Provérbios 9.9-10: CRER PARA ENTENDER OU ENTENDER PARA CRER (ampliado)

CRER PARA ENTENDER OU ENTENDER PARA CRER
Um estudo em Provérbios 9.9, 10


Instrui ao sábio, e ele se fará mais, sábio; ensina ao justo, e ele crescerá em entendimento.
O temor do Senhor é o princípio sabedoria; e o conhecimento do Santo é o entendimento.

(Provérbios 9.9-10)

Na era do conhecimento, com tanto informação disponível, pode parecer estranho um convite “ao temor ao Senhor”. Diante de tanto saber disponível, parece que a razão é tudo. Esta tensão não é de agora; é de sempre.
No passado, duas expressões foram cunhadas. Uma dizia que devemos crer para entender (Agostinho) e outra que precisamos entender para crer (Anselmo). A compreensão do livro de Provérbios, sobretudo o convite à sabedoria como temor a Deus, nos ajuda a continuarmos contemporâneos.
Por isto, neste estudo, vamos estudar o texto de Provérbios 9.9-10, considerando expressão por expressão.

TEMOR DO SENHOR
A expressão não significa o que parece: medo de Deus. Na religião cristã não existe lugar para o medo. O Deus cristão não é um Deus que precisa ser aplacado (acalmado) em sua ira. D´Ele só vem graça, beleza, amor, perfeição.
A expressão tem um sentido negativo e outro, positivo.
Comecemos pelo negativo:

A falta deste temor significa, negativamente:
1. uma atitude de excessiva confiança na capacidade humana. Esta postura pode alcançar até pessoas de fé, naquilo que pode levar a uma espécie de ateísmo prático (em que a pessoa afirma que crê em Deus, mas, na prática, vive como se não cresse).
2. uma atitude de independência de Deus, como se Ele nada tivesse com os seres humanos e sua história. Esta visão separa de tal modo o homem e Deus, como se não houvesse comunicação entre eles. Em termos filosóficos, pode tomar a forma de agnosticismo, a visão filosófica que não nega que Deus exista, mas afirma que Ele não intervém nos assuntos humanos.
3. uma atitude rebeldia contra de Deus, tido como desnecessário, superado e inadequado. Alguns cientistas começaram, no começo do século 21, um grande esforço para negar Deus. Até então este esforoco coube a alguns filósofos; agora, a alguns cientistas, como Richard Dawkins, por exemplo.

A presença deste temor significa, positivamente:
1. uma atitude de humildade diante de Deus, humildade que permite aprendizagem, pois que o verdadeiro sábio é humilde. “Humildade” é uma palavra estranha em nossa época. O ensino, formal e informal dominante, é que o humilde não vence na vida. No entanto, diante de tanto conhecimento disponível, como não ser humilde, como não reconhecer a ignorância (o não-saber)?
2. uma atitude de reverência diante de Deus, como Senhor de todas as coisas, inclusive do conhecimento. Pensando em termos de pesquisa cientifica, é o conhecimento do cientista que, em seu laboratório, lê a mente de Deus no tubo de ensaio, como escreve Francis Collins, o líder da pesquisa que decifrou o genoma humano.
3. uma atitude de aceitação da majestade de Deus, criador e sustentador de todas as coisas.
O mundo é visto como o teatro (lugar) da glória de Deus. Como não temer um Deus assim Senhor?
Por isto: não é um temor qualquer, mas temor do Senhor, temor que abre as portas para o conhecimento, temos que nos leva a aborrecer/detestar o mal (Pv 8.13).

PRINCÍPIO
Do temor do Senhor decorre a felicidade, como estuário natural. Este temor é o ponto de partida.
Assim como o conhecimento, esta felicidade é uma obra sempre em construção. Assemelha-se à obra educacional, que é sempre uma educação para a vida.
A educação é sempre inacabada. Quando se fala que não há mais propriamente formatura, não se faz frase de efeito. Se aquilo que se aprendeu colocou os fundamentos para uma aprendizagem que vai durar a vida inteira, então houve aprendizagem.
É por isto que o texto também diz que um sábio, quando instruído, será cada vez mais sábio. O saber não ocupa espaço, não importa o grau de estudo atual, não importa a idade. Um dos segredos da longevidade é a permanente atuação das funções mentais. Não há lugar em nosso mundo para os preguiçosos  mentais. Qual foi último livro que você leu? Numa recente pesquisa, muita gente indicou que só lê a Bíblia. Ler a Bíblia é fantástico, mas é insuficiente.
Aprender é para a vida toda..

SABEDORIA
As duas dimensões da vida (existencial e cognitiva) são inseparáveis e indispensáveis.
Há uma discrepância entre sabedoria de vida e de sabedoria científica. Há muitos sábios cientificamente falando que não sabem viver ou conviver. Há muitas pessoas com parcos conhecimentos científicos e filosóficos com uma imensa capacidade de ouvir e falar na hora certeza, enfim, de se relacionar.
O livro de Provérbios destaca a sabedoria de viver de modo justo. A prática da justiça é uma das maiores dificuldades de nosso tempo. O verdadeiro sábio é justo. A Bíblia contém os verdadeiros princípios de justiça.
Sabedoria de vida não guarde necessariamente uma correspondência com a idade cronológica de uma pessoa, embora devesse. Afinal, quem viveu mais teve mais oportunidade de  ver e rever posições, próprias e dos outros.

CONHECIMENTO DO SANTO
Conhecer o Santo, isto é, conhecer a Deus, é relacionar-se com Ele. Esta é a grande diferença da religião cristã: trata-se de uma religião relacional, com relações entre o temente a Deus e entre si os que O temem.
A Bíblia chama a Deus de Santo porque Ele é separado, isto é, totalmente outro, totalmente diferente de nós. Por mais que O representemos, Ele é irrepresentável.
Embora totalmente outro, Ele se dá a conhecer, isto é, ele se relaciona conosco, vindo ao nosso encontro e nos permitindo ir ao seu.
Chamar a Deus de Santo significa também comprometer-se com o Seu padrão de santidade, de pureza, bem ao contrário de uma vida de impiedade e maldade. Significa também voltar para Ele os olhos, a preocupação, a direção, o sentido (Is 17.7,8)

ENTENDIMENTO
Quando conhecemos a Deus, começamos nossa jornada de conhecimento.
Por isto, dizemos que não há oposição entre fé e ciência, entre espiritualidade e razão.
Fé e ciência são dois discursos (formas de ler o mundo) diferente porque erigidas em torno de objetos diferentes. Vivemos a vertigem da tecnologia, mas a fé pode acompanhar esta vertigem, feita de mudança após mudança.

A ciência
. é um discurso sobre o imanente (tangível), não lhe devendo interessar o transcendente. Há muitos anos um teólogo (Alan Richardson) cunhou uma expressão muito feliz: fé e ciência são como dois trilhos de uma linha de trem: elas não podem se encontrar, nem se afastar; se isto acontecer, o trem descarilará.
. tem um método próprio (experimento, verificabilidade, rigor documental, etc.). Uma pessoa pode agradecer a Deus por ter sido curada de uma enfermidade; sua experiência basta. No entanto, para fazer a mesma afirmação, um cientista precisa de uma série de procedimentos, que não são incrédulos, mas diferentes, em que tudo tem que ser documentado. Outro pesquisador do mesmo fato terá que chegar às mesmas conclusões.
. é o resultado da pesquisa e é necessariamente relativa. A verdade é a verdade hoje, com os recursos disponíveis. A ciência marcha por acúmulo, com cada descoberta se somando à anterior para formar um corpo de conhecimento sobre determinado assunto.
. preconiza que o que PODE ser feito DEVE ser feito. O conhecimento científico não é imoral; é amoral, no sentido que não pensa no uso deste mesmo conhecimento. Assim, se uma bomba X pode ser feita, ela deve ser feita, por ser uma conseqüência do conhecimento humano. Está uma questão complexa, mas a mentalidade científica e tecnológica é assim: se não, como explicar a bomba atômica, por exemplo?
. tem como uma de seus subprodutos o reducionismo cientificista, que subordina tudo à ciência. Nem todo o conhecimento científico é reducionista, mas é sua tendência.
. acaba exigindo uma espécie de fé em suas teorias. Como crer, por exemplo, na teoria do big-bang ou de que os dinossauros foram destruídos por causa de uma glaciação ou de um meteorito sem um pouco de fé?

A fé
. é um discurso sobre o transcendente (que toca o imanente). O crente fala de um Deus em que crê, Criador e Senhor. Este discurso vem da sua observação pessal e da sua experiência pessoal, que não pode ser discutidas. Esta fé faz Deus descer da transcendência (céu, espírito) para tocar a imência (terra, corpo). A fé faz o encontro do céu com a terra, como a escada do sonho de Jacó (Gênesis 28.12).
. decorre de um sentimento (atitude) de adesão/conversão. A fé é uma escolha.
. trata a verdade como imutável, porque vem de Deus; logo, é absoluta. No entanto, esta imutabilidade não alcança a interpretação, que pode falhar.
. visa tornar feliz o ser humano, como um instrumental de vida. Como escreveu Helmuth Thielicke, quando o homem encontra a Deus, ele se encontra a si mesmo. “Quando o homem procura a si mesmo, ele não se encontra”, pois “ele se encontra e se realiza somente quando se rende e perda sua vida em Deus”.
. tem a ver com moral porque visa ajudar o homem a viver melhor consigo mesmo, com Deus e com os outros homens. A vida é relacional e isto impõe decisões que afetam o próximo, logo essas decisões são éticas.
. deriva sua interpretação da Revelação (Bíblia). O cristão pensa, mas o seu pensamento gira em torno do pensamento de Deus, revelado em Sua Palavra. Ele é livre para pensar os que os outros pensam, mas decide pensar com Deus.
. pode ter como um de seus subprodutos o fundamentalismo, que é a absolutização da interpretação da Revelação. Repitamos: a verdade é absoluta, mas a interpretação é relativa.
. pode ter como um de seus extremos a pretensão de dar a última palavra sobre matérias científicas (como ocorreu no famoso caso de Galileu Galiei).

 Fé e Ciência são, em resumo:
. dois domínios (como razão e emoção). Ninguém vive só pela razão. Ninguém vive só pela emoção. O ser humano é uma unidade que pensa e sente. A separação é apenas de natureza didática, para ajudar a entender a natureza das coisas.
. duas retas paralelas, que não podem se encontrar
. dois trilhas de uma estrada de ferro (não podem se aproximar demais, nem se separar)

***
Como cristãos, devemos entender a verdade maior que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria e nos aplicar à sabedoria, tanto existencial como científica.
Como cristãos, devemos nos lembrar que o homem vale pelo que diz, diz pelo que pensa, pensa pelo que lê. Nunca podemos parar de ler, de crescer intelectualmente, de nos aplicar ao estudo.
Você, que deixou passar a oportunidade de completar a formação fundamental (primeiro e segundo graus ou segmentos), que tal voltar aos bancos escolares?
Você, que não sabe operar um computador, que tal entrar num cursinho e dominar a máquina? É muito mais fácil do que você imagina.
Você, que nunca teve condições de fazer uma faculdade, que tal entrar para uma agora?
Você, que nunca fez uma pós-graduação (lato sensu ou stricto sensu), que tal se tornar um mestre ou um doutor?
Todos os nossos conhecimentos devem ser colocados no altar de Deus para nos preparar para dar a razão da esperança que há em nós. E esta esperança tem que ser comunicada ao mundo na linguagem do mundo, no idioma da razão.

Crer para entender ou entender para crer são duas alternativas legítimas. Qual é o certo: Credo ut intelligam ou Intelligo ut credam? Depende de você. Deus lhe fala do jeito que você é. Se você é daqueles que querem tudo “preto no branco” à luz da razão, Deus é o sábio que conhece todas as equações. Se você é capaz de se abrir a Deus sem lhe fazer perguntas, Ele pode preencher o vazio do seu coração.
No entanto, não deixe que seu intelecto (com seus conhecimentos e suas verdades) o afaste de Deus. Seja uma “fera” no conhecimento, mas tenha temor de Deus. Sem Ele, seu conhecimento é cultura inútil, é saber sem sabor.
Por isto, quero lhe convidar à loucura da cruz, a que se refere o apóstolo Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios (1Coríntios 1.18,20-25). A cruz é loucura para os sábios sem Deus, mas sabedoria para os sábios com Deus.
A cruz de Cristo é loucura/sabedoria porque é o meio que Deus providenciou para que os homens fossem salvos. O conhecimento científico, tecnológico e filosófico não salva. O conhecimento de Deus (temor de Deus) salva.
A cruz de Cristo é loucura/sabedoria porque pressupõe o sangue de Cristo como a possibilidade para a redenção da humanidade. É loucura porque parece primitivismo. É sabedoria porque é certeza da providência de Deus.
A cruz de Cristo é loucura/sabedoria porque é o poder de Deus, contra o poder, o ridículo poder, do homem, diante do qual ela é derrota e vergonha. Ela é a vitória de Deus sobre o mal. Ela é nossa vitória sobre o mal.
A cruz de Cristo é loucura/sabedoria porque abre as portas para o verdadeiro conhecimento.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO

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