SEMINÁRIOS DE TEOLOGIA, 4 – PREDESTINAÇÃO X LIVRE-ARBÍTRIO

Quando surge uma questão, seja qual for, nossa tendência objetiva é escolher um lado. A eleição de um lado por nós acaba por não admitir qualquer valor no outro lado. Depois de uma exposição que fiz numa igreja batista sobre predestinação e livre-arbítrio, levantaram-se duas pessoas. Eu apenas expus os dois sistemas, procurando conciliá-los. As duas pessoas, que eram da mesma igreja, chamaram-me herege; uma por reconhecer algum valor no arminianismo e a outra por realçar alguns valores do calvinismo. Uma terceira pessoa disse que era muito feliz por ser calvinista.[1]

 

Neste caso, a teologia se torna o campo para uma paixão, como se fosse um jogo de futebol, ao final do qual tem que haver um time vencedor, como se não fosse possível o empate. A paixão clubística exalta o próprio time e deprecia o outro. O apaixonado também acha que escolheu o seu clube preferido, coisa que sabemos ser rara, especialmente quando vemos uma criança vestida com a camisa do seu clube, ou melhor, com a camisa que lhe deram. Não é comum, quando visitamos um recém-nascido ainda no hospital, vermos na porta uma chuteirinha com as cores do clube do pai. Que escolha fez este menino?

O que cremos, portanto, não deve ser o resultado de uma paixão, mas de um exame livre; no caso, exame livre das Escrituras Sagradas. Ocorre que a maneira como lemos a Bíblia tem um grau de prévio condicionamento, que pode nos levar a ler o que queremos, o que nos remete à paixão por um time de futebol.

 

O sentimento da fé precisa vir acompanhado da disposição à reflexão. A Bíblia é sempre um convite à reflexão, com o uso de todas as faculdades e habilidades humanas de pensar e sistematizar o que se crê.

A faculdade da razão deve vir acompanhada da humildade. Embora cada questão teológica seja nova para nós, ela foi nova também para pessoas que vieram antes de nós. Precisamos conhecer o modo como estas pessoas pensaram as nossas questões, para que o nosso esforço seja enriquecido e não se proponha a dizer como novidade o que já foi dito.

 

1. UMA QUESTÃO NA HISTÓRIA DA FÉ

 

Esses cuidados nos remetem ao centro de uma questão que não vem do século XVI, mas de séculos antes.

Trata-se da questão da salvação dos homens. Ela é previamente determinada por Deus, com base em sua soberania, ou é ativada pelo exercício humano de sua liberdade?

 

Se é verdade que, no século XVI, a resposta exigiu fidelidade a uma das possibilidades, sob as penas da lei do Estado, também é certo que a tensão está presente na própria Bíblia. Se Paulo diz que a salvação é um dom da graça de Deus, que se recebe pela fé, para que ninguém se orgulhe de suas obras (Efésios 2.8-9), Tiago afirma que é morta a fé que não se faz acompanhar pelas obras (Tiago 2.17). Se João diz que amamos a Deus porque Ele nos amou primeiro (1João 4.11), ele mesmo diz que devemos permanecer fiéis até a morte e receber o prêmio do céu (Apocalipse 2.10).

 

A propósito, a perícope paulina mais completa sobre a doutrina da salvação lembra que, mortos em nossos pecados (Efésios 2.5), não podemos tomar qualquer iniciativa, como se fôssemos cadáveres num cemitério de ossos secos (Ezequiel 37), sobre os quais sopra de novo o hálito da vida. Se a salvação é um presente de Deus, qual o papel da fé? Deus entra com a graça e o homem responde com a fé? Nesse caso, a graça é claramente um dom, e a fé é o quê? Um dom também? Se a fé (para a salvação) é um dom, não é para todos, mas apenas para os escolhidos por Deus? Quem tem fé (para a salvação) pode perdê-la? As perguntas, hoje feitas, já foram feitas, o que lhes enche ainda mais de valor. Se já foram feitas, que respostas foram dadas? Quais serão as nossas?

 

A soteriologia (doutrina da salvação) começa com a antropologia (natureza do ser humano). No século V (obviamente depois de Cristo), o monge leigo irlandês Pelágio (350-423), preocupado com a imoralidade grassante no meio cristão, não aceitava a explicação de que o pecado é um destino universal da condição humana e propunha que “Deus fez o ser humano livre para escolher entre o bem e o mal, sendo o pecado um ato voluntário.” Ser salvo é, neste caso, uma escolha humana, perturbada pelo pecado. Para ele, "fazer o bem tornou-se difícil para nós apenas por causa do longo costume de pecar, que começa a nos infectar ainda em nossa infância". Com o passar dos anos, o pecado nos corrompe gradativamente, formando um vício e depois nos mantendo presos no que parece ser a força da própria natureza".[1]

Para ele, o ser humano continua dotado com a liberdade de escolher entre o bem e o mal. Embora o homem tenda a  pecar, ele age e escolhe viver no pecado não por causa de uma necessidade predeterminada, mas por causa de sua própria vontade.[2]

 

Contra ele polemizou o africano Agostinho (354-430), bispo em Hipona (hoje Annaba, na Argélia), o "Doutor da Graça". Para o filho de Mônica, o ser humano é totalmente depravado, por causa do pecado original (ou simplesmente queda).

 

"A humanidade toda seria tão feliz como eram os primeiros homens, quando nem as perturbações anímicas os inquietavam, nem os incômodos corporais lhes causavam mal, se não houvessem praticado o mal que transmitiram a seus descendentes, nem seus descendentes a iniquidade, merecedora de condenação".[3]Por isto, o livre-arbítrio é adequado para o mal, mas pode operar o bem "apenas se for ajudado pelo Bom Soberano".[4]

 

O catolicismo romano incorporou o pensamento de Agostinho, mas o fundiu com o do teólogo italiano Tomás de Aquino (1225-1274), que aceitava a ideia do pecado original, mas desenvolveu uma solução com fortes pendores humanistas, ao pensar a graça em três etapas.

 

Na primeira etapa, Deus infunde graça no ser humano ("infusio gratiae") e o capacita a fazer o bem, por meio da fé, que não é suficiente para a salvação por si só.

Depois, a fé é formada pela caridade ("fides caritate formata"), quando o livre-arbítrio é restaurado e o ser humano pode fazer boas obras, numa fé formada pela caridade.

Vem, então, no tomismo, o mérito de condigno ("meritum di condigno"), pela qual Deus concede da vida eterna com base nas boas obras, denominadas no otimismo como méritos do homem digno.

Predominou esta perspectiva, retomada pelo biblista e humanista holandês Erasmo de Roterdam (1466-1536), que ensina que o "livre arbítrio humano é apenas obscerecido pelo pecado, mas não é totalmente extinto".[5]

 

BARTH X BRUNNER

 

Então, o reformador alemão Martinho Lutero (1483-1546) teve uma experiência pessoal, segundo a qual a salvação se dá pela fé ("sola fide"). Esta visão renovou a teologia em outra direção radicalmente distinta.

Lutero fulmina a ideia do livre-arbítrio, em termos fortes:

 

. "Se existe realmente o “livre-arbítrio”, ele não parece ser capaz de ajudar os homens a atingirem a salvação, "porquanto os deixa sob a ira de Deus".

. "A conversão de qualquer pessoa acontece quando Deus vem até ela e vence-lhe a ignorância ao revelar-lhe a verdade do evangelho. Sem isso, ninguém jamais poderia ser salvo".

. "Ninguém tem a capacidade de voltar-se para Deus. Deus precisa tomar a iniciativa e revelar-se a eles".

. "O 'livre-arbítrio' só poderia ser uma realidade se o homem pudesse ser salvo mediante a observância da lei".

. "Aqueles que não têm fé não estão justificados; e aqueles que não estão justificados são pecadores, nos quais qualquer suposto “livre-arbítrio” só pode produzir o mal. Portanto, o 'livre-arbítrio' nada é senão um escravo do pecado, da morte, de Satanás. Tal 'liberdade', enfim, não é liberdade alguma".

. "Se podemos obter graça divina mediante o nosso 'livre-arbítrio', então não temos necessidade de Cristo. E, se temos a Cristo, não precisamos do 'livre-arbítrio' (p.35).

. "Um homem piedoso crê que Deus conhece de antemão e pré-ordena todas as coisas, e que nada acontece, senão pela sua soberana vontade".

. "É a eleição por Deus que estabelece a distinção entre os homens. Sem a eleição divina, todos estão livres apenas para desafiar a Deus".[6]

 

O conceito de predestinação em Lutero é diferente do que seria adotado por Calvino. Em seus últimos livros, o reformador de Wittenberg deixou clara a sua posição:

 

"Ouço por aí que, entre os nobres e as pessoas importantes, espalham-se declarações viciosas em relação à predestinação ou à presciência de Deus. Dizem eles: 'Se eu for predestinado, serei salvo, não importa se faço o bem ou o mal. Se eu não sou predestinado, serei condenado, independentemente de minhas obras'. Se as declarações são verdadeiras, como pensam, então a encarnação do Filho de Deus, seu sofrimento e ressurreição e tudo o que Ele fez para a salvação do mundo são completamente descartados". [7]

 

A questão se tornou central no protestantismo com a obra do francês João Calvino (1509-1564). Bem cedo, ele escreveu que a pregação do pacto da vida "nem sempre encontra a mesma recepção", uma diferença que "revela a maravilhosa profundidade do juízo divino". Por isso, "não há dúvida de que essa diversidade decorre da eterna decisão da eleição de Deus. Uma vez que é o resultado da vontade divina, essa salvação é oferecida gratuitamente a alguns, enquanto outros são impedidos de alcançá-la. Pela predestinação, Deus adota alguns para a esperança da vida e julga outros para a morte eterna". Em suas palavras, "chamamos de predestinação ao eterno decreto de Deus", pela qual "a vida eterna é preordenada por Deus para alguns e a perdição eterna para outros".[8]

O calvinismo, com sua perspectiva da dupla predestinação (para a salvação e para a perdição eternas), tornou-se hegemônico em parte do protestantismo.

Desde cedo, também, suscitou uma discordância, que apenas o fortaleceu. O arminianismo só seria amplamente aceito a partir do surgimento do metodismo (no século XVIII) e do pentecostalismo (no século XX).

 

Jacob Arminius (1560-1609) via a graça como "uma afeição gratuita pela qual Deus, tocado pelo amor, vai em direção a um pecador miserável e, em primeiro lugar, dá o seu Filho, 'para que todo aquele que nele crê… tenha a vida eterna', e, depois, Ele o justifica em Cristo Jesus e por causa dele, o adota, concedendo-lhe direito dos filhos, para a salvação".[9] Por isto, ele atribuía à graça divina "o início, a continuidade e a consumação de todo o bem, de tal forma que, sem a sua influência, um homem, mesmo já estando regenerado, não pode conceber, nem fazer bem algum, nem resistir a qualquer tentação do mal, sem esta graça emocionante e preventiva, que coopera com o homem".[10] Ele mesmo explica a sua discordância de Calvino: "Toda a controvérsia se reduz à solução desta questão: 'A graça de Deus é uma certa força irresistível?'' Para ele, "de acordo com as Escrituras, muitas pessoas resistem ao Espírito Santo e rejeitam a graça que lhes é oferecida".[11]

Armínio considerava repugnante a doutrina da predestinação nos termos calvinistas. Ele vê a graça como branda e se mesclando com a natureza do homem, "para não destruir dentro dele a liberdade da sua vontade, mas para lhe dar uma direção correta, para corrigir a sua depravação, e para permitir que o homem possua as suas próprias noções adequadas."[12]

 

Sobre a perda da salvação, ele entendia que "a perseverança dos santos é que as pessoas que foram enxertadas em Cristo, pela fé verdadeira, e assim têm se tornado participantes de seu precioso Espírito vivificador, dispõem de poderes suficientes [ou] forças para lutar contra Satanás, contra o pecado, contra o mundo e a sua própria carne, e para obter a vitória sobre esses inimigos, mas não sem a ajuda da graça do mesmo Espírito Santo". Cristo guarda os salvos, "não os deixando cair, desde que tenham se preparado para a batalha, implorando a sua ajuda, e não querendo vencer apenas por suas próprias forças".[13]

 

As distinções entre os pensamentos de Calvino e Armínio ficaram mais fortes nas penas dos seus sucessores. O protesto ("Remonstrance", em holandês) de alguns pastores e teólogos, na Holanda, contra o calvinismo fez surgir a controvérsia quinquarticular (referente ao cinco artigos), entre 1609 e 1619, após as mortes dos dois pensadores. Os arminianos formularam uma declaração de fé em cinco pontos, que acabaram condenados pelo chamado Sínodo de Dort, que teve 154 reuniões de teólogos. Os arminianos propunham:

 

1.               Deus elege condicionalmente os indivíduos de acordo com a fé previamente vista por ele. A graça é para todos os que aceitam, no exercício do seu livre-arbítrio. Deus elege os que creem.

2.               Cristo morreu pelos pecados de todos os homens. A graça é universal, o que torna a expiação uma obra universal (não particular) ou ilimitada.

3.               Ninguém tem poder de, por si mesmo, voltar-se para Deus sem a assistência da graça de Deus. É a graça preveniente (prévia) que capacita o homem para aceitar ou rejeitar a salvação oferecida por Deus na cruz.

4.               A graça de Deus pode ser resistida. Deus não ignora a resistência do homem à oferta da graça.

5.               É possível para um cristão perder sua salvação.

 

A resposta do calvinismo também foi formulada em pontos, formando o anagrama "tulip", em inglês:

 

TULIP

 

T –"Total depravity" (depravação total do ser humano, desde a queda de Adão);

U – "Unconditional election" (eleição incondicional, não dependente da resposta humana);

L – "Limited atonement" (expiação ou redenção limitada aos predestinados para a salvação, logo não alcançando os predestinados para a perdição);

I –"Irresistible grace" (a graça é irresistível para aqueles que foram eleitos para a salvação);

P – “Perseverance of saints" (perseverança dos santos ou impossibilidade de perda da salvação para os eleitos).

 

Desde então, as heranças se opõem e convivem, levando um teólogo batista recente a sugerir:

 

"Depois de 400 anos, o calvinismo e o arminianismo permanecem em um impasse. Os pontos fortes e fracos de ambos os sistemas estão bem documentados, com cada um dos seus proponentes vociferando a exclusividade do seu sistema. (…) Esses dois programas teológicos tiveram tempo suficiente para demonstrar sua superioridade sobre o outro e não conseguiram fazê-lo. Chegou, portanto, o tempo de olhar além deles em busca de um paradigma que dê conta dos dados bíblicos e teológicos. De fato, o impasse em si não se relaciona tanto com as características singulares de cada sistema, mas com o conjunto de pressuposições errôneas sobre as quais ambos estão construídos.”[14]

 

Precisamos superar essa tensão, como se tivéssemos que escolher entre uma e outra perspectiva. Nossa primeira tarefa é examinar as evidências bíblicas em torno da questão.

 

2. EXAMINANDO ALGUNS TEXTOS BÍBLICOS

 

Também nesta questão, deixemos a Bíblia falar. Da miríades de textos que tocam no tenso tema, selecionamos alguns:

 

1. Lemos que Deus endurece corações para não escutar seu chamado. Foi assim com o rei Zedequias de Judá (2Crônicas 36.13) e com o faraó do Egito. No profeta Isaías e no Evangelho de João (que cita o profeta), somos informados que Deus fez o mesmo com algumas pessoas, para que não cressem.

 

"Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados". (João 12.40 ARA; cf. Isaías 6.10)

 

No caso do faraó, a explicação para a dureza do coração do rei do Egito é repetida no livro de Êxodo, primeiramente como previsão, depois como descrição:

 

. "Disse o SENHOR a Moisés: – Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os milagres que te hei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo". (Êxodo 4.21 ARA, cf. Êxodo 7.3, 14.4, 14.17)

 

. "O SENHOR, porém, endureceu o coração de Faraó, e este não deixou ir os filhos de Israel". (Êxodo 10.20 ARA, cf. Êxodo 7.13, 7.22, 8.19, 8.32, 9.7, 9.12, 10.20, 10.27, 11,10 e 14.8).

 

Fica claro que, em alguns casos, Deus previamente determina o que algumas pessoas vão fazer, por causa do plano maior dele. Nos casos dos dois reis, fica também claro que Deus fortaleceu o endurecimento dos seus corações. Seus corações já eram duros, por livre e espontânea vontade, e Deus usou a obstinação deles, tornando-a mais firme. Eles foram responsáveis por suas decisões, que precederam a ação de Deus. Temos, pois, presentes nestes casos, ao mesmo tempo, a determinação divina prévia e uma determinação humana real. Os casos daqueles reis não devem ser universalizados, mas evidenciam que Deus realiza seus projetos, usando pessoas, que voluntariamente participam, fazendo o que é certo ou mesmo fazendo o que é errado.

 

Quanto aos texto de Isaías e João, em que Deus age para impedir a conversão, trata-se de algo específico para o povo de Israel. Tivera a oportunidade de se arrepender e não se arrependera: o cativeiro viria. Seu uso no Novo Testamento tem o mesmo contexto da incredulidade por parte dos judeus, agora no contexto do Messias. A leitura da perícope (João 12.37-43) mostra que eles rejeitaram conscientemente o Messias Jesus e seriam julgados e condenados na parousia, a menos que se arrependessem e cressessem, como fizeram alguns. Livremente, a maioria descreu e livremente a minoria creu.

 

2. Lemos em Deuteronômio 30.15-18 sobre as consequências das escolhas, pela voz de Moisés:

 

"Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição. Pois hoje lhes ordeno que amem o Senhor, o seu Deus, andem nos seus caminhos e guardem os seus mandamentos, decretos e ordenanças; então vocês terão vida e aumentarão em número, e o Senhor, o seu Deus, os abençoará na terra em que vocês estão entrando para dela tomar posse. Se, todavia, o seu coração se desviar e vocês não forem obedientes, e se deixarem levar, prostrando-se diante de outros deuses para adorá-los, eu hoje lhes declaro que, sem dúvida, vocês serão destruídos. Vocês não viverão muito tempo na terra em que vão entrar e da qual vão tomar posse, depois de atravessarem o Jordão".

 

O texto é um tributo ao livre-arbítrio. Quando lemos todo o sermão de Moisés, notamos que até mesmo o exílio poderia vir como consequência da desobediência, o que de fato, ocorreu. O povo errou e pagou o preço, apesar das profecias. Não há predeterminação alguma. Há decisões humanas e seus efeitos. Deus propõe o bom caminho. O povo seguirá por ele, se quiser. Não quis.

 

3. Lemos, em Jeremias 1.5, as seguintes palavras de Deus ao profeta:

 

"Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi; antes de você nascer, eu o separei e o designei profeta às nações". (Jeremias 1.5 NVI)

 

Assim como Paulo (Gálatas 1.15), Jeremias foi chamado antes mesmo de nascer para ser ministro de Deus. Para realizar seu projeto, Deus chama pessoas, algumas desde a eternidade, outras depois de eventos extraordinários, como a convocação de Isaías (Isaías 6) e a eleição de Matias por sorteio como sucessor de Judas (Atos 1.26). Ele, portanto, não tem um método único. A chamada de Deus pode ser respondida afirmativa ou negativamente. No caso de Jonas, a resposta foi dúbia. Assim mesmo, o propósito divino (a conversão dos ninivitas) se realizou.

 

Um ministro predestinado por Deus é uma possibilidade. Um ministro levantado em função da necessidade no momento é outra possibilidade. Num caso ou noutro, Deus sabe previamente o que lhe será respondido e o que terá que fazer para levar seu plano adiante. Em ambos os caso, o livre-arbítrio humano continua intocável. Deus chama e convoca, mas não impõe. Deus insiste e persiste (como com Moisés, Jeremias e Amós, por exemplo), mas não obriga. Ele encontrará outro que o sirva com prazer.

 

4. Lemos, no final de uma parábola, a afirmação por Jesus de que "muitos são chamados, mas poucos são escolhidos" (Mateus 22.14). A declaração é percebida por alguns como uma evidência para a predestinação. A leitura da história bíblica deixa clara a repreensão a uma pessoa que compareceu trajada indevidamente para uma festa. Seguindo a tradição do seu povo, registrada no livro apócrifo de IV Esdras, Jesus estava ensinando sobre a graça, que requer de nós comportamentos dignos dela, não relapsos ou libertinos. Diferentemente do que poderiam supor alguns predestinistas, Jesus não está afirmando que o reprovado o foi por não ter sido previamente escolhido por Deus para a salvação. Foi a atitude dele que demonstrou que não entendera o que era a graça, ao não valorizá-la. A parábola pode ser uma indicação de que nem todos os chamados aceitam o convite da salvação, pois escolheram a perdição.

 

5. Lemos em João 6.37 e 40 Jesus garantindo:

 

"Todo aquele que o Pai me der virá a mim, e quem vier a mim eu jamais rejeitarei. (…) A vontade de meu Pai é que todo aquele que olhar para o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia". (João 6.37 e 40 NVI)

 

Jesus fala da vontade geral de Deus, expressa também por Paulo (1Timóteo 2.4) e Pedro (2Pedro 3.9). O desejo do Criador é que todos os homens sejam salvos. Em João temos a condição para esta salvação: a fé em Jesus como Senhor. Impera o livre-arbítrio.

 

Há duas expressões que precisam ser pensadas. São duas promessas: virão a Jesus aqueles que o Pai lhe der, os quais serão aceitos pelo Filho. Quem são estes que o Pai dá a Jesus? São os predestinados para a salvação, salvação que não perderão jamais? Ensina o texto a predestinação, logo a redenção como sendo limitada aos salvos, e a perseverança dos salvos ao mesmo tempo?

Muitos caminham nesta direção e merecem respeito. Contudo, quando pomos luz sobre o debate travado por Jesus com os fariseus, notamos que ele os está advertindo por sua incredulidade, embora fizessem parte do povo escolhido para receber o Messias e apresentá-lo às nações. De onde se deveria de esperar fé, havia incredulidade. Eles queriam ser salvos por seus próprios méritos, não pela graça de Jesus. Mais adiante, a sequência é apresentada de outro modo:

 

"Todos os que ouvem o Pai e dele aprendem vêm a mim. (João 6.45b NVI)

 

Se é assim, Deus convida, todos os homens ouvem; alguns aprendem e vão a Jesus, que sempre os recebe. Nesta linha de raciocínio, respeitada a outra, o propósito do texto "não é apresentar a exclusão de certas pessoas da salvação por não terem sido escolhidas pelo Pai, mas salientar que do início ao fim, a vida eterna é um dom de Deus e não jaz sob humano controle. Uma pessoa que tenta obter a vida eterna do seu jeito, descobrir-se-á incapaz de ir a Jesus, porque isto não lhe foi garantido pelo Pai (João 6.65); de fato, ele está resistindo à direção do Pai".[15] O problema dos judeus do tempo de Jesus é que não ouviam o Pai; eles não liam as Escrituras. Nestes simples versos estão postos, com todas as letras, a predestinação e o livre-arbítrio. Temos dificuldades com elas, achando-as contraditórias, mas é assim que Deus age. No caso específico, Deus elegeu o povo de Israel para a salvação, escolheu-o para ministrar aos povos, ensinou-o a viver através de sua Palavra, mas Israel majoritariamente o rejeitou. No entanto, entre os de Israel, alguns iam a Jesus. Quem ia era salvo. Só é salvo quem vai a Jesus, o único caminho, ao qual se vai pela fé, sem a qual ninguém torna efetiva a predestinação.

 

6. Lemos em João 17.12 que Judas foi chamado de "filho da perdição" por Jesus:

 

"Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura". (João 17.12 ARA)

 

Tendo sido predestinado para trair, raciocinam alguns revisionistas e conspiracionistas, Judas deve ser visto como traído (por Jesus), não como traidor (de Jesus). Quem usa o argumento da predestinação de Judas para a perdição pressupõe que ele foi escolhido para trair. A Bíblia também informa que Satanás entrou nele (Lucas 22.3) e que Judas procurava apenas o momento mais oportuno para seu gesto. O traidor agiu premeditadamente, depois de ter cedido à tentação ou do dinheiro ou do poder. Sua consciência estava cativa da sua cobiça, não de uma determinação divina. Nenhuma pessoa que faz o mal pode atribuir a Deus o que faz. Deus não tenta a ninguém (Tiago 1.13).

 

7. Lemos em Atos 2.23-24 e 13.48 que Jesus foi entregue ao povo de Israel "pelo determinado desígnio e presciência de Deus, mas este povo o matou, "crucificando-o por mãos de iníquos", mas Deus o "ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto, não era possível fosse ele retido por ela". Quando a notícia da graça chegou aos não-judeus, eles, "ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna". (Atos 2.23-24 e 13.48 ARA)

 

A expressão "determinado desígnio" ("Determinado"  vem de οριζω > horizo e "desígnio" vem de βουλη > boule, propósito) nos põe no centro da história da salvação. Deus decidiu (determinou) salvar a humanidade, redimindo-a do pecado. A vinda do Messias era o ponto final desta história.

Esta "determinação" decorre de sua soberania, que aconteceria na história, à qual conhecia previamente.

 

"Presciência" vem de προγνωσις > prognosis. Presciência não é predeterminação, mas conhecimento prévio. Com base nesta presciência, Deus elegeu também os não-judeus "para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo" (1Pedro 1.2).

 

Eleição e presciência são palavras que devem estar sempre ligadas. O Deus soberano que elege é o mesmo Deus soberano que sabe todas as coisas de antemão.

A discussão sobre que ação vem em primeiro lugar só faz sentido na humana dimensão cronológica, à qual não retém Deus, para quem o tempo é diferente do nosso. Na eternidade, não há "antes" e "depois", apenas "durante".

Deus é, ao mesmo tempo, soberano para eleger e presciente para saber o que vai acontecer na história humana. Por isso, o bem e o mal que os homens farão são previamente conhecidos por Deus.

 

8. Lemos em Atos 4.27-28 que Deus escolheu ("ungiu", de χριω > chri, consagrar) os governantes "Herodes e Pôncio Pilatos", que agiram junto "com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a mão e o propósito" (βουλη > boule) do Senhor da história "predeterminaram" (Atos 4.27b-28 ARA).

O verbo para "predeterminar" é προοριζω > proorizo e aparece, ainda, em Romanos 8.29-30, 1Coríntios 23.7, Efésios 1.5 e 11.

De novo: Herodes e Pilatos foram obrigados a fazer o que fizeram para a cruz ser fincada no Gólgota? Suas escolhas não foram escolhas? Eles poderiam ter agido de um modo diferente?

Pedro está dizendo indiscutivelmente que Deus tem o controle da história. Aquela maldade toda cometida contra o Salvador do mundo não surpreendeu o Pai, que, nunca se surpreende, conhecedor de tudo o que vai acontecer. Como os irmãos de José do Egito, Herodes, Pilatos e todos os que participaram criminosamente da história final de Jesus na terra, acabaram se tornando agentes de Deus, embora estivessem contra ele, para que a redenção pudesse ser oferecida a todos os homens.

A natureza desta predeterminação é ampliada pelo apóstolo Paulo.

 

9. Lemos em 1Coríntios 2.7 que o Evangelho "é a sabedoria secreta de Deus, escondida dos seres humanos, a sabedoria que o próprio Deus, antes mesmo da criação do mundo, já havia escolhido para a nossa glória” (1 Coríntios 2.7 NTLH). Fica claro que aqui o tema do apóstolo é o plano da salvação. A sabedoria de Deus na cruz, argumenta retoricamente Paulo, deve ser aceita inclusive porque é anterior à sabedoria (filosofia) humana, sendo-lhe, pois, superior. A sabedoria providencia a salvação e também as condições para uma vida digna da graça de Deus, uma vez que em Cristo, "ele nos criou para que fizéssemos as boas obras que ele já havia preparado para nós" (Efésios 2.10 NTLH).

Uma vez salvos, temos condições de fazer obras realmente boas, na intenção e na prática. Assim, a primeira dádiva preparada de antemão (προετοιμαζω > proetoimaz) para nós foi a própria salvação. A segunda, foi um sentido de missão, pela realização das boas obras, a maior delas o anúncio do Evangelho a todos os povos. A prática das "boas obras" inclui socorrer o próximo, desde que seja uma demanda surgida no nosso processo de santificação.

 

10. Lemos em Efésios 1.11 que "todas as coisas são feitas de acordo com o plano e com a decisão de Deus. De acordo com a sua vontade e com aquilo que ele havia resolvido desde o princípio, Deus nos escolheu para sermos o seu povo, por meio da nossa união com Cristo" (NTLH).

Sim, "antes da criação do mundo, Deus já nos havia escolhido para sermos dele por meio da nossa união com Cristo, a fim de pertencermos somente a Deus e nos apresentarmos diante dele sem culpa". (Efésios 1.4). Em termos mais clássicos, fomos "predestinados (προοριζω > proorizo) segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade" (Efésios 1.11), vontade que nos escolheu (εκλεγομαι > eklegomai, escolher, selecionar) antes da fundação do mundo" (Efésios 1.4).

Deus "nos predestinou (προοριζω > proorizo) para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito (ευδοκια > eudokia, prazer, satisfação) de sua vontade" (θελημα > thelema)", é o que ainda lemos (Efésios 1:5). Atos 13.48 repercute a mesma teologia: "Quando os não judeus ouviram isso, ficaram muito alegres e começaram a dizer que a palavra do Senhor era boa. E creram todos os que tinham sido escolhidos (τασσω > tasso, designados) para ter a vida eterna" (Atos 13.48).

Com certeza, a salvação faz parte de um plano concebido em amor. A primeira ordem do plano foi a da criação, mas o homem falhou, ao escolher a desobediência, no exercício de seu livre-arbítrio contaminado pelo pecado. A segunda ordem foi a da salvação (ou redenção), infalível, porque realizado pelo próprio Filho de Deus. Deus planejou a comunhão. Como aconteceu por um pouco tempo, Deus reconfigurou seu plano (como se tivesse um GPS).

Desde o início o homem foi chamado para a comunhão. O homem foi feito (desenhado, destinado, predestinado, configurado) para a comunhão com o Pai, que se tornou possível na cruz, onde Cristo nos reconcilia.

A cruz faz parte do plano de Deus. Foi predeterminada por ele como o meio para a nossa salvação.

O apóstolo Paulo está falando para os salvos, que podem olhar para a sua história e ver como são amados por Deus. Podem inclusive, de tão amados que são, rejeitar esse amor.

Paulo acrescenta que a reconciliação é um dom de Deus por meio da graça, que nos vivifica. Deus tomou a iniciativa de nos reconciliar em Cristo. Estávamos mortos em nossos pecados (Efésios 2.5), mortos espiritualmente, mas não mortos fisicamente ainda, nem mortos emocionalmente ainda. Espiritualmente mortos, não tínhamos como tomar a iniciativa de buscar a Deus. É ele quem o faz. Como ainda temos vontade, podemos decidir aceitar ou recusar a oferta da graça.

 

Pensam alguns que, estando mortos, nada podíamos fazer para sermos salvos. Esquecem-se que essa morte era espiritual significando afastamento de Deus. A vontade continuava viva. A figura do vale dos ossos secos (Ezequiel 37) se aplica ao povo de Israel, conhecedora da Palavra de Deus e punido com o exílio por sua maldade. Não se aplica aos que não conhecem a Palavra de Deus, que passam a responder por seus atos a partir do momento em que ouvem o Evangelho, respondendo com um "sim" ou com um "não" ao convite.

Saber que somos "eleitos", "predestinados", "escolhidos", que estamos "em Cristo", nos coloca numa terceira ordem: a ordem da confiança. O principal objetivo do apóstolo Paulo com este texto é nos infundir confiança e mostrar que podemos viver na alegria completa prometida por Jesus. Não precisamos ter medo da perdição; fomos salvos. Não precisamos ter medo da condenação: fomos absolvidos.

Então, como cantou um poeta, "que alegria é crer em Cristo" (Hino 318 HCC).

 

11. Lemos em Romanos 8.28-31 que "sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto (προθεσις > prothesis, propósito, algo posto). Porque os que dantes conheceu (προγινοσκω > proginosko, ter conhecimento de antemão), também os predestinou (προοριζω > proorizo) para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou (καλεω > kaleo, chamar pelo nome); e aos que chamou, a esses também justificou (δικαιοω > dikaioo, declarar justo, absolver); e aos que justificou, a esses também glorificou (δοξαζω > doxazo, exaltar, conceder glória). Que diremos, pois, a estas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?" (Romanos 8. 28-31 ARC).

 

Este texto forma um par com Efésios 1 e também tem o fim de nos mostrar a razão da nossa esperança. Seu objetivo, no entanto, não tira dele seu sentido teológico, embora seu objetivo preliminar seja psicológico.

A perícope é bastante clara, firmando uma cronologia dos eventos salvíficos:

 

1. Deus nos conhece. Desde a eternidade, Deus nos conhece os passos, sabendo que decisões tomaremos.

2. Deus nos predestina. Vai começar a nossa história da salvação; somos predestinados para a alegria (ou glória). A iniciativa é sempre de Deus.

3. Deus nos chama. Deus nos convida para a comunhão com ele, por meio da cruz, que nos reconcilia com ele.

4. Deus nos justifica. Deus perdoa os nossos pecados. O veredito contra nós é cancelado pela cruz e exposto publicamente para que não haja dúvida de que fomos perdoados (Colossenses 2.14).

5. Deus nos glorifica. Deus nos dá a alegria de viver, a razão da vinda de Cristo, com quem devemos nos parecer, o que restabelece a ordem da criação, já que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus.

 

Esta é a ordem, portanto: 1. presciência, 2. predestinação, 3. convite (chamada), 4. justificação e 5. glorificação.

A partir da sugestão do professor Francisco Leonardo Schalkwijk, podemos pensar que a cronologia que está em Romanos é a ordem celestial: 1,2,3,4,5. Na história humana, a ordem pode ser outra: 1,3,4,5,2: presciência, convite (chamada), justificação, glorificação, predestinação.

Para nós, depois do conhecimento prévio, "tudo começa com a chamada divina, como aconteceu desde o início, quando Deus procurou pelo homem: 'Onde estás?' (Gn 3.9). Depois, quando chegamos na presença do Senhor, no Santo dos Santos, nós reconhecemos que foi Ele quem realmente nos chamou das trevas para sua maravilhosa luz".[16]

 

 

3. UMA CONCILIAÇÃO

 

Sabemos que "uma das maiores controvérsias entre os cristãos é a natureza da predestinação que Deus ordenou. Nos extremos estão aqueles que entendem que Deus usa somente uma, excluindo a outra. Os dois lados estão errados, uma vez que a Bíblia claramente indica que a predestinação e livre-arbítrio estão estão operação". [17]

A pergunta não se cala: podemos conciliar as realidades da predestinação e do livre-arbítrio?

A teologia cristã precisa responder.

Para ser válida, a teologia cristã precisa derivar sua argumentação da Bíblia. Esta é a marca da teologia como prática humana distinta das outras. Os outros esforços, filosóficos, científicos e artísticos, têm o ser humano como a medida de todas as coisas, como na proposta renascentista. A teologia, contudo, é um esforço que vem da Revelação divina, tornada objetiva na Biblia,

Devemos cuidar para não fazer da Biblia um livro com a nossa teologia. Nosso sistema não pode ser fechado, mas sempre aberto à compreensão das Sagradas Escrituras.

 

DE NOVO, ALGUNS TEXTOS CENTRAIS DA BÍBLIA

 

Dos 11 textos destacados e comentados anteriormente, alguns precisam ser recordados.

 

1. Jeremias (no século 6 a.C.) se via como escolhido por Deus para ser profeta antes mesmo de ser concebido (Jeremias 1.5). Deus agiu assim como ele, mas não é sempre assim. Amós (no século 8 a.C.) foi chamado num momento especifico para um ministério especifico, em função de uma necessidade. Deixou-se usar por Deus e Deus o usou.

Deus é soberano para predestinar um ministro. Deus é soberano para levantar um ministro na hora da necessidade.

A Bíblia indica que certas pessoas são escolhidas por Deus para seus propósitos. Os exemplos incluem Abraão, Davi, João Batista, além do próprio profeta Jeremias. "Para cumprir suas profecias, Deus predestina a história num certo grau. A Biblia claramente indica que Deus predestinou a historia da redenção, especificamente a vinda do Messias. Jesus claramente afirmou que sua vinda a estava planejada, inclusive sua morte". [18]

Deus dirige a história, o que nao implica entender que ele necessariamente microdirija a história. Em outras palavras, "Deus coloca pessoas na história para que sua vontade seja feita. Inclusive inclui colocar seus seguidores, além daqueles que se lhe opõem, em pontos estratégicos na história. A Bíblia nos encoraja a usar nosso livre-arbítrio para escolher o bem em lugar do mal". [19]

 

2. Em João, Jesus nos diz que recebe aqueles que o Pai lhe dá e que nenhum dos que vão a ele é lançado fora (João 6.37). Sobre este verso, um comentarista escreveu: "Algumas pessoas põem todos os seus ovos na cesta da eleição. Há outros que colocam todos os seus ovos na cesta do livre-arbítrio. Eu não me proponho a reconciliar as duas, porque descobri que não posso. (…) 'Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim' estabelece a verdade e é a eleição. (…) 'O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora' também é verdadeiro e é o livre-arbítrio. Não sei como conciliá-las, mas ambas sao verdadeiras. O Pai dá as pessoas a Cristo, mas as pessoas têm que ir. E aqueles que vão são aqueles que, aparentemente, o Pai lhe dá. Eu e você estamos aqui e não podemos ver a engrenagem do céu. Eu não sei como funciona o computador da eleição, mas sei que Deus nos deu (a você e a mim) o livre-arbítrio e temos que exercê-lo". [20]

 

3. Segundo o apóstolo Pedro, Jesus foi entregue ao povo de Israel "pelo determinado desígnio e presciência de Deus, mas este povo o matou, "crucificando-o por mãos de iníquos". Apesar deles, alguns creram, "creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna". (Atos 2.23-24 e 13.48 ARA)

Somos informados que Deus decidiu (determinou) salvar a humanidade, redimindo-a da pecado. A vinda do Messias era o ponto final desta história, conhecida antecipadamente por Deus. Assim, eleição e presciência são faces de uma mesma realidade. O Deus soberano que elege é o mesmo Deus soberano que sabe todas as coisas de antemão.

Ele é, ao mesmo tempo, soberano para eleger e presciente para saber o que vai acontecer na história humana. Se queremos colocar as coisas numa frase, é esta: em termos gerais, Deus elege com base na sua presciência. Em termos particulares, pode ser que faça escolhas especiais para determinados propósitos, respeitada a liberdade humana, de antemão (presciência) conhecida.

 

4. O apóstolo Paulo canta feliz que "todas as coisas são feitas de acordo com o plano e com a decisão de Deus. De acordo com a sua vontade e com aquilo que ele havia resolvido desde o princípio, Deus nos escolheu para sermos o seu povo, por meio da nossa união com Cristo" (Efésios 1.11 NTLH; cf. Efésios 1.4-5 e Atos 13.48).

Fica claro que a salvação é uma oferta divina por causa do pecado humano. O pecado não foi determinado por Deus, mas a salvação o foi. A perdição não é determinada por Deus, mas a salvação o é.

Em função de nossa morte espiritual (não fisica ou moral) o amor de Deus para conosco leva-o a iniciativa de nos reconciliar em Cristo e nos oferecer a graça, que pode ser aceita ou recusada.

Podemos nos alegrar porque perdemos confiar que aquele que nos elegeu, predestinou e escolheu continua a nos amar e nada nos separa deste amor. "Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" (Romanos 8.1).

 

5. É muito bom sabermos que "todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. Que diremos, pois, a estas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?" (Romanos 8. 28-31 ARC)

Sempre precisamos citar o verso 31 junto com os anteriores 28 a 30, para entendermos o motivo da alegria paulina, porque o cuidado nos coloca no coração do objetivo apostólico, que é o de nos infundir confiança, garantida pelo autor é consumidor de nossa fé-confiança.

Tudo começou com a chamada divina. Desde o início, Deus procura pelo homem. Quando aceitamos seu convite, entendemos seu chamado, das trevas para a luz. [21] Como escreveu o rabino Abraham Joshua Heschel, "no princípio há o interesse divino. É devido ao divino interesse pelo homem que o homem pode ter um interesse por Deus, que somos capazes de buscá-lo”. [22]

Admitidas a presciência de Deus e a sua graça interessada em nós (Romanos 8.31), podemos recronologizar Romanos 8.28-30), para priorizar o que podemos ver (e só podemos ver o que está na história, ainda de baixo para cima, como um espelho da história vista por Deus, de cima para baixo):

 

1. Chamou. Deus chama para a salvação. A cruz é o maior ouddoor desta mensagem.

2. Justificou. Deus justifica (perdoa) os que se arrependem, que é a condição essencial para a salvação .

3. Glorificou. Deus coloca o salvo numa condição de viver para a glória de Deus, de modo digno de sua justificação.

4. Predestinou. Deus decreta a salvação, que é, então, irrevogável, como parte final e não inicial do processo humano, considerada ainda a presciência divina. [23]

 

Se a sequência parece insuficientemente bíblica, mantenhamos a ordem do texto:

 

1. Presciência. Com base em seu conhecimento prévio das coisas, Deus determina as coisas (vontade específica ou interventiva) ou permite (vontade geral ou permissiva) que aconteçam.

2. Chamada. Deus chama todos os seres humanos para a salvação. A mensagem da cruz, pro isto, precisa ser pregada a todos em todos os tempos e em todos os lugares.

3. Predestinação. Respeitada a liberdade humana, Deus, que não é despótico, decreta a salvação dos que irão crer.

4. Justificação. Deus justifica (perdoa) os que se arrependem, que é a condição essencial para a salvação .

3. Glorificação. Deus eleva os salvos à condição de santos (separados) para uma vida digna do evangelho, pelo que podem ter segurança de que nunca vão perder a salvação, o ponto de encontro entre a presciência divina e a liberdade humana. Assim, "na química da cruz, Deus faz com que as coisas, inclusive as ruins, trabalhem juntos, como um químico pode juntar ingredientes deletérios e nocivos por si sós para fazer um remédio que cura". [24]

 

Temos que ser humildes também nesta questão. Só nao podemos abrir mão que, independentemente da interpretação que esposemos, é absolutamente certo que somos amados por Deus. Na nossa historia individual, ele pode ter nos predestinado por amor sem consultar a sua presciência, como pode ter nos predestinado ao ver a nossa vida, com as escolhas que faríamos (como vistas por Ele) ou fizemos (como sabemos).

Por isto, algumas palavras acompanham os salvos:

 

CERTEZA — Podemos ter certeza da promessa. "Sabemos", por revelação e por experiência. Não é vaga esperança ou pobre opinião.

COMPLETUDE — A promessa é completa. "Todas". Inclusive as aflições, como nos mostra a historia de José do Egito, que pôde dizer: "Não foram vocês que me enviaram para cá com sua maldade, mas Deus…" (Gênesis 50.20)

CAUSA — A promessa tem uma causa, um fundamento: Deus mesmo. É Deus quem faz: não nós.

"Deus não está morto. Ele está vivo e bem. Ele não está doente. Ele não está fora de combate. Ele não está ultrapassado. O Deus que faz a promessa é também a sua causa.

CONDIÇÃO — A promessa tem uma condição. É para os que "amam a Deus". Não é automática. A condição é que amemos a Deus. Somos chamados a amar a Deus de todo o nosso coração.

CONSEQÜÊNCIA — A promessa deve ter como consequência nos parecermos com Jesus ("Para serem conformes à imagem de seu Filho"Imagem do seu filho".) "Não há bem maior que parecer com o Senhor Jesus Cristo". Não é ter saúde ou ficar rico, mas santo como Jesus. [25]

 

 

6. Em Hebreus, nós nos deparamos com único texto que pode ser interpretado como autorizando o ensino da perda da salvação:

"É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia". (Hebreus 6.4-6)

Uma interpretação arminiana estreita é mais lógica para o texto, concluindo-se pela possibilidade da perda da salvação. Dos seis pilares do calvinismo, podemos manter, à luz da Bíblias, o primeiro (T) e último (P). O homem é completamente depravado, mas uma vez salvo, pode estar seguro que o será para sempre.

Neste sentido, o texto de Hebreus pode ser interpretado calvinisticamente (admitida a outra leitura), no que nos ajuda Wayne Gruden.

Ser associado ao Espirito Santo não implica que essas pessoas "vivenciaram a obra redentora do Espírito Santo, nem que foram regenerados". O arrependimento foi apenas externo, como aconteceu com Esaú (Hebreus 12.17), não genuíno.

Essas pessoas "estiveram intimamente ligadas à comunhão da igreja. Sentiram algum pesar pelo pecado (arrependimento). Compreenderam claramente o Evangelho (foram iluminadas). Apreciaram os atrativos da vida cristã e a mudança que acontece na vida das pessoas quando se tornam cristãs, e provavelmente foram atendidas nas suas orações e sentiram o poder do Espírito Santo em ação, talvez até usando alguns dons espirituais, como os descrentes de Mateus 7.22 (“uniram-se” à obra do Espírito Santo, ou se tornaram “participantes” do Espírito Santo e provaram o dom celestial e os poderes do mundo vindouro). Ouviram a verdadeira pregação da Palavra e apreciaram muitos dos seus ensinamentos (provaram a bondade da Palavra de Deus)". No entanto, depois e apesar de tudo isso, "rejeitaram deliberadamente todas essas bênçãos e se voltaram decididamente contra elas". [26]

De modo mais sintético, se a salvação foi decretada por Deus, junto com sua onisciência, ele o fez sabendo o que iria acontecer no futuro.

Nossa dúvida, da perspectiva humana, persistirá, porque nunca saberemos que aquele que vemos como tendo caído da fé um dia esteve realmente nela. À luz do conjunto predominante dos textos bíblicos, se houve salvação, ela será para sempre.

Como anotou um grupo de batistas recentemente, "quando uma pessoa responda em fé ao Evangelho, Deus promete completar oi processo da salvação no crente para toda a eternidade. Este processo começa com a justificação, pela qual o pecado é imediatamente liberado de todo o pecado e recebe paz com Deus; continua na santificação, pela qual os salvos são progressivamente conformados à imagem de Deus pelo Espirito Santo que nele habita, e conclui na glorificação, pela qual os salvos desfrutam a vida com Cristo no céu para sempre. (…) Este relacionamento selado pelo Espirito Santo não pode ser rompido. Nós rejeitamos a possibilidade da apostasia. [27]

 

ALGUNS PONTOS DE PARTIDA

 

1. A Bíblia diz que Deus é soberano e que o homem é livre. Ela diz que Deus predestina e que o homem escolhe seu destino. Como a Bíblia não se contradiz, cabe-nos conciliar as duas ideias.

A liberdade humana é relativa, não absoluta, por causa dos condicionamentos biológicos (não podemos escolher a cor da pele: já nascemos com ela), sociais (temos que viver segundo as regras, que podemos lutar para mudar… dentro das regras) e divinos (Deus nos propõe coisas diferentes do que pensamos e faz com que, no plano do milagre por causa da vontade dele que coisas ruins, mesmo celebradas por nós, tragam-nos consequências boas. Nossa liberdade acontece no plano moral, o que significa dizer que, dentro de algumas possibilidades, fazemos escolhas em torno do certo ou do errado, do melhor ou do pior, do desejado ou do indesejado. Por causa do atributo da liberdade moral, escolhemos, sempre dentro de nossa compreensão e das possibilidades dadas. Por causa da nossa liberdade, apresentados à oferta da graça, podemos resistir e não aceitá-la. Deus deseja que a recebamos, tanto que enviou o seu Filho como resgate em nosso lugar para nos restaurar, mas nós, por causa de nossa natureza que Deus queria restaurar, podemos recusar. Um morador de rua pode ter a oportunidade de residir numa casa. Ele pode preferir continuar na rua, por decidir, na dignidade de sua liberdade moral, mesmo que corrompida, mas ainda livre, que a rua lhe é melhor e, a menos que cometa algum crime, lá deverá ser permitido ficar.

Isto nos coloca a questão do inferno,  o estado, no futuro, de absoluta ausência da graça. O inferno é uma escolha humana. Deus poderia determinar o céu para todos, contrariando o desejo dos que o querem. Se o fizesse, desrespeitaria a liberdade humana e seria um déspota. De igual modo, poderia determinar a salvação para todos, que é o seu expresso desejo por causa do seu amor, mas o seu amor o leva a respeitar a liberdade daqueles que a recusam a salvação.

No plano individual, Deus não nos obriga a fazer a vontade dele. No plano cósmico, a vontade dele será feita. Aparecerá um Abrão pronto para sair de uma terra para outra que seria mostrada no caminho. Diante do convite, Abrão foi livre. Aparecerá um Judas que trairá o filho dele por uma mixaria de dinheiro. Diante do convívio com o Salvador, Judas decidiu livremente ajudar no plano divino para a crucificação do Messias, mas Deus transformou a voluntária perdição de um na salvação de milhões de pessoas.

 

2. Não temos que escolher entre Agostinho e Pelágio ou entre Calvino e Arminio. Não temos que escolher entre predeterminação e livre-arbítrio.

Entre os atributos dependentes da soberania de Deus, um é o da presciência; o outro é o do respeito amoroso à liberdade humana. O atributo divino da presciência é a chave para a solução do imaginário conflito. Quando Deus predetermina, ele está de posse de sua presciência. Os dois atos fazem parte do mesmo conjunto decisório. Deus coloca diante do homem os dois caminhos. Quando o homem escolhe, faz uso da sua liberdade; se for pela aceitação do convite da graça, será uma decisão que agrada a Deus; se for pela rejeição, Deus se limitará a insistir e a criar extraordinárias condições para que mude de ideia.

Como alguns brincam, "devemos orar como calvinistas (isto é, como se tudo dependesse de Deus) e trabalhar como arminianos (como se tudo dependesse de nós), ou devemos ser calvinistas de joelhos e arminianos de pé". [28]

Na verdade, podemos e precisamos superar esta tensão. A chave é o amor de Deus.

"Se Deus não é amor, mas apenas conhecimento, então é difícil ou impossível ver como o livre-arbítrio humano e a predestinação divina podem ser verdadeiros. No entanto, se Deus é amor, há um caminho. Nosso livre-arbítrio decorre do amor divino. Amar as pessoas é fazê-las livres. Escravizá-las é sempre um defeito do amor. Uma vez que o amor divino é a completa essência de Deus e que a onisciência e onipotência são atributos desta essência, se uma destas duas verdades tem que vir primeiro (…) tem que ser a liberdade. [29]

Portanto, "liberdade e predestinação são dois lados de uma mesma moeda. O autor onipotente escolhe escrever uma historia sobre seres humanos livres, não sobre árvores ou máquinas. Isto significa que somos realmente livres" e "somos livres precisamente porque Deus é todo-poderoso". [30]

 

3. Nosso relacionamento com Deus é dinâmico. A historia é dinâmica. Deus é surpreendente. Lemos em Êxodo que Deus decidiu matar Moisés. Ora, Deus preparou Moisés (ao longo de 60 anos: 30 na corte e 30 no mato). Deus chamou Moisés para a missão de conduzir o povo de hebreu à terra da promessa. Diz, no entanto, a Bíblia que Deus quis matar Moisés por causa de um pecado certamente o faria se a esposa de Moisés (Zípora) não resgatasse o marido. Se Deus punisse Moisés, certamente levantaria outro líder para levar adiante seu plano de libertar o povo.

A história não é estática. Deus não é estático. Até podemos colocá-lo no quadro de nossas doutrinas, mas ele não cabe ali. Simplesmente, ele não vai se enquadrar ao nosso esquema.

Calvino construiu um sistema que aprisiona Deus. Calvino construiu uma estrada pela qual Deus deve trafegar, segundo regras preestabelecidas. No calvinismo estrito, Deus é escravo das regras, umas inclusive humanas.

No calvinismo estrito, Deus é o criador do mal, não o homem. Se é verdade que o mal existe, ele decorre da liberdade humana, sob a permissão de Deus, não da autoria de Deus. Em última instância, Deus é o autor de todas as coisas, por ser soberano e poder intervir para que o mal não aconteça. Ele, às vezes, o faz, e às vezes, não o faz.

Ademais, o calvinismo vê a predestinação como um recurso pelo qual Deus diminui o escopo da sua agenda retentiva, aplicando seus benefícios para uns poucos escolhido. Contudo, no Antigo Testamento, a predestinação funciona ao contrario, gradualmente expandindo o circulo para incluir mais e mais pessoas, com o objetivo final de abençoar todas as nações da terra". [31]

 

4. Devemos, diante das tragédias, sejam coletivas (como a queda de um avião) ou individuais (como uma doença devastadora), é comum que boa parte de nós faça muitas perguntas, como também é comum que boa parte de nós ouça diferentes respostas.

No esforço de compreensão, devemos evitar a tentação de qualquer tipo de reducionismo (reduzir tudo a um tipo de explicação, seja naturalista ou sobrenaturalista), que não passa de um nome mais pomposo para o simplismo.

A vida é complexa demais para ser compreendida com frases feitas ou mesmo versículos bíblicos fora do seu contexto.

A leitura do Salmo 19 nos ajuda a pensar alguns princípios reguladores da vida.

Para reger as nossas vidas, Deus fixou leis, que põem ordem no mundo. Deus governa o mundo por essas leis. São leis que precisamos conhecer pela fé e pela ciência. É também por meio dessas leis que Deus fala (Salmo 19.3-4).

Quando quebramos essas leis, pagamos um preço. O fato de não sabermos as causas (como é o caso do vôo de um avião) não quer dizer que elas não existam. Nem quer dizer que não tenhamos que pagar o preço por as quebrar.

Precisamos aprender que a liberdade (de voar) inclui o risco (de cair).

Não podemos desejar a liberdade e recusar o risco. Viver implica riscos. Deus respeita a nossa liberdade, no erro e no acerto. Embora seja soberano, Deus respeita até a escolha errada que fazemos. Como diz o salmista, o que Deus faz é, pelas leis que criou, nos advertir, para que as guardemos (Salmo 19.11).

Deus intervém nos nossos assuntos, mas a Seu critério e com cuidado para não nos tornar irresponsáveis. É mais cômodo para nós esperar que Deus dê "um jeitinho" para anular os efeitos dos nossos equívocos. É como se quiséssemos um pai que nos lega leis e que, quando as desobedecemos, corre para impedir as conseqüências das nossas escolhas. 

A Seu critério e com cuidado, Deus intervém. Nem sempre sabemos que Deus evitou uma tragédia. Só ficamos conhecendo as que não evitou. Por que evitou umas e não evitou outras? A resposta está na sua soberania, que é justa e boa (Salmo 19.9). É possível que num vôo desastrado estivessem pessoas que oraram para o sucesso da viagem, como ocorre em maior número em outros meios de transporte. No entanto, Deus decidiu não suspender as leis que criou, para nos dizer que somos responsáveis por nossas decisões.

Duas perguntas ainda podem ser formuladas diretamente:

. Quem não viajou pode atribuir a preservação da sua vida à intervenção de Deus?

Devemos respeitar quem, por ter sobrevivido, atribui sua vida à intervenção de Deus, mas devemos pedir a estas pessoas para não alardearem suas vitórias, em consideração aos parentes dos que se foram. Além disso, por que Deus poupou a alguns e não a outros, como se Ele tivesse filhos especiais? Uma afirmação de fé não pode ser transformada num chicote cruel.

. Temos todos um dia certo para morrer?

Não temos base na Bíblia para tal asserção. Nela somos convidados a conciliar a soberania de Deus com a liberdade do homem. Para nós, a tarefa é quase impossível, mas todos sabemos que o Deus soberano estabelece leis necessariamente imutáveis, para que haja harmonia no universo e na vida; nós obedecemos ou desobedecemos. O Deus soberano suspende suas leis, excepcional e cuidadosamente. A morte é o resultado da quebra destas leis, por nós mesmos ou por outras pessoas (como um motorista bêbado jogando seu carro contra pessoas). Cabe-nos cuidar de nossas vidas e das dos outros. [32]

 

Não existe uma autodeterminação (livre-arbítrio ou liberdade) absoluta por parte do homem, em função dos condicionamentos biológicos e ambientais. O homem, por exemplo, não consegue não pecar, que é da sua condição.

Não existe uma determinação absoluta das coisas, inclusive da salvação dos homens, por parte de Deus, uma vez que ele não força ser amado por eles.

 

5. Devemos ser humildes em relação às duas possibilidades. De modo algum podemos ver o lado diferente do nosso como sendo inferior. Não é correto um calvinista rejeitar (como fez R.C. Sproul) o arminianismo, por considerá-lo "uma renúncia ao cristianismo do Novo Testamento em favor do judaísmo do Novo Testamento". [33]

É boa a advertência de Al Mohler: "Às vezes, os calvinistas podem ser tribais e elitistas, mais preocupados em contar pontos de doutrina e menos preocupados em nos apontar para a missao do Evangelho. Este tribalismo é incoerente com as reais crenças que esposamos. Isto mostra que nós também podemos ser incoerentes na fé e na prática. De tal tribalismo precisamos todos nos arrepender". [34]

 

O ENSINO NADA TRADICIONAL DE UM PRESBITERIANO

Pregando à sua igreja na Tijuca (Rio de Janeiro, RJ) em 1975, o pastor presbiteriano Zaqueu Ribeiro reinterpreta a sua tradição, com palavras contundentes e convidativas:

 

1. "Se fosse Deus que que enumerasse os salvos, nomeasse os que se vão salvar e nomeasse os que vão se perder, isso é de certa maneira dizer que Deus estava assumindo a responsabilidade da reprovação".

 

2. "O plano de redenção de Deus é que define eleição ou reprovação. Ali no decreto de Deus original, as coisas já estão predestinados mas não as pessoas predestinadas. Não são pessoas, são caminhos. Não são pessoas, são normas, Não são pessoas, são as leis da salvação. Não são pessoas; é a vontade de Deu que decide e que define como se processa a salvação. E então Deus estabelece no seu decreto a forma pela qual o homem se salva e a forma pela qual o homem se perde. É aí que está a eleição divina originalmente, no seu decreto".

 

3. "E quando Deus decreta diz: 'porque Deus amou mundo de tal maneira', que decretou. O que? Em Jesus Cristo a salvação para todos os homens. Quem nele crê… Como o homem reage diante do decreto de Deus? Como ele se aproveita do decreto de Deus? Ele efetiva uma predestinação normativa para fazê-la efetiva sua vida ou ele abandona uma eleição normativa para que não se efetive sua vida e vai ser para sempre perdido. Depende de sua vontade pessoal, da sua autonomia humana diante da soberania de Deus que decretou a sua autonomia humana de decidir de que maneira vai aplicar em si a predestinação de Deus efetivar a predestinação de Deus estabelecida no decreto original. (…) O decreto é um só. O homem tem que escolher.

 

4. "Este é o decreto de Deus. Da escolha do homem e resulta sua eleição para casa ou para lá. A soberania de Deus decreta, estabelece as normas da salvação. O homem recolhe e aplica e efetiva em sua vida ou um decreto de salvação ou um decreto de perdição. A soberania de Deus não se perde, a liberdade do homem não acaba, quando o homem enxerga esse decreto. É a única forma de ele se salvar e a única forma de ele se perder. Esta é a forma compatível com a soberania divina e compatível com a liberdade humana de se entender predestinação como uma graça divina que elege para salvação ou uma desgraça humana que mata para sempre".

 

5. "Deus decreta e conhece ao mesmo tempo. A sua vontade e o seu conhecimento são uma e a mesma coisa e ao mesmo tempo. Sem lapso de tempo acontecem a presciência e o decreto de Deus".

 

6. "Quem seguir os caminhos de Deus está eleito por Deus, mas quem não seguir não será eleito por Deus. É decisão de cada um cada um, na sua liberdade, na sua responsabilidade, na consciência que tem na ação do Espírito de Deus, na revelação do amor de Deus.

Deus quer a sua salvação, mas quem tem que decidir isso é você mesmo, porque Deus quer que você mesmo decida. na sua soberania pessoal". [35]



[1]PELAGIUS. Letter to Demetrius. Citado em <https://epistolae.ccnmtl.columbia.edu/letter/1296.html>

[2]A crítica firmada por Philip Schaff não pode ser ignorada, sobretudo diante da força do racionalismo: "Se a natureza humana não é corrupta, e a vontade natural é competente para todo bem, não precisamos de um Redentor para criar em nós uma nova vontade e uma nova vida, mas apenas de alguém que nos melhore e enobreça; e a salvação é, essencialmente, obra do homem. O sistema pelagiano realmente não tem lugar para as idéias de redenção, expiação, regeneração e nova criação. Ele a substituiu pelos nossos próprios esforços de aperfeiçoar nossos poderes naturais e a mera adição da graça de Deus como suporte e ajuda valiosa. Foi somente por uma feliz inconsistência que Pelágio e seus adeptos permaneceram nas doutrinas da Igreja sobre a Trindade e da pessoa de Cristo. Logicamente, seu sistema conduzia a uma Cristologia racionalista". Citado em <http://www.saavedrafajardo.org/Archivos/89.pdf>

[3]AGOSTINHO. Cidade de Deus, XIV, 516. Citado por RÊGO, Marlesson Castelo Branco. Liberdade e graça em Santo Agostinho. Disponível em < http://www.unicap.br/ojs/index.php/agora/article/view/89>

[5]ERASMO. De libero arbitrio. Citado por PRUNZEL, Clóvis J. Prunzel. Lutero e Erasmo: o Contato e a Divergência. Disponível em <http://www.seminarioconcordia.com.br/seminario/documentos/il/103/IL19942.pdf>

[6]LUTERO, Martinho. Nascido Escravo. 2ª ed. São José dos Campos: Fiel, 2007, p. 19, 20, 26, 32, 45, 65 e 71.

[8]CALVIN, John. On predestination. Disponível em <http://sourcebooks.fordham.edu/mod/calvin-predest.asp>

[9]ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, v. 1, posição 4144.

[10]ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, v. 1, posição 4131-4154.

[11]ARMÍNIO, Jacó. Op. cit, posição 4145-4149.

[12]ARMÍNIO, Jacó. Op. cit, posição 3700.

[13]ARMÍNIO, Jacó. Op. cit., posição 4156.

[14]HANKINS, Eric. “Beyond Calvinism and Arminianism: Toward A Baptist Soteriology. Disponivel em <http://sbctoday.com/beyond-calvinism-and-arminianism-toward-a-baptist-soteriologypart-3-theological-presuppositions/>

[15]MARSHALL, I. Howard . Citado por PINNOCK, Clark H.; WAGNER, John D. Wagner, ed. Grace for All The Arminian Dynamics of Salvation. Eugene: Resource, 2015, Posição 5349.

[16]SCHALKWIJK, Francisco Leonardo. Confissão de um peregrino. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 18.

[17]DEEM, Rich. Predestination vs. Free Will – Is It One or the Other? Disponivel em < http://www.godandscience.org/doctrine/predestination.html>

[18]DEEM, Rich. Predestination vs.Free Will – Is It One or the Other? Disponivel em < http://www.godandscience.org/doctrine/predestination.html>

[19]DEEM, Rich. Predestination vs. Free Will – Is It One or the Other? Disponivel em < http://www.godandscience.org/doctrine/predestination.html>

[20]McGEE, J. Vernon. John, chatear 1-10. Nashville: Thomas Nelson, 1991, posição 1544.

[21]SCHALKWIJK, Francisco Leonardo. Confissão de um peregrino. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 18.

[22]HESCHEL, Abraham J. Citado por GONDIM, Ricardo. O pensamento de Abraham Joshua Heschel. Disponivel em <http://www.ricardogondim.com.br/estudos/o-pensamento-de-abraham-joshua-heschel/>

[23]A proposta é de  SCHALKWIJK, Francisco Leonardo. Op. Cit.

[24]ROGERS, Adrian. Do All Things Work Together for Good? Disponivel em <https://billygraham.org/story/do-all-things-work-together-for-good/>

[25]ROGERS, Adrian. Do All Things Work Together for Good? Disponivel em <https://billygraham.org/story/do-all-things-work-together-for-good/>

[26]GRUDEM, Wayne. A Explicação para os Aparentes Casos de Perda de Salvação. Disponível em <http://www.monergismo.com/textos/perseveranca/perda_salvacao_wayne.htm>

[27]O documento, de 2012, pode ser consultado em <http://sbctoday.com/wp-content/uploads/2012/06/A-Statement-of-Traditional-Southern-Baptist-Soteriology-SBC-Today.pdf>. Uma recusa ao documento, considerado arminiano por alguns, está descrita em <http://www.deliveredbygrace.com/why-i-cant-sign-a-statement-of-the-traditional-southern-baptist-understanding-of-god%E2%80%99s-plan-of-salvation/> Sobre o assunto, pode-se ler a coletânea  editada por Edited by David L. Allen, Eric Hankins, and Adam Harwood. Anyone Can Be Saved A Defense of “Traditional” Southern Baptist Soteriology. Eugene: Wipf and Stock, 2016. Para uma visão batista da soteriologia, leia-se HANKINS, Eric. Beyond calvinism and arminianism towards a baptist soteriology. Journal for Baptist Theology and Ministry

SPRING 2011 • Vol. 8, n. 1, p. 87-100. O autor descreve o que chama de quatro pilares da soteriologia batista: a necessidade da fé individual em Cristo, o livre-arbítrio como uma consequência da liberdade de Deus, Cristo como mediador do pacto entre Deus e o homem e a pecaminosidade e salvabilidade de todos os seres humanos.

[28]BRASILINO, G.M. Lex orandi, lex credendi (contra arminianos e calvinistas). Disponivel em <https://cristianismopuro.blogspot.com.br/search/label/Soteriologia>

[29]KREEFT, Peter.  From The God Who Loves You. Excerto disponível em <http://www.peterkreeft.com/topics-more/freewill-predestination.htm>

[30]KREEFT, Peter.  From The God Who Loves You. Excerto disponível em <http://www.peterkreeft.com/topics-more/freewill-predestination.htm>

[31]IRWIN, Ben. Election in the Old Testament, part 3. Disponivel em <https://benirwin.me/2012/01/23/election-in-ot-part-3/>

[32]  Aqui estou retomando um texto que pode ser lido na íntegra no lugar próprio: AZEVEDO, Israel Belo de. Teologia em torno de um avião que cai. Disponivel em <http://www.prazerdapalavra.com.br/component/content/article/1423-teologia…html>

[33]SPROUL, R.C. The Pelagian Captivity of the Church. Disponivel em <http://www.bible-researcher.com/sproul1.html>

[34]MOHLER, Al. Southern Baptists and Salvation: It’s Time to Talk. Disponivel em <http://www.albertmohler.com/2012/06/06/southern-baptists-and-salvation-its-time-to-talk/>

[35]RIBEIRO, Zaqueu. Predestinação. Rio de Janeiro, 1975, dat. A numeração não faz parte do original, datilografado em 11 paginas, expostas por dois domingos. Agradeço a irmã Cynira Amaral Benectis, que guardou o sermão e mo emprestou.


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