Membro de clã de Papua-Nova Guiné processa antropólogo dos Estados Unidos

Acabou repercutindo no Brasil um processo movido por um cidadão de Papua-Nova Guiné contra um cientista que teria inventado uma história a seu respeito.

Leia, a seguir, a reportagem da Folha de S. Paulo, publicada em 13.5.2009.

Papuano processa biólogo Jared Diamond

Michael Kigl/Stinkyjournalism.org
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O lavrador Isum Mandingo, supostamente paralisado

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Dois cidadãos de Papua-Nova Guiné moveram uma ação milionária por difamação contra a revista “The New Yorker” e o biólogo e escritor americano Jared Diamond. Autor do best-seller “Armas, Germes e Aço” e ganhador do Prêmio Pulitzer, Diamond retratou a ambos num artigo como protagonistas de uma guerra tribal que deixou 30 mortos. Eles dizem que o escritor inventou a história.
Alegando que suas vidas correm perigo depois que foram pintados como homicidas e estupradores por Diamond no artigo, publicado no ano passado, os dois homens pediram uma reparação de US$ 10 milhões num tribunal de Nova York.
O episódio vem sacudindo a comunidade antropológica desde que foi revelado, no último dia 21, pelo site de crítica de mídia StinkyJournalism (“Jornalismo Fedorento”).
Num artigo intitulado “O Colapso Factual de Jared Diamond”, a artista plástica Rhonda Roland Shearer, diretora do site, acusa Diamond de ter escrito um “conto de ficção”.
Segundo ela, as únicas coisas reais no texto do biólogo são os nomes dos personagens -e agora litigantes- Hup Daniel Wemp e Henep Isum Mandingo, e os dos clãs que supostamente teriam travado as batalhas, os handa e os ombal.
Diamond diz no texto que Wemp, membro do clã dos handa, disse ter declarado guerra aos ombal nos anos 1990. O motivo: Isum teria matado o tio de Wemp, que inadvertidamente deixara um porco destruir o seu quintal.
O artigo tratava de conflitos travados pela necessidade de “ficar quites” com os vizinhos, já que o tal tio morto estava destinado a liderar os handa.
Wemp teria não só financiado guerreiros como também “fornecido mulheres para seu conforto sexual”. Wemp só sossegou depois de seus homens terem acertado uma flecha na espinha de Isum, deixando-o preso a uma cadeira de rodas.
“Eu li as alegações de Diamond de que Henep Isum estava no meio da selva numa cadeira de rodas havia 11 anos e achei aquilo incrível”, disse Shearer à Folha, por telefone.
“Aí escrevi para ele perguntando se havia feito algum contato com ele [Isum]. Ele nunca respondeu. É estranho para um cientista não responder quando seus dados e seus métodos são questionados.”
Shearer sabe uma coisa ou outra sobre ciência e polêmicas. Diretora do Laboratório de Pesquisa de Arte e Ciência, em Nova York, ela é viúva de outro grande biólogo e divulgador de ciência, Stephen Jay Gould.
“Por coincidência, eu estava fazendo uma investigação sobre uma fraude de mídia em Papua-Nova Guiné, e conheci algumas pessoas [no país]. Aí o artigo de Diamond apareceu e, uma vez que eu tinha contatos lá, não foi difícil achar os personagens da história.”
Foi aí que o porco torceu o rabo. Para começo de conversa, não houve porco algum. De fato houve uma briga por motivo fútil -o sumiço de dois dólares- entre os handa e os ombal, no início dos anos 1990. Quatro pessoas morreram, não 30. Isum não esteve diretamente envolvido nela, nem nunca esteve numa cadeira de rodas. Wemp nem mesmo estava no local quando ela aconteceu. Segundo Shearer, Wemp nega ter dito a Diamond que ele protagonizara a “vendetta”.
Segundo Shearer, Diamond teria mantido conversas casuais com Wemp entre 2001 e 2002, quando estava fazendo um trabalho de campo em Papua. Wemp era seu motorista, e teria contado histórias “aleatórias” de conflito a Diamond. Este, diz Shearer, teria juntado tudo numa narrativa só, mantendo os nomes das pessoas e misturando informações.
O antropólogo Alex Golub, da Universidade do Havaí, que fez pesquisa em Papua, afirma no blog de antropologia Savage Minds que, independentemente de quem tenha razão, o episódio traz um tema central para a antropologia: o fato de que os “sujeitos de pesquisa” etnológica hoje estão muitas vezes a poucos cliques de distância dos textos escritos sobre eles. Na aldeia global de hoje, o conceito de “tribo isolada” é solapado.
E Golub pergunta a seus colegas: “Será que alguém resiste a esse grau de escrutínio?”
A Folha procurou Diamond e a “New Yorker” para comentários, mas não obteve resposta. A porta-voz da revista, Anna Cassanos, afirmou em abril à agência de notícias Associated Press: “Nós defendemos nossa história. Nós defendemos Jared Diamond”.

MEU COMENTÁRIO — O assunto está longe de ser resolvido e não hora ainda de fazer um juízo de valor. Pretendo acompanhar este assunto.
Enquanto isto, fico pensando no direito que as pessoas têm de escreverem sobre outras, mesmo que profissionalmente. Penso nos missionários que dão testemunhos (até com fotos). Até que ponto isto é ético? Até que ponto as pessoas não poderão ter acesso a suas histórias, num mundo sem fronteiras como o nosso?