QUE ELI QUEREMOS SER?
1Samuel 1.1-20
Pregado na Assembléia da Convenção Batista Brasileira (Vitória), em 17.1.2003.
INTRODUÇÃO
Talvez você esteja esperando, para este momento, ouvir uma radiografia apaixonada do instante contemporâneo, desejoso de se capacitar para melhor desempenhar a sua missão de ministro do Evangelho, que é todo cristão, homem e mulher, consciente de que Jesus Cristo o reconciliou para ser seu embaixador. No entanto, este diagnóstico não será feito.
Talvez você esteja aguardando uma denúncia indignada dos equívocos denominacionais e nacionais, consciente que não apenas o indivíduo, mas também uma denominação e uma nação pecam, como sempre demonstraram os profetas bíblicos e pós-bíblicos. No entanto, desta denúncia não se fará aqui.
Talvez você esteja temendo ouvir uma coletânea de pensamentos brilhantes sobre temas variados mas reunidos inconsutilmente de modo a haver a mais clara demonstração de erudição, que seria bem apreciada se travestida de uma afetação de humildade. Não haverá brilho algum nas palavras que se seguirão.
O propósito delas é tão somente convidar os ministros aqui presentes, isto é, todos os embaixadores de Cristo (2Coríntios 5.20) aqui presentes, a reafirmarem a sua vocação ou a se reconciliarem com a sua missão, porque amplas são as necessidades e largas as tentações ao desvio.
Estas três dimensões estão bem presentes na experiência do sacerdote Eli diante do drama de Ana, esposa de Elcana, conforme lemos em 1Samuel 1.1-20.
1. DEVEMOS NOS LEMBRAR QUE A IGREJA É UM LUGAR DE PESSOAS NECESSITADAS.
Ana fez o que todo o ser humano faz quando está em dificuldade: buscou a Deus por meio da, digamos, modernizando a nomenclatura, igreja. Devemos saber disto: só as Anas buscam a igreja achando encontrar Deus nela. Como seríamos mais acolhedores, se nos lembrássemos que as pessoas não buscam a igreja: as pessoas buscam Deus, achando ser ela o endereço de Deus. E não estão erradas: Jesus não nos disse que onde estivessem dois ou três cristãos reunidos, ali Ele estaria?
Ana, neste sentido, deve ser um modelo para o homem. Ela era uma pessoa necessitada:precisava de um filho. Depois, talvez, de fazer o que o ao dia para engravidar, buscou ao Senhor em busca da felicidade. Bom seria que fôssemos como Ana, que derramou a sua alma diante do Senhor (verso 15). A de Ana não era uma fé ritualizada a sua; era uma fé que se expressava dentro de rituais, próprios da cultura humana, mas os transcendia. A oração de Ana não era uma seleção de parágrafos feitos: era uma oração embebida em lágrimas, a prova psíquico-química da absoluta e desesperada dependência de Deus.
Assim deve ser a nossa fé em tempos de dificuldade. Assim deve ser a nossa oração na hora da perplexidade.
Como Ana, devemos reconhecer as nossas necessidades.
Não sejamos como aqueles que não reconhecem que são necessitados. Não estejamos também entre aqueles que, admitindo suas carências, não procuram Deus.
Não estejamos também entre aqueles que, vendo as necessidades que buscam a Deus por meio da igreja, transformam-se em anteparos à sua chegada. Não cremos que a Ceia seja um sacramento, mas voamos sobre um não batizado (quando não um não batista) para impedir que ingira o pão que pegou. Quando convidamos os presentes aos nossos cultos para aceitarem a Jesus como Salvador, cantamos que devem vir tais como estão, mas não batizamos aquele que não for legalmente casado porque o seu cônjuge ainda não cristão se recusa a faze. Pregamos que o Evangelho é o poder de Deus para todos aqueles que crêem, mas muitos de nós das classes médias queremos ter certeza que o nível socioeconômico de nossas igrejas não vai baixar…
Depois de tudo isto, estranhamos que muitos que procuram Deus nem sempre a buscam por meio das nossas igrejas… Os que acompanhamos a divulgação dos resultados do censo demográfico brasileiro de 2000 lemos a indignação de alguns líderes de denominações achando-se defraudados nos números oficiais, aquém dos registros internos denominacionais. No caso dos batistas, a estranheza é maior. Juntando os 944 mil batistas da Convenção Batista Brasileira aos outros batistas do Brasil, ficamos bem longe (dois milhões, talvez) dos 3,1 milhões atribuídos pelo IBGE.
Deve-se a diferença apenas às crianças? Explica a discrepância o exército dos excluídos dos quadros de membros? Não se declararam batistas alguns brasileiros que não se sentiram acolhidos em nossas igrejas?
O que temos feito com as Anas que nos procuram? Temos sido portos para as pessoas, muitas das quais plenas de problemas profundos?
Nossa visão do outro não pode ser inspirada senão pela graça de Deus. Só assim não nos cansaremos.
Aliás, precisamos de um choque de graça! Não fomos salvos pela graça, mas queremos impingir um pouco de lei e obra aos cristãos. Para que excluímos um irmão que se transferiu para outra denominação evangélica? Por que não aceitamos por carta de transferência um irmão vindo de outra denominação? Precisamos de um choque de graça, para sufocar de vez o fariseu escondido dentro de cada um de nós?
No plano pessoal, temos feito como Ana, buscando Deus com lágrimas de humildade?
Precisamos de cristãos-Ana, de igrejas-Ana.
2. PRECISAMOS CUIDAR PARA QUE CONTINUEMOS SENSÍVEIS ÀS NECESSIDADES HUMANAS.
Há dois Elis aqui. Um deles é o sacerdote insensível às necessidades de Ana. A sua insensibilidade impede que perceba as carências daquela mulher temente a Deus, que ele confunde com uma seguidora de Belial (verso 26), como uma mulher desclassificada.
Eli faz com Ana o que fez a platéia de judeus no marco zero da história de igreja cristã, quando a plenitude capacitadora do Espírito Santo foi tomada como embriaguez. A tristeza extrema e a extrema alegria foram lidas da mesma maneira, porque são filhas da entrega, substantivo que o homem natural não consegue compreender.
Profissional da mediação Deus-homem, Eli estava fechado para Deus, Eli estava fechado para o homem. Seus joelhos não mais se dobravam para ouvir a voz do Deus a quem servia.
A síndrome de Eli ronda o ministro cristão, não importa o seu serviço. A síndrome de Eli ronda a igreja, não importa a metodologia que esteja adotando para cumprir a sua missão. Temos que vigiar para não sermos Eli na vida.
1. Temos que vigiar para não nos encastelarmos. Eli estava no seu posto, “sentado numa cadeira junto à entrada do santuário do Senhor” (verso 9). O posto de Eli era o seu castelo. O ofício de Eli era a sua armadilha.
Na sua protegida redoma, Eli via a realidade com os óculos do ofício. As pessoas eram apenas o objeto do seu ministério. Eli não enxergava mais os detalhes contidos fora das bordas do seu manual de sacerdote. Ele se esqueceu que as vidas das pessoas, com seus dramas pungentes, seus sonhos profundos, suas perguntas penetrantes, não cabem em manuais. Eli foi um ministro que se fechou em si mesmo, como nossas igrejas também podem se redomizar em si mesmas, com suas portas fechadas a não ser em dias de culto, com seus olhos fechados paras as necessidades em redor, com seus corações fechados para receber as chorosas Anas da vida real.
Na Índia de William Carey, o maior missionário da era pós-bíblica, eram as viúvas enterradas vivas. Carey passou vários anos do seu labor protestando contra esta prática hedionda. Um destes protestos demorou um pouco mais e adentrou ao horário do culto em sua congregação. Foi ele então advertido que devia voltar para a igreja. Envolvido numa grande causa, ele respondeu:
— O culto pode esperar.
Muitas vezes, em nome de Deus, mas sacrilegamente, passamos ao largo das viúvas queimadas vivas.
Que o exemplo negativo de Eli nos leve a orar ao Senhor para que nos dê sempre, como igrejas e ministros, a capacidade de olhar para a cidade e chorar por ela e com ela, como aconteceu com Jesus (Mateus 9.36).
2. Temos que cuidar para que nossas vozes não nos seduzam. É provável que Eli tenha ficado tão satisfeito com a sua voz, que não lhe importavam mais as vozes dos outros. Na narrativa bíblica, o foco sai por um instante de Ana, ilumina o sacerdote tentando ouvir a oração daquela senhora e logo flagra Eli interpretando apressadamente a realidade. Eli não queria ouvir os balbucios daquela mulher; ele queria ouvir sua própria voz empostada.
Por vezes, igrejas e ministros crêem tanto no poder da palavra, isto é, da sua própria palavra, que se esquecem que a Palavra que não volta vazia é a de Deus, não a do homem, por mais maviosa que seja a sua apresentação. Pode-se empostar a voz, mas não se pode empostar a vida.
Se quer ser relevante, a oração da igreja e do ministro ao Senhor que sonda, conhece e esquadrinha nossas mentes e corações (Salmo 139.1-3), não pode ser outra senão a do salmista: “Sonda, o Deus, e conhece o meu coração, prova e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau [algo que te ofende — NVI] e guia pelo caminho eterno” (Salmo 139.23-24). Esta é a oração do cristão humilde, da igreja humilde, da denominação humilde.
Se crerem demais no poder da comunicação e no seu no seu próprio poder, a igreja e os ministros conhecerão a irrelevância e o vazio, por mais que seus ministérios sejam incensados.
Temos que prestar atenção para não abrirmos mão de nossa inteligência. Eli perdeu a capacidade de entender o seu tempo. Depois de ter aprendido a como fazer, Eli se esqueceu que precisava continuar aprendendo a como desenvolvendo seu ofício num mundo dinâmico. Transportando para os recursos de hoje, Eli deixou de ler jornal, deixou de ver televisão, deixou de ir ao teatro, deixou de ver filmes. Eli parou no tempo, que jamais pára, uma vez que “a mudança é inevitável. A mudança é constante. “(Benjamin Disraeli).
Seu ofício consistia em repetir o que aprendera, em cantar os velhos cânticos, em requentar as mesmas mensagens, algumas copiadas.
Talvez com Eli, tendo ouvido em algum lugar, mas sem compreender, que ciência e fé não se encontram, como duas retas paralelas, muitas igrejas e ministros abriram mão da ciência, abriram mão de acumular e produzir conhecimento. Se dialogamos com a filosofia, com as ciências sociais e com as ciências biológicas, poderemos responder a algumas perguntas que nos fazem e então afirmar:
– embora o mal e o sofrimento existam, Deus ama o ser humano;
– conquanto os milagres contradigam as ciências, eles são verdadeiros, como manifestações do poder soberano de Deus;
– apesar do discurso relativista, de tudo é verdade, é politicamente correto afirmar que Jesus Cristo é o único caminho para Deus. (Cf. STROBEL, Lee. Em defesa da fé. São Paulo: Vida, 2002, p. 31-116, 199-228.)
Como poderemos nos contrapor ao discurso pangeneticista de que os genes explicam tudo, inclusive o pecado?
O preço do equívoco de ignorarmos o conhecimento, de não dialogamos com a ciência, é alto demais: procedendo assim, igrejas e ministros não conseguem entender o seu mundo e, o que é pior, não conseguem ser entendidos por ele.
Jesus não entenderia o que secretamente pensavam os mestres da lei que testemunhavam o oferecimento do perdão ao paralítico de Cafarnaum (Marcos 2.6).
3. PODEMOS NOS RECONCILIAR COM A NOSSA MISSÃO.
Depois de proferir o insensato julgamento sobre aquela adoradora, Eli pôs o ouvido nos lábios de Ana. A partir deste momento, ele se reconciliou com a sua missão.
Esta é a maravilha suplementar da graça de Deus: por mais afastados que estejamos, nós podemos nos reconciliar com o Deus que nos envia para satisfazer as necessidades humanas, organizáveis em dois grandes grupos: as físicas e as metafísicas.
É dupla a missão da igreja. Cabe contribuir com os diversos organismos sociais para a satisfação das necessidades físicas, como alimento, saúde, educação e moradia. O que estiver ao seu alcance atender, ela está divinamente comissionada a faze. A missão da igreja é, portanto, contribuir para a satisfação das necessidades mínimas das pessoas sob o seu alcance. Nesta tarefa, ela é atriz coadjuvante.
Quando ao segundo grupo de necessidades, elas se relacionam ao desejo humano por relevância. E só Jesus pode dar ao homem esta plenitude. E para esta outorga, Jesus chama a igreja, cabendo, portanto, mediar o oferecimento de relevância às vidas das pessoas. Nesta tarefa, a igreja é atriz principal.
Ana precisava de um filho. Era a sua necessidade. Era um filho que tornaria relevante a sua vida. Com ele, ela experimentaria como satisfeitas aquelas necessidades que transcendem as dimensões imediatas, como segurança, pertencimento, amor e auto-realização.
Depois que Ana se sentiu segura de que fora ouvida por Deus, aceita pelo sacerdote, amada por Deus, ela se auto-realizou, antes mesmo de ter o filho esperado. Diz o texto bíblico que tão logo foi abençoada por Eli, “ela seguiu seu caminho, comeu e seu rosto já não estava mais abatido” (verso 18b).
A partir daquele momento, Eli se reconciliou com a sua missão. Os fatos seguintes foram confirmando este reencantamento com a vida ministerial, apesar dos pecados dos seus filhos. O filho de Ana foi o filho-sacerdote que Eli não teve. Agora realizada, quando a mãe de Samuel voltou para entregar o filho ao sacerdócio, ela rememorou nos seguintes termos aquele encontro essencial com Eli: “eu sou a mulher que esteve aqui ao teu lado, orando ao Senhor” (verso 26).
Eli se reconciliou com a sua missão quando se pôs ao lado daquela pessoa necessitada. Os ministros se reconciliam com a sua missão quando se põem ao lado das pessoas. As igrejas se reconciliam com a sua missão quando se põem ao lado das pessoas necessitadas. Por-se ao lado — este é o sentido da contextualização que buscamos.
A partir desta reconciliação, Eli se torna um abençoador de pessoas, comunicando a Palavra de Deus, intercedendo com elas e por elas, levando-as ao compromisso (verso 17).
Se a missão tinha entorpecido Eli, o seu exercício atento às necessidades e obediente ao Vocacionador, agora lhe trouxe a possibilidade da reconciliação.
E Eli pôde se reconciliar com a sua missão porque se reconciliou com o seu Deus. Só depois desta experiência com Deus, por meio de Ana e seu filho Samuel, Eli repreendeu a seus filhos (1Samuel 2.23-25), que tratavam com desprezão o ministério que tinham.
A pergunta que eu devo me fazer é que Eli estou sendo, o de antes ou o de depois do encontro com Ana.
Cada ministro deve se fazer a mesma pergunta. Todos devemos nos perguntar se estamos sendo mais como Ana e mais como o segundo Eli.
CONCLUSÃO
Tomando Ana e Eli como paradigmas positivos, quero conclamar a cada um aqui, incluindo integralmente a alguns compromissos:
1. Acreditemos não no poder da oração, nem no poder de quem ora, mas tão-somente no poder do Deus a quem oramos. Orar como Ana orou — eis como devemos orar. O padrão estético do nosso Senhor é diferente do nosso. Ele não vê os lábios. Ele vê o coração. Confiemos menos em nós mesmos, ou melhor, confiemos nada em nós mesmos, e tudo no Senhor que nos ouve, no Senhor que não deu apenas um filho a Ana mais cinco filhos.
2. Unjamos nossas crenças, nossas atitudes, nossos relacionamentos, nossos projetos com o óleo da graça de Jesus. Sim, precisamos de um choque de graça, a graça de Jesus. Depois de sua reconciliação, o Eli que julgava agora era o Eli que abençoava. Tem sobrado legalismo em nossas igrejas, produzindo suas obras: vaidade, rancor, amargura, hipocrisia e intolerância. Precisamos da graça que nos faz produzir o fruto do Espírito Santo: alegria, amabilidade, amor, domínio próprio, fidelidade, mansidão, paciência e paz.
3. Precisamos de um compromisso com a pesquisa, que nos ajude a entender o mundo além dos estereótipos preguiçosos que construímos. Para Eli, era melhor considerar Ana uma filha de Belial, do que estudar a sua alma e a sua mente.
Temos muitos perguntas a responder, e se não as respondermos, outros responderão por nós. A Bíblia nos coloca os princípios para as respostas, mas temos de estuda como profundidade. Se queremos conhecer a mente do mundo, temos que estudar suas palavras. Se queremos compreender a mente de Deus, temos que estudar a Sua Palavra.
4. Precisamos de um choque de santidade, com os seus corolários: integridade, honestidade, sinceridade, simplicidade.
Só cantemos “Santo! Santo! Santo!” com os lábios quando estivermos entoando com a vida a mesma canção. Pastor: se você está afastado de Deus, pare de pastorear. Não faça como os filhos de Eli. Reconcilie-se como o pai dele. Só pregue o que você crê. Só proclame o que você pelo menos tenta viver.
Se firmamos compromissos diante de Deus, façamos como Ana. Seu compromisso lhe custou a dação do seu então único filho.. A despeito do preço, ela o pagou.