Rute 2: BOAZ, FIRME NA BONDADE

BOAZ, FIRME NA BONDADE
Rute 2

A biografia de Rute, contada num dos livros mais emocionantes da Bíblia, bem poderia ser a história de Boaz. (As atitudes de Boaz são comentadas, com muita propriedade, por WAKEFIELD, Norm, BROLSMA, Jody. Homens são de Israel, mulheres são de Moabe. São Paulo: Vida, 2003.) Neste livro, cuja história ocorre no período dos juízes em Israel, Boaz (“nele há força”, em hebraico), oferece uma demonstração do que significa a bondade, fruto do Espírito, segundo o Novo Testamento (Gálatas 5.22).
Ele era primo em primeiro grau de Rute, uma moabita convertida ao judaísmo. Viúva de Malon, ela chegara aos termos de Judá acompanhando a ex-sogra, a israelita Noemi, que resolvera voltar para sua terra depois que seu marido e seus dois filhos morreram, em busca de melhores condições de vida que acharam possíveis em Judá.
As duas fixaram-se em Belém, no período da colheita (por volta do ano 1250 a.C.). Em busca de alimento para si e para a ex-sogra, Rute dirigiu-se casualmente à fazenda de Boaz. Sem conhecê-la, seu primo a tratou com muita generosidade, como o demonstra a narrativa bíblica (Rute 2.4-18).

Segundo a tradição judaica, o parente mais próximo de uma viúva tinha o dever de se casar com ela e comprar a sua propriedade. Noemi, então, reconhecendo em Boaz um dos resgatadores de Rute, procurou aproximar a ex-nora de Boaz.
Informado do compromisso, Boaz lembrou que havia um parente mais chegado que ele. Reunido o sinédrio da cidade de Belém, o anônimo tio de Rute se recusou a desposá-la. Provavelmente ele teve medo de cair numa desgraça espiritual, já que a lei mosaica proibia que uma moabita passasse a integrar, por casamento, o povo de Israel (Nenhum amonita ou moabita, até a décima geração, fará parte do povo do Deus Eterno. Eles ficarão de fora — Deuteronômio 23.3). Boaz não deve teve o mesmo receio, especialmente depois do apoio que lhe foi dado pelo conselho local. Na verdade, apesar desta autorização, ele correu o risco de ser considerado impuro. Por este casamento, ele e sua esposa, bisavós de Davi, entraram na genealogia do Messias.
Por seu comportamento, Boaz pode ser colocado na galeria de homens cheios de graça. Bondade é a marca mais evidente no seu jeito de ser.

O livro de Rute traz diferentes manifestações desta firme bondade, algumas das quais aparecem no capítulo 2. São estas que agora consideraremos, pois, se bondade é o amor em ação, Boaz é a sua demonstração.
Muito antes de Jesus Cristo, Boaz mostrou-se habitado pelo Espírito de Deus. Sua bondade é fruto deste Espírito (Gálatas 5.22).

1. BOAZ MANIFESTA SUA BONDADE NO MODO COMO TRATAVA AS PESSOAS.
Quando chega à fazenda para supervisionar a colheita, Boaz tem uma palavra de afetuosa saudação aos empregados. Ele diz: “O Senhor seja convosco!” (verso 4), uma expressão que aparece só mais uma vez no Antigo Testamento (Gênesis 43.23), mas muitas vezes no Novo Testamento, proferida por Jesus (Lucas 25.36, João 20.19-21) e pelo apóstolo Paulo (Romanos 16.20, 1Coríntios 1.3, 1Coríntios  26.13, Colossenses 4.18, 1Tessalonicenses 5.28, 1Timóteo 1.21, 2Timóteo 4.22).
A prova de que não foi um cumprimento protocolar está em que notou que havia uma pessoa estranha ao grupo. Ele procurou saber: “De quem é esta moça?” (verso 5). Para tanto, ele observara o grupo. Boaz falou olhando para eles. A resposta que ouviu dos seus empregados demonstra a reciprocidade que seus gestos provocavam: “O Senhor te abençoe!” (verso 4). Parece que aqueles empregadas ansiavam pela chegada do seu patrão.

1.1. Se queremos que palavras de bondade nos habitem e perfumem o ambiente em que vivemos e toquem os corações dos outros, porque estão tocando os nossos, precisamos nos interessar pelos resultados que nossas palavras podem provocar. Que bem, ou que mal, fará a palavra que vou proferir  — esta deve ser a minha pergunta, neste caminho de aprendizagem.
A recomendação bíblica é que a nossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal, quando estivermos nos comunicando (Colossenses 4.6). O apóstolo Paulo nos pede que  temperemos com sal a nossa palavra. Comida sem sal é comida difícil de ser comida. Comida com sal de mais é nociva à saúde. Nossa palavra deve ter o tempero da emoção, mas não da emoção excessiva, para não fazer mal. Em outras palavras, importa o conteúdo, mas também a forma com que se diz. Todos sabemos o quanto é boa uma palavra dada a seu tempo (Provérbios 15.23). Bondade produz bondade. Ela pode começar com a nossa forma de cumprimentar as pessoas.

1.2. Se queremos que palavras de bondade nos habitem e perfumem o ambiente em que vivemos e toquem os corações dos outros, porque estão tocando os nossos, precisamos, precisamos procurar desenvolver a capacidade de prestar atenção às pessoas. O que há de ruim nas pessoas é como um outdoor: colocado em lugares estratégicos, tem nove metros de largura por três de altura: todo mundo as vê. O que há de bom nas pessoas são como anúncios classificados num jornal; só quem vê tem boa visão. Uma pessoa atrás de um balcão numa loja pode ser apenas um balconista, mas pode ser uma pessoa com nome, sobrenome e história. Com quem queremos nos relacionar?
Se prestarmos atenção às pessoas, nós nos relacionaremos com elas, como elas são. Quando Paulo pede que nossas palavras sejam temperadas com sal, o apóstolo Paulo nos lembra que cada alimento exige um tipo de sal (sal grosso no churrasco, sal refinado na farofa, por exemplo), como cada pessoa é diferente; cada uma precisa de uma palavra diferente. O conteúdo pode ser o mesmo, mas a forma deve ser personalizada. Só personalizaremos o conteúdo de nossa comunicação, prestando atenção às pessoas. Ser notado é uma necessidade humana, porque indica que elas pertencem. Um dia destes, uma reportagem televisiva mostrava a moda dos num congresso de esqueitistas. Um deles desafiou a repórter: veja se tem algum vestido igual. Cada um queria ser diferente, como uma forma de ser notado.
Uma vez uma senhora me chamou em sua casa. Depois do cumprimento, ela me perguntou:
— Por que o senhor não gosta de mim?
Eu indaguei por que. Ela completou:
— O senhor passa por mim e não me cumprimenta.
Eu fiquei surpreso, porque eu gosto de pessoas, eu gosto de estar com pessoas, eu gosto de cumprimentar pessoas. Eu pedi desculpas e prometi melhorar, prometi prestar mais atenção às pessoas. Espero que esteja melhorando.
Notar o outro é bondade. Bondade produz bondade.

1.3. Se queremos que palavras de bondade nos habitem e perfumem o ambiente em que vivemos e toquem os corações dos outros, porque estão tocando os nossos, precisamos proferir palavras que abençoem.
Quando notamos as pessoas, podemos perceber suas necessidades e, logo, podemos abencoá-las com palavras de bondade, às vezes, palavras sem palavras, que são as palavras que ouvem as palavras do outro, palavras com palavras, que são palavras cordiais, pois como o óleo e o perfume alegram o coração, assim, o amigo encontra doçura no conselho cordial. (Provérbios 27.9). A Bíblia é ainda mais profunda quando diz que palavras bondosas são como beijo nos lábios (Provérbios 24.26).
Se é verdade que a bondade não é apenas o território da palavra, também o é que ela se manifesta por meio de palavras. Todos sabemos que uma palavra oportuna é como uma maçã de ouro em salva de prata (Provérbios 25.11). Em outros termos, palavras abençoadoras são de valor inestimável. Quem já viu viu uma maçã de ouro numa salva de prata? A comparação indica o valor de palavras de bondade, mas, infelizmente, também a sua raridade.
Que nossas palavras sejam maçãs de ouro em salvas de prata, não pela sua raridade, mas pelo seu valor. Bondade produz bondade.

2. BOAZ MANIFESTA SUA BONDADE NO MODO COMO ULTRAPASSOU AS FRONTEIRAS DO PRECONCEITO.
Rute não fazia parte do grupo de empregados de Boaz. Rute não fazia parte do seu grupo social. Assim mesmo, Boaz não a discriminou. Pouco depois, Rute se apresenta como é: uma estrangeira (verso 10) e, para piorar, uma moabita. Assim mesmo, Boaz, que não tinha qualquer interesse utilitário ou sentimental por ela, não a tratou indevidamente. Tudo conspirava contra Rute, quadruplamente miserável aos olhos dos homens do seu tempo: não era judia, mas moabita, mulher e viúva.
A história de Rute e de Boaz mudou porque Boaz não julgou pela aparência, porque todo preconceito é baseado na aparência. As tradições e preconceitos de seu tempo não tinham penetrado na sua vida. Antes, ele tinha a capacidade ver além das regras, para tratar as pessoas com respeito. Ao ser assim, Boaz refletia o coração de Deus,  de cuja bondade somos embaixadores. (WAKEFIELD, Norm, BROLSMA, Jody, op. cit., p. 37-40.)
Sabemos que o Deus não nos vê como as pessoas nos vêem, pela aparência, mas olha para os nossos corações (O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração — 1 Samuel 16.7). Lemos a recomendação de Jesus que não devemos julgar segundo a aparência, massegundo a resta justiça (João 7.24).
No entanto, também sabemos o quão difícil é julgar segundo os olhos divinos, tão humanos que somos. Por isto, continuamos julgando, mesmo sabendo que devemos fazê-lo, para não ser julgados, que o seremos com a medida que usarmos para os outros (Mateus 7.1-2).
O relacionamento entre Boaz e Rute só foi possível porque Boaz não permitiu que os preconceitos de sua gente habitassem sua vida. Precisamos de mais Boazes entre nós.

Ainda há vítimas do preconceito social, que leva muitos a julgarem os outros por sua condição socioeconômica ou escolar. A herança recebida por uma família não tem nada a ver com a sua integridade. A formação escolar de uma pessoa não tem nada a ver com a sua inteligência. No entanto, este tipo de preconceito ainda faz vítimas e há vítimas porque há algozes nos quais falta a bondade.

Ainda há vítimas do preconceito étnico, por meio do qual a cor da pele influencia a visão do outro. Não importa a cor dos olhos; eles enxergam (ou não enxergam) do mesmo modo. Todo o sangue tem a mesma cor, e logo a mesma força (ou fraqueza). No entanto, há valores preconceituosos arraigados nas nossas mentes, preconceitos que machucam. Há costas feridas porque há chicotes, brandidos por quem não é bom.

Ainda há vítimas do preconceito de gênero. Em muitas igrejas, as mulheres são cidadãs de segunda classe. Um dia desses, encontrei-me com uma pastora, de uma outra confissão evangélica. Ela era a única naquela reunião de pastores. Ela contou que, quando estudante, um de seus professores disse que não era contra pastoras, desde que todos os membros da igreja fossem mulheres…

Ainda há vítimas do preconceito religioso, que leva alguns a olharem os diferentes não como diferentes mas como inferiores. Infelizmente, as religiões (a nossa inclusive) têm sido um solo fértil para o desenvolvimento do preconceito. Chegamos ao ponto, por exemplo, de tornar a terceira pessoa da Trindade divina, o Espírito Santo que une e conforta, em promotor da divisão, em nome de quem se cometem ataques e julgamentos. as porque há algozes.

É possível, no entanto, que nenhum de nós possa ser enquadrado nestes tipos de preconceitos. Há outro tipo, contudo. É o preconceito difuso: não é social, nem sexual, nem racial, nem religioso, mas é preconceito. Eu me refiro a atitudes preconceitos que não dependem destas características individuais. Se hoje eu julgo alguém por uma experiência negativa que tive com ele no passado, não estou sendo bondoso, mas preconceituoso. Se eu desprezo uma pessoa só porque não a conheço, não estou sendo bondoso, mas preconceituoso. Uma experiência não pode determinar o comportamento daí para a frente. Um sorriso não correspondido hoje pode ser correspondido amanhã — eis como pensa uma pessoa habitada pela bondade.
Estes preconceitos atingem a todos, pelo que os cristãos, devemos procurar olhar com o olhar de Deus, como seus embaixadores.

3. BOAZ MANIFESTA SUA BONDADE NO MODO DE OFERECER GENEROSIDADE.
O que Boaz faz por Rute vai além de muitas de nossas atitudes. Sua bondade para com ela alcançou o andar superior da generosidade.
Depois de reconhecer nela uma pessoa bondosa, pelo que fizera pela ex-sogra, o fazendeiro convida para a mesa para se alimentar livre e gostosamente. Quando voltou para ao trabalho, determinou que não houve limitação à sua área de colheita e, mais, que fossem deixas propositamente espigas para que ela recolhesse no campo (versos 12 a 16).
Boaz não deu esmola a Rute. Ela teve que colher espigas. A sua dignidade estava mantida. Ao final, ela recolheu quase uma efa de cevada (verso 17), algo como 22 litros, o máximo que poderia carregar.
Boaz agia animado pela generosidade de Rute para com Noemi e por sua fidelidade a Deus, a Quem um dia escolhera para servir. Havia gratidão no gesto de Boaz, mesmo que a decisão dela não fosse em seu beneficio.
O que Rute fez foi para proteger Noemi. O que Boaz fez foi para proteger Rute. Disse alguém (Henry David Thoreau) que “a bondade é o único investimento que jamais falha” (THOREAU, Henry David. Citação disponível em Se é verdade que “a bondade tem convertido mais pecadores do que o zelo a eloqüência ou a cultura” (FABER, Fredrick . Citado por WAKEFIELD, Norm, BROLSMA, Jody, Quando a nossa bondade alcança o andar da generosidade, é porque alcançamos o nível mais elevado da bondade. A palavra generosidade tem a mesma raiz (gen) de gene, genético, geração, gênesis, todas referentes ao nascimento da vida. A generosidade produz a vida. Sem uma vida generosa a vida se torna árida e vazia. “A generosidade sopra vida nova e nos conecta com os propósitos criativos de Deus para conosco”. (LEIDEL, Jr, Edwin M. Hatching Generous Hearts; Address to the Seventh Convention of the Episcopal Diocese of Eastern Michigan Grace Episcopal Church. Disponível em . Acessado em 22.4.2003.) O nosso Deus é descrito como generoso (Isaías 55.7b).
Generosidade é a bondade com alegria, sem nenhuma espera de retribuição. A generososidade está na bondade da iniciativa e raramente resposta. Generosidade é a bondade que excede.

CONCLUSÃO
Embora seja “muito mais fácil reconhecer a bondade do que defini-la” (W. H. Auden), podemos vê-la como o comportamento natural numa pessoa espiritual. Na perspectiva bíblica, é um desejo espiritual de fazer bem aos outros. Por isto, não deve ser como que por obrigação mas de livre vontade (Filemon 1.14) .
A Bíblia espera que sejamos cheios de bondade e de conhecimento, que não são antônimos (Romanos 15.14).

Lançar o meu pão sobre as águas ignotas
para ser tomado pelo bico das gaivotas?
Lançar o meu pão sobre as águas revoltas
onde serão apenas minúsculas migalhas soltas?
Lançar o meu pão sobre as águas imundas
de onde baixarão para as trevas profundas?
Lançar o meu pão sobre as águas imensas
que o conduzirão para distâncias densas?

Nada sei sobre o destino das águas
porque não sei como as ondas se formam
como não sei onde os ventos se reformam
como não sei o que as nuvens portam
como não sei porque as trevas assim se comportam.

Sei que vou recolher o meu pão lançado
mesmo que pelas gaivotas bicado,
mesmo que pelas pedras esmigalhado,
mesmo que pelo óleo manchado,
mesmo que da viagem cansado,

porque confio na Palavra plena de Deus
que me manda meu pão sobre as águas lançar,
eis que Seus projetos são melhores que os meus,
pelo que Sua sabedoria quero tão somente alcançar.
(O DESTINO DO PÃO, Eclesiastes 11, 2000)