nunca esperei nada dos tribunais, das assembléias, do Congresso e tudo o mais.

Eu espero sim por uma igreja marcada pela renúncia, pelo anúncio das boas novas; marcada também pelo cumprimento de sua missão profética de colocar no mundo o sinal da fé, da esperança e do amor; marcada ainda por uma presença santa, poderosa e cheia de autoridade, imitando Cristo o tempo todo; inimiga do mundo, por ser amiga de Deus.

A coragem que se faz necessária agora não é a de manifestar nas ruas, militar por uma ideologia e bater nos que pensam diferente, mas sim a de pedir perdão ao Deus soberano, ao irmão em Cristo, ao mundo a quem se negou ministrar a paz, a esperança, a fé e o amor; pedir perdão a si mesma por não ter perseverado na doutrina dos apóstolos, preferindo dar ouvidos aos que nunca decidiram obedecer ao Senhor.

Não há tempo a perder. Há muito por ser reconstruído.  Precisamos correr, apanhar os pedaços que ficaram pelo chão, verter as lágrimas do arrependimento, confessar o equívoco histórico, colocar o rosto no chão e, prostrados, olharmos novamente para Jesus, autor e consumador da nossa fé. Será que aquilo que nos une ainda é maior do que o que nos separa? Queira Deus que sim.

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