Gálatas 2.16-21: VIVENDO A GRAÇA

Pregado em 9.4.2000 – manhã

1. INTRODUÇÃO

Sem sucesso tentei, nos anos 70, fazer um mestrado em antropologia. Eu fui entrevistado por uma banca de três pesos pesados, entre os quais Roberto DaMatta. Uma de suas perguntas foi sobre a natureza da fé cristã. Ele me perguntou se havia alguma diferença entre um cristão que adora a Deus e um russo em reverência diante do túmulo de Lênine. Naquela época, o fundador do estado soviético ainda era um deus.
Eu não lembro bem o que respondi. Só me lembro que fui reprovado e nunca me esqueci da questão. Não vou tentar respondê-la agora, tanto porque a banca não está mais reunida quanto porque segui outros caminhos na carreira acadêmica.
Reformulo agora a pergunta, tornando-a um ponto-de-partida essencial para a compreensão e vivência de nossa fé: qual é a melhor palavra para definir o Evangelho?
Tomando os três termos fundamentais do apóstolo Paulo (1Co 13), poderíamos agora responder.

É a fé? Não, não é a fé, porque ela se encontra presente em todas as religiões, inclusive na superstição e no jogo de azar. É verdade que a fé no sentido bíblico é exclusivamente cristã, mas a palavra se perdeu no vazio do mercado dos bens simbólicos. Lênine pode até despertar fé, pelo que fez enquanto viveu, mas ele nunca infundiu graça à vida de alguém.

É o amor? Não, não é o amor, porque ele não é exclusivo dos cristãos. Ele existe até onde não há fé. Pode não ser o amor bíblico, mas é amor, amor que leva pessoas a se dedicar ao seu próximo como a si mesmo, embora não creia no Deus que propôs isto aos homens. Além disso, o que é mais trágico, nós não conseguimos vivê-lo. Allan Kardec pode, por seus ensinos, levar muitas pessoas à prática da benevolência, mas ele nunca infundiu graça à vida de uma pessoa sequer.

É a esperança? Não, não é a esperança, porque esta é o motor de todas as religiões e até de sistemas filosóficos anteriores e posteriores ao Cristianismo. Além disso, tendemos, mesmos os cristãos, a sustentar nossa esperança na capacidade humana de construir o futuro. Um mito pode dar sentido à vida de uma comunidade, mas jamais pode infundir graça a esta comunidade.

Parafraseando Phillip Yancey (Maravilhosa Graça, a quem sou devedor), podemos dizer que graça é o melhor vocábulo para definir a natureza do Cristianismo e do Evangelho. Afinal, nossa fé é uma resposta à graça; o amor de Deus para conosco é uma manifestação da Sua graça; nosso amor uns para com os outros é uma expressão da graça em nós, e a esperança cristã, que é uma esperança contra a esperança, é uma extensão da misericórdia de Deus, um sinônimo para a Sua graça.
Embora sabendo disto, nós, cristãos, temos dificuldade em viver a graça. A maioria dos sermões e dos textos bíblicos está mais para a lei do que para a graça.
Nossa dificuldade em entender a graça advém da nossa dificuldade em olhar a vida sob a perspectiva de Deus, que é radicalmente diferente da nossa. Ele vê com graça; nós vemos com justiça. Isto é verdade em nosso relacionamento com os outros e mesmo em nossa autocompreensão. Ele vê a sua Igreja com graça; nossos olhos são os da justiça. Ele me vê com graça; eu me julgo com justiça, até mesmo com severidade.
Nós não conseguimos viver fora de uma visão meritocrática das relações humanas. A graça de Deus é a abolição do mérito.

Afinal, qual foi o mérito de Noé, em quem Deus achou graça (Gn 6.8)?
Qual foi o mérito de Abraão para ser tornado pai de todos os que têm fé (Gl 3.7)?
Qual foi o mérito de Moisés para poder falar face a face, como se fala com um amigo(Ex 33.11)?
Qual foi o mérito de Davi para ser um homem segundo o coração de Deus (1Sm 13.14)?
Qual foi o mérito de Maria, para que Deus a contemplasse (Lc 1.47)?
Qual foi o mérito de Pedro para ser escolhido como líder principal da nascente Igreja contra a qual as portas do inferno jamais prevaleceriam (Mt 16.18).
Qual foi o mérito de Paulo para ser chamado de perseguidor a perseguido (1Tm 1.13)?.

Eles eram tão valiosos como cada um de nós é. No entanto, Deus lhes infundiu graça, como a infunde a nós.

2. SÍNTESE DA TEOLOGIA PAULINA DA GRAÇA

A carta de Paulo aos Gálatas traz alguns pensamentos sobre a graça, os quais nos ajudam na compreensão deste mistério de Deus para conosco. Vejamos alguns.

2.1. A graça de Deus não é responsiva, mas proativa. Ela nos chama em direção ao Doador da graça.

Paulo diz que aprouve (caiu bem a) ao Pai chamá-lo para se revelar (mostrar-se como é) a Ele (1.15). Nós somos responsivos, no sentido que, se alguém nos pede graça, somos capazes de oferecer, mas raramente de tomar a iniciativa.
O modelo da graça de Deus deve motivar nossas vidas. A certeza de que Ele vem ao nosso encontro deve inspirar nossas vidas. Vivamos esta verdade.

2.2. A graça de Deus se evidencia no fato que Ele nos resgatou da maldição da lei, por meio de Cristo. (3.13)

A lei é a afirmação da competência humana. Ela estabelece as regras e nós as seguimos. Ela, portanto, não exige conteúdo, mas apenas forma; não exige algo interior, mas apenas exterioridade. Ora, no relacionamento com as pessoas e com Deus, isto não funciona. A intenção é essencial.
Pior que isso: a lei exige coisa demais de nós e oferece quase nada. Lei não tem nada a ver com religião, que é uma relação homem-Deus e homem-homem. A lei parte de si mesma e termina em si mesma. Ela se torna um peso sobre nós, que não conseguimos seguir todas as suas regras.
Assim, na verdade, a lei é uma maldição, gerando disputa, auto-suficiência, insegurança, medo e culpa. A lei, pois, só tem uma “virtude”: mostrar a nossa incompetência, servindo de aio, aquele escravo encarregado da educação de uma criança e responsável por afastar dele qualquer estranho (3.24), para a graça.

2.3. A graça de Deus nos justifica (2.16)

Justificar não é tornar alguém justo, mas considerá-lo como justo. Um juiz humano, diante da culpa, condena, porque concluiu que o réu é culpado. Deus age diferentemente. Eis o que Deus faz conosco em Cristo e por Cristo: ele sabe que somos culpados, mas, assim mesmo, quando aceitamos seu oferecimento de justificação, passa a nos considera justos. A salvação, portanto, é a negação da lei.
Esta é uma idéia difícil de entendermos, porque a nossa mente é a mente da lei, porque mente decaída. Em nossa mente, toda culpa tem que ser expiada. Quando nós julgamos, não aprovamos, porque julgamos pela justiça. Deus, se nos julgasse pela Sua justiça, também nos condenaria (2.16, 3.11). Graças a Deus, é a Sua graça que nos julga e justifica. Vivamos esta verdade.

2.4. A graça nos faz um (3.28).

A graça nos iguala na condição de filhos de Deus (4.5). No plano da graça, somos iguais quanto à condição socioeconômica, quanto ao “nível de espiritualidade”, quanto à idade (não mais junior ou adulto). Todos temos o mesmo valor, já que todos éramos merecedores de condenação (6.3) e todos fomos alcançados. A graça zerou nosso velocímetro.

3. A VIDA PELA GRAÇA (3.19-21)

Disto sabendo, como posso viver a graça?
Viver pela graça demanda compreensão da sua graça e disposição a viver por ela.Eis o que Paulo ensina em 3.19-21.

3.1. Para viver a graça, preciso compreender a insuficiência da lei e a suficiência da graça.

Vive pela graça quem se rende à suficiência da graça.
A lei nos mostra a sua insuficiência e, por conseguinte, a suficiência da graça.
Não é fácil aceitarmos a insuficiência da lei, que significa reconhecer nossa própria insuficiência. Nós temos dificuldade em admitir que não valemos nada para a salvação. Um momento! Não afirma a Bíblia que somos imagem e semelhança de Deus. Sim, somos, mas imagem-semelhança destruída. A lei é filha desta construção implodida.
Por isto, Cristo destruiu a força da lei, ao nos justificar pelas regras da graça. Por isto, quando acreditamos em nós mesmos (e não a graça operando em nós), edificamos aquilo que Cristo destruiu (demoliu, como se demole um edifício).
Em outros termos, para viver a graça, eu preciso me despojar da idéia de que eu posso me salvar, podendo me apresentar como bom diante de Deus. Ele me que considera bom, embora eu não o seja. No outro extremo, eu preciso me despojar da idéia de que Deus não me pode salvar, porque não há nada de bom em mim. Não há, mas Ele considera que haja (eis o que importa).
De igual modo, para viver a graça, eu preciso crer na sua suficiência. Quando Paulo diz que podemos todas as coisas naquEle que nos fortalece (Fp 4.13), está ensinando que a nossa força não reside naquilo que podemos fazer, mas em confiar nAquele que pode fazer em nós, para nós e por nós. Não há poder em nossa oração; há poder nAquele que a ouve. Não há poder em nossa fé; há poder nAquele diante do qual nos rendemos pela fé.
Por ter a mente do Pai e confiar na Sua graça, o Filho pôde dizer: “Pai, se possível, passe de mim este cálice” (Mt 26.39). Por ter a mente do Filho, Paulo pôde aceitar: “A tua graça me basta” (2Co 12.9).

3.2. Para viver a graça, preciso me crucificar na cruz.

Vive pela graça quem se deixa matar na cruz, junto com Cristo.
A graça está disponível na cruz, por iniciativa de Deus. Eu preciso ir até lá e me crucificar também. Para que ela me alcance, não posso apenas contemplá-la; eu preciso ir até lá.
Crucificar-se é morrer para a lei, dispor-se a permitir que a velha natureza humana (esta velha natureza que impede que desfrutemos da graça) não tenha domínio sobre nós.
Crucificar-se na cruz é desistir de fazer aquilo que Deus já fez. A lei diz que devemos continuar insistindo, com uma intenção: culpar-nos. Crucificar-se é deixar lá toda a culpa. Fixemos isto: a principal virtude da graça é nos libertar da culpa.
Somos aquele filho da parábola do filho rebelde, como o da história bíblica, o qual Deus aceita. Embora nenhum de nós seja Deus, a disposição dEle em nos aceitar deve ser o nosso padrão.
Assim, no plano relacional, eu preciso me despojar da idéia de que posso viver segundo as regras da lei, tanto para mim quanto para os outros. Aliás, em relação ao outro, eu, que quero graça, preciso ser gracioso para com ele.

3.3. Para viver a graça, preciso permitir que Cristo viva em mim.

Quando me deixo crucificar na cruz com Cristo, eu me torno íntimo dEle. Eu me torno íntimo de Cristo, quando me esvazio de mim mesmo. Quando estou cheio de mim mesmo, eu sou íntimo de mim mesmo, eu adoro a mim mesmo.
No entanto, quando me identifico com Ele, permito que Ele viva por meu intermédio. Se Ele vive por mim, para que ficarei ansioso? Não é o meu desejo que vive; é o desejo dEle. Não são os meus valores que importam; são os dEle. Permitir que Cristo viva em mim significa identificar-me com o Cristo da cruz.
Há um raciocínio infeliz, feito pelos adversários da graça, nos seguintes termos: “Se Deus é graça, estamos livres para pecar”, como adverte o próprio apóstolo Paulo (5.13), pois que é antigo este raciocínio infeliz. Quem pensa assim não entendeu o que é a graça, este viver de Cristo em nós. Tais pessoas anulam a graça neles. Graça não é indulgência (perdão antecipado) para pecar. Uma vida cheia de graça não tem prazer em pecar.
Permitir que Cristo viva em mim significa deixar o meu “eu” lá, onde Cristo foi crucificado,  para ser controlado por Ele. O que aconteceu com o corpo de Cristo? Ele foi tirado da cruz, levado para o túmulo e ressuscitado. Jesus perdeu o controle sobre o seu corpo. Quando nos deixamos crucificar na cruz, perdemos o controle sobre nós mesmos. É Cristo, pelo seu Espírito Santo, que nos controla. O controle do Espírito Santo não é controle de lei, é controle de graça.

4. CONCLUSÃO

A graça nos leva a um novo tipo de relacionamento com Deus. A graça nos alcança, e tem início um novo tipo de espiritualidade, quando damos permissão para que Ele, por meio do Filho e do Espírito, viva em nós.
Quando Ele vive em nós, somos alcançados por um novo tipo de confiança nEle, marcada pelo descanso. Passamos a descansar no poder de Deus. Só quando Cristo vive em nós, a graça nos basta.
Como conseqüência deste viver de Cristo em nós, podemos adentrar a um novo tipo de relacionamento humano, baseado na graça

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