COMO É BOM SER UM FORA-DA-LEI (Luiz Sayão)

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        Já faz algum tempo, defrontei-me com uma situação curiosa. Tive a oportunidade de encontrar dois indivíduos, no centro de São Paulo. Identificados como cristãos evangélicos, pusemo-nos a conversar sobre diversos temas bíblicos. Para a minha surpresa, os dois usavam uma barba comprida e disforme, que parecia nunca ter sido aparada. Não demorou para que eles afirmassem que a fenomenologia capilar facial se devia à obediência à lei divina (Lv 19.27).

Para a minha surpresa, tais atitudes já não são tão raras no cenário evangélico nacional. Há gente praticando circuncisão, fazendo rezas judaicas, guardando sábados e festas por motivação religiosa no ambiente evangélico de hoje. Isso nos leva a pensar na necessidade de compreender a questão da lei do Antigo Testamento. Parece que boa parte de nossa comunidade está perdida nesse assunto.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que a lei foi dada num contexto de aliança. YHWH, o Deus de Israel, liberta o povo do Egito e faz uma aliança, ou seja, assinado um tratado com a nação. Esta aliança foi feita com base em um contrato-padrão, usado no Antigo Oriente Próximo, inicialmente pelos hititas. A aliança era um tipo de tratado entre suzerano e vassalo. YHWH liberta Israel do Egito e, por isso, tem o direito de exigir certos comportamentos da nação (Êx 20). A continuação desse tratado traz as conseqüências da atitude obediente ou desobediente de Israel (Dt 27-28). A lei é dada nesse contexto. Com seus 613 mandamentos, expressos de modo sintético nos famosos Dez Mandamentos (Êx 20.1-17), a lei mostrava as exigências de um Deus santo que agora manifestava sua presença ao povo com o qual fizera um aliança específica, a aliança do Sinai.

Em segundo lugar, é preciso entender que a lei não é uma forma inferior de religiosa não desenvolvida dos antigos hebreus. É fundamental entender a lei e o seu papel na teologia bíblica e sua aplicação na realidade do cristão neotestamentário. O texto de Romanos 7 foi escrito em grande parte para nos dar luz sobre o assunto. A lei é a expressão do caráter santo de Deus e revela nossa pecaminosidade: “Que diremos então? A Lei é pecado? De maneira nenhuma! De fato, eu não saberia o que é pecado, a não ser por meio da Lei. Pois, na realidade, eu não saberia o que é cobiça, se a Lei não dissesse: “Não cobiçarás” (Rm 7.7), e mais: “De fato a Lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7.12). Assim, devemos ter uma perspectiva correta da lei, entendendo-a como expressão do caráter santo de Deus.

Em terceiro lugar, é preciso ser ressaltado que a lei não tinha finalidade de justificação. A lei apenas mostrava o nosso pecado. Era como uma tomografia! Nunca foi o remédio.  Conforme a clara expressão de Gálatas 3.11: “ É evidente que diante de Deus ninguém será justificado pela lei …”. Essa é uma das principais diferenças entre o judaísmo e o cristianismo. O judaísmo crê que o homem pode ser considerado justo pela obediência à lei, já o cristianismo afirma que isso nunca aconteceu. Mesmo no Antigo Testamento, a lei servia como base de comunhão com Deus, mas não trazia justiça ao pecador. Os fiéis do Antigo Testamento foram salvos pela esperança da salvação divina futura, proveniente da promessa, e não pela lei. Por isso, lemos em Romanos 4.13-15: “Não foi mediante a Lei que Abraão e a sua descendência receberam a promessa de que ele seria herdeiro do mundo, mas mediante a justiça que vem da fé. Pois se os que vivem pela Lei são herdeiros, a fé não tem valor, e a promessa é inútil; porque a Lei produz a ira. E onde não há Lei, não há transgressão.” O exemplo mais contudente desta verdade é o próprio Abraão que “creu no SENHOR, e isso lhe foi creditado como justiça” (Gn 15.6). Daí a grande insistência do Novo Testamento no fato de que o “justo viverá da fé” (Rm 1.17; Gl 3.11 e Hb 10.38).

Como conseqüência do que já vimos, em quarto lugar precisamos nos lembrar de que não estamos debaixo da lei. Isso significa que não precisamos nem devemos praticar as exigências da lei, ligada à antiga aliança. Isso é muito claro em Gálatas 5.1-6, quando Paulo escreve exortando a igreja contra o perigo do legalismo: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo: Caso se deixem circuncidar, Cristo de nada lhes servirá. De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a cumprir toda a Lei. Vocês, que procuram ser justificados pela Lei, separaram-se de Cristo; caíram da graça. Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a justiça, que é a nossa esperança. Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo amor.” É claro que mandamentos teológicos e éticos permanecem na Nova Aliança. A idolatria, o adultério, o assassinato, por exemplo, permanecem proibidos. Todavia, os aspectos cerimoniais da lei que apontavam para Cristo não devem ser mais praticados (Cl 2.16-18). Assim, guardar sábados, praticar circuncisão, fazer sacrifícios e ter regras dietéticas de Levítico não fazem mais sentido na soteriologia do Novo Testamento. Voltar para tais práticas significa regredir e não compreender o evangelho de Cristo. Paulo deixa bem claro nossa nova posição, livres da lei em Romanos 7.4-6:  Assim, meus irmãos, vocês também morreram para a Lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerem a outro, àquele que ressuscitou dos mortos, a fim de que venhamos a dar fruto para Deus. Pois quando éramos controlados pela carne, as paixões pecaminosas despertadas pela Lei atuavam em nosso corpo, de forma que dávamos fruto para a morte. Mas agora, morrendo para aquilo que antes nos prendia, fomos libertados da Lei, para que sirvamos conforme o novo modo do Espírito, e não segundo a velha forma da Lei escrita.”

Finalmente, devemos ressaltar que o que a lei não pôde produzir, a graça de Deus em Cristo pode produzir, pelo poder do Espírito. O cristianismo funciona de dentro para fora. Em vez de lei externa, temos a lei de Deus em nosso coração. O verdadeiro desejo de obedecer a Deus é colocado pelo Espírito em nós. Esta é a novidade da Nova Aliança. Vejamos as palavras de Paulo em 2 Coríntios 3.3: ”Vocês demonstram que são uma carta de Cristo, resultado do nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de corações humanos.” Com o mesmo enfoque, o autor de Hebreus fala da Nova Aliança, em 8.10-13: “Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles dias”, declara o Senhor. “Porei minhas leis em sua mente e as escreverei em seu coração. Serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. Ninguém mais ensinará o seu próximo, nem o seu irmão, dizendo: ‘Conheça o Senhor’, porque todos eles me conhecerão, desde o menor até o maior. Porque eu lhes perdoarei a maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados”. Chamando “nova” esta aliança, ele tornou antiquada a primeira; e o que se torna antiquado e envelhecido está a ponto de desaparecer.

Diante de tudo o que foi aqui apresentado, é preciso firmar-se na graça neotestamentária, fugindo do legalismo. Assim e somente assim é que vemos como é um bom ser um fora-da-lei.

 

Luiz Sayão