A MENTIRA NA POLÍTICA
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
Diante do quadro, nós nos perguntamos se são compatíveis a prática da política e a vivência da verdade.
Pelo que vemos, os atores profissionais da política subordinam a verdade ao seu interesse, seja ele pessoal, partidário ou governamental. No entanto, nós, o povo, amador de política, ainda vemos a verdade como bem supremo, maior até que a governabilidade. Por isto, ficamos curiosos em saber a verdade (“afinal, a secretária esteve ou não esteve no palácio?”, “o presidente sabia ou não sabia o que diz não saber?”, “tem ou não tem conta na Suíça o ex-prefeito?”) Quando as evidências se acumulam e negam a negação, ficamos escandalizados.
Essas negações não são justificáveis por uma ética extrema de situação. A Bíblia registra a história de Abraão, flagrado na mentira. Um governante interessou-se por Sara, sua esposa. Temendo ser morto, para o caminho ficar livre para o dirigente, disse que Sara era sua irmã. A história terminou bem para o casal, mas o governante repreendeu a Abraão por lhe ter mentido. O autor de Gênesis apenas conta a história, sem fazer qualquer aplicação de fundo moral. Essa é nossa responsabilidade e não temos dificuldade em absolver o patriarca por agir assim para defender sua vida e sua família. Situações como estas acontecem todos os dias, com finais nem sempre felizes, como a do advogado carioca que levou seus seqüestradores, que queriam o seu endereço, para longe da sua casa e foi morto.
As histórias das guerras estão cheias de mentiras de homens públicos, as quais ajudaram a construir as vitórias dos seus países, em nome das quais Winston Churchill pode ter afirmar que “durante a guerra, a verdade é tão preciosa que ela deveria ser sempre acompanhada de mentiras como guarda-costas.”
Como nem todas as guerras são legítimas, nem todas as mentiras, mesmo nas guerras, são legítimas, como não foram as do governo norte-americano para justificar o ataque ao Iraque. É quase um consenso que o preço para a deposição de Sadan Hussein foi alto demais. A alegada ameaça à segurança americana ou global não existia. Se existisse, e tivéssemos ficado livre dela, não chamaríamos Bush de mentiroso.
Muitos de nossos homens públicos parecem usar a verdade como se estivessem em guerra para defender a pátria. Eles parecem tão apaixonados pelo que chamam de governabilidade que reescrevem Churchill: a mentira é tão preciosa que precisa ser acompanhada de verdades como guarda-costas.
Quando lemos as cartas dos leitores, é raro encontrar uma que defenda a mentira, mesmo em nome da governabilidade. Os adjetivos mais comuns são “horrorizados”, “enojados”, “escandalizados”.
É bom ficarmos horrorizados, enojados e escandalizados com as mentiras dos nossos governantes, por indicarem estes sentires, ao mesmo tempo, a nossa ingenuidade e o nosso ideal.
Por ingenuidade e ideal, não aceitamos fatalisticamente que “política sempre se fez assim”. Queremos outra forma de fazer política.
Por ingenuidade e ideal, não aceitamos passivamente que a tese da governabilidade engula a verdade. Queremos uma política em que os acordos sejam celebrados para serem cumpridos de verdade, mesmo que, por alguma razão, todos os detalhes não sejam públicos.
Por ingenuidade e ideal, não aceitamos que um político profissional diga uma coisa e faça outra. Não queremos uma ética para nós e uma ética para os políticos profissionais (porque políticos somos todos, os que desejamos, os que opinamos, os que votamos). Desde crianças, aprendemos a abominar o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
Já devíamos estar acostumados com a mentira na política, mas não estamos, se “costume” quer dizer “aceitação”.
Saudemos como saudável esta recusa. Nossa recusa implica em saúde coletiva. Estamos dizendo que não esperamos a mentira por parte dos nossos governantes, porque não os consideramos bandidos. Podem ter se tornado, mas não os escolhemos bandidos. Um pastor que desvia dinheiro de sua igreja é um desviado, mesmo mantido no púlpito, porque não esperamos dele esta atitude. Apostamos nele como um homem acima da bandidagem.
Precisamos prosseguir em nossa recusa à mentira para o bem da democracia.
Afinal, cometidas nas ditaduras e nas democracias, as mentiras são uma grande ameaça às democracias.
Para sobreviver, a democracia precisa de um razoável nível de crença nas leis e nas pessoas. A democracia, por ser contrária à natureza egoística intrínseca e universal do ser humano (em função daquilo que os teólogos chamam de pecado original), precisa também de homens, no circulo e na margem do poder, dispostos a agir com verdade. Suas palavras devem repousar sobre o fundamento da verdade.
Sem verdade, não há democracia verdadeira.
Quando, nos altos escalões a mentira se passa por verdade, como imaginar que as nossas organizações, inclusive nossas famílias, não ficarão escravas do pecado? Como os pais convencerão os seus filhos que mentira tem perna curta, se os mentirosos se perenizam no poder?
Precisamos, na política, na rua e em casa, de verdade, com o seu poder libertador.