EKLESIA, 2 – OS PRIMEIROS CRISTÃOS E NÓS

"Areligião pura e sem mácula,

para com o nosso Deus e Pai, é esta:

visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e

a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo".

(Tiago 1.27)

 

O cristianismo teve seu início, no (provável) ano 30 da era cristã, na cidade de Jerusalém, onde os seguidores de Jesus se reuniam para esperar o cumprimento da promessa de que seriam empoderados para pregar a boa notícia da graça de Deus.

No mês (provável) de abril estavam reunidos alguns desses seguidores numa casa (hoje desconhecida) quando a promessa se cumpriu. A partir daí, começaram a anunciar que Jesus Cristo era o seu Senhor ("Kyrios Christos") e não o imperador romano. Eles esperavam que Jesus cumpriria logo a promessa de que voltaria ("parousia" — manifestação) à terra para levar para o céu todos os seus seguidores.

 

O SANGUE COMO SEMENTE

 

Foram logo perseguidos, acusados de diferentes erros: fanatismo (porque afirmavam que Jesus era Deus), imoralismo (porque rejeitavam a ideia do mérito e do sacrifício para a felicidade ou salvação), primitivismo (porque não viam a razão como o valor último da sociedade), ateísmo (porque oravam de olhas fechados e negavam a existência dos deuses), canibalismo (porque "comiam um corpo" quando celebravam a Ceia do Senhor), subversismo (porque Jesus propunha um reino que não era deste mundo, reino visto como oposto ao do César de Roma).

Tolerados pelos romanos, os judeus perseguiram Jesus e seus seguidores, cujo número crescia sem parar, devendo ter alcançado o número de 800 seguidores na cidade ainda na primeira década. [1]

Quando os judeus se rebelaram, o Império atacou (anos 66-70) com selvageria e destruiu e profanou a cidade santa e seu templo. Os que não morreram fugiram, entre eles os cristãos, que não eram vistos de modo distinto, embora não tivessem tomado parte da guerrilha contra Roma.

Por ocasião da diáspora da década de 70, o evangelho estava firme em Jerusalém e o êxodo em massa contribuiu para que o cristianismo deixasse de ser visto como uma seita judaica, para começar a ser católico, isto é, universal.

Ainda na primeira década (de 30), converteu-se um judeu-romano, nascido na (hoje) Turquia. Depois de alguns anos de preparo, este homem, Saulo de Tarso, muito bem preparado intelectualmente (poeta, orador, retórico, filósofo, teólogo) e excelente artesão (costureiro de tendas para uso em viagens e no comércio), viajou pelo menos 14 mil quilômetros a pé e de navio pelos mares Mediterrâneo e Egeu pela Ásia Menor (hoje Turquia), pela Grécia e pela Itália (e talvez Espanha). [2]

Apesar da oposição, tornando a verdadeira a frase segundo a qual o sangue dos cristãos é semente (Tertuliano), várias igrejas sugiram como fruto da pregação de Paulo de outros missionários, como Pedro, Felipe, Apolo, João, Barnabé, Timóteo, Lídia, Febe e tantos outros e outras.

 

A NATUREZA DA DIVERSIDADE

 

Ao longo das sete primeiras décadas, há uma diversidade de prática, de modo que é sempre melhor em "igrejas apostólicas" do que em "igreja apostólica". Assim mesmo, algumas experiências eram comuns.

 

1. As igrejas se reuniam nas madrugadas ou manhãs de domingo, em longos cultos, nos quais era celebrada ao final a Ceia do Senhor, algumas vezes como parte final de uma refeição comunitária ("agape", cf. 1Coríntios 11.21-22), com os alimentos sendo trazidos das casas das pessoas. [3]

A Ceia, portanto, além de repetir os conceitos essenciais em torno da fórmula eucarística de 1Coríntios 11.26 ("vocês anunciam a morte de Jesus que ele venha" — isto é: perdão para os pecados e promessa da volta de Cristo), visava fortalecer o senso de pertencimento à família de Deus.

 

2. As igrejas, sempre pequenas, se reuniam sobretudo em residências, mas também em escolas, sinagogas ou cavernas na floresta. Os templos (ou espaços dedicados exclusivamente ao culto), também pequenos no início, começaram a surgir a partir do século 3. [4]

Num contexto de restrição de liberdade, este é o único modelo possível de reunião. Ainda hoje, por exemplo, na China e em outros países fechados, as igrejas se reúnem em casas ou lugares ermos, aos quais só os integrantes têm acesso, por razão de segurança. Num contexto de liberdade e urbano, as igrejas podem ser pequenas ou grandes, desde que conservem a mensagem a pregar, a qual jamais muda. É uma ilusão pensar que as igrejas menores são melhores que as maiores, por haver nelas, por exemplo, comunhão e cuidado. Essas duas dimensões podem ser providas em grupos menores no interior das igrejas grandes. Num mundo complexo, há lugar para igrejas pequenas e para igrejas grandes.

 

3. O culto consistia de leitura do Antigo Testamento e das cartas apostólicas, exposição da leitura, orações e cânticos (especialmente salmos). O tema central do culto era Jesus Cristo. O apóstolo Paulo escreveu: "tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios" (1Coríntios 1.22-23). Uma das ênfases da pregação era a volta de Jesus.

O Novo Testamento registra vários cânticos, dos quais só as letras foram preservadas. Eis alguns deles, dentre outros, além do mais conhecido transcrito em Filipenses 2.5-11:

 

"Aquele que foi manifestado na carne

foi justificado em espírito,

contemplado por anjos,

pregado entre os gentios,

crido no mundo,

recebido na glória".

(1Timóteo 3.16)

 

"A boa confissão há de ser revelada

pelo bendito e único Soberano,

o Rei dos reis e Senhor dos senhores;

o único que possui imortalidade,

que habita em luz inacessível,

a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver.

A ele honra e poder eterno. Amém!"

(1Timóteo 6.15-16)

 

"Santo, Santo, Santo

é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso,

aquele que era, que é e que há de vir".

(Apocalipse 4.8)

 

"Tu és digno, Senhor e Deus nosso,

de receber a glória, a honra e o poder,

porque todas as coisas tu criaste,

sim, por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadas".

(Apocalipse 4.11)

 

Esta seleção deixa evidente que o centro do culto era a pregação, não a música. Os cânticos eram simples, sem instrumentos. Não havia grupos ou grupos musicais. O cântico era comunitário, ocupando pouco tempo. De novo, a forma de adorar deve ser vista como algo de natureza cultural. A igreja de hoje não deve ter cultos como os apostólicos, mas no mesmo sentimento daqueles.

As igrejas de hoje devem cuidar para que seus cultos não virem espetáculos.

 

4. A liderança de cada comunidade, não havendo qualquer autoridade geral (senão a local), era exercida por um ou mais presbíteros (ou bispos). Os oficiais da igreja eram, variando de lugar para lugar, os apóstolos (com responsabilidades sobre regiões), os profetas (que interpretavam a Palavra de Deus ou mesmo as revelações particulares), os evangelistas (que pregavam aos de fora), os pastores e os mestres (ou, talvez, pastores-mestres), os quais ensinavam (Efesios 4.10).

Conquanto o ideal fosse o governo congregacional, na prática algumas igrejas eram dirigidas por um presbitério (Atos 20.17-18), outras por um bispo (1Timóteo 3.2) e ainda outras por ambos. Para orientar esses líderes locais, buscava-se a orientação de um apóstolo, como Pedro ou Paulo. Em Jerusalém, inicialmente a liderança era exercida por três apóstolos: Tiago (o líder), Pedro e João. Desses líderes não era exigido o celibato. A tarefa deles era pastoral e teológica, não sacramental (sem, portanto, a prática de confissão de pecados diante deles, embora praticada diante de toda a congregação reunida).

Se a liderança era hierarquizada na igreja apostólica, não era sacerdotal. Os líderes (pastores, presbíteros ou bispos) não usurpavam o sacerdócio de Cristo. A liderança não era autoritária, porque se entendia que a autoridade sobre a igreja estava na Palavra de Deus.

 

5. A entrada para a igreja se dava por meio do batismo, ministrado por imersão a adultos. A única exigência era o arrependimento (Atos 8.36). A preparação teológica para o batismo (catecumenato) surgiu posteriormente, quando o cristianismo deixou de ser perseguido e muitas pessoas afluíam às igrejas, depois da sua constantinização no século 4.

A igreja hoje deve ser flexível quanto aos pré-requisitos formais para o batismo. Se, no início, as igrejas não exigiam preparo aos batizandos, não quer dizer que as de hoje não devam fazê-lo.

 

6. Sempre fundamentado na Palavra de Deus, o ensino era oferecido no interior das famílias (como o demonstra o caso de Timóteo, cf. 2Timóteo 1.5) e também nas reuniões públicas. O ensino era visto como parte essencial da missão deixada por Jesus. Nas igrejas do Novo Testamento, em que não  foram inventada ainda a Escola Dominical, havia um grupo de pessoas dedicadas ao ensino, as quais gozavam de respeito e autoridade, à luz do próprio ministério de Jesus, que foi basicamente um professor. A igreja antiga compreendeu que a tarefa de instrução lhe foi diretamente encarregada por Cristo. [5]

As igrejas de hoje precisam valorizar o ensino, para que haja aprendizagem da Palavra de Deus. A experiência da adoração não pode substituir a educação.

 

7. Desde cedo, os primeiros cristãos se preocuparam com os pobres em seu meio. Ainda em Jerusalém, os diáconos foram encarregados de cuidar deles, provendo-lhes em suas necessidades, particularmente as das viúvas (Atos 7). Sem dúvida, "a religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo" (Tiago 1.27).

Parte deste cuidado era exercido, em alguns lugares, por outras mulheres (1Timóteo 5.3).

Para serem fiéis ao ensino e a prática de Jesus, as igrejas devem efetivamente se importar com os pobres. Isto inclui uma ação com no campo dito político, território em que as decisões que afetam a todos são tomadas.

 

8. A graça não devia servir de pretexto para uma vida libertina (Gálatas 2.21). Um texto antigo, ligeiramente pós-testamentário (ano 120), é muito elucidativo:

 

"Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casa gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros.Toda pátria estrangeira é pátria deles, a cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põe a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem as leis estabelecidas, as com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e tem abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida".

 

CUIDADOS A EXERCER

 

Ausentes nas igrejas do Novo Testamento, as que vieram depois legaram algumas práticas, que não devem ser seguidas. Eis poucas delas, entre outras:

 

O SACERDOTALISMO, a crença que, na igreja, alguns são mais especiais, com suas orações sendo mais atendidas, deve ser negada. Ela volta sempre e precisa ser expulsa sempre.

 

O TEMPLOCENTRISMO. Os templos devem ser vistos apenas como lugares de culto, não como lugares sagrados. A vida do cristão não deve girar em torno do templo onde se reúne, mas em torno de Jesus. O templocentrismo sugere que, fora dele, tudo é permitido, como se nele tudo fosse sagrado. Santo é onde está o seguidor de Jesus. Se o lugar onde ele está não é sagrado, ele não é um seguidor de Jesus.

 

O CELESTIALISMO faz com que a vida seja desprezada, como se Jesus nos tivesse tirado do mundo, o que ele não fez. Nossa tarefa é tornar a vida das pessoas melhor, como sinalizadores do Reino de Deus, que Jesus inaugurou na terra e nos pediu para anunciar.

 

Essas práticas nos afastam de Jesus, de quem sempre perto devemos estar.

 

Israel Belo de Azevedo



[1]Os números de Atos se referem a moradores de Jerusalém e a peregrinos.

[3] A questão do sábado foi resolvido de modo harmonioso, num tempo em que não havia um dia de descanso. No contexto judeu (mesmo fora de Israel), o culto começava na noite de sábado para domingo (que já era domingo). No contexto greco-romano, começava no domingo bem cedo, buscando-se emular a hora da ressurreição de Jesus.

[4] O primeiro templo de que se tem notícia era uma casa descoberta em Dura Europos (Síria) e que funcionou como templo entre 233 e 256.

[5] BAILEY, J.W. The teacher in the early church. Disponível em www.jstor.org/stable/pdf/3141375.pdf?acceptTC=true.