SÁBADO

alt

 
Quando o Filho morreu, na face do Pai a lágrima descia.
Pouco antes, o Filho lhe dissera que tudo estava terminado.
Ele também chorou quando o Filho pediu fosse o fim evitado.
Como em todos os momentos, Ele estava ali ao seu lado.
O Filho sabia, mas sofria. O Filho via, mas sofria.
Enquanto a lágrima caia, a treva subia.
 
Enquanto o Filho, morto, descansava,
o Pai, incansável, outros filhos buscava.
Encontrando, soprou-lhes que um túmulo faltava. 
Um túmulo, novo, foi oferecido.
O corpo, em perfumado lençol, foi envolvido.
José foi adiante e abriu todos os portões.
Nicodemos seguiu depois.
Como em todos os momentos, o Pai estava ao lado,
a treva impedindo que fosse contemplado.
 
Era noite do lado de dentro do sepulcro,
onde o corpo descansava sobre o chão pulcro.
Era noite nas ruas, nas casas e nos corações.
Era noite nas esquinas, praças e vilórias.
Não haveria rodas onde Ele contava histórias.
Não haveria festas em que pulavam as crianças.
Não haveria culto, porque não havia esperança.
 
Estava tudo terminado.
Para os amigos que um dia creram.
Para os indiferentes que o perderam.
Para os inimigos de antemão perdoados.
 
O Adversário andava pela catacumba.
Sorria porque achava que tinha triunfado.
Ao lado do Filho, o Pai estava sentado,
como em todos os momentos e também na tumba,
cabeça no seu colo, em forma de cuidado.
O Adversário se aproximou, à meia-noite:
— Perdi com Jó, mas agora tive melhor sorte.
Aponta para o corpo desfigurado:
— Tudo terminou com a morte.
 
O Pai com vagar se levanta
e com voz clara, mas mansa
faz o que agora sei que era uma promessa..
–Hoje é sábado e meu Filho descansa.
E retorna para o chão onde acampa.
 
O Adversário voltou para o seu canto.
Vigia o corpo para não ser levado.
O tédio da noite embala seu sono.
O Pai se esmera em cuidado:
em nenhum momento seu Filho foi abandonado.
 
A noite lhe é longa, mas amanhece.
Lá fora é dia, mas aqui dentro não:
é noite, noite profunda, ainda.
La fora a fé, nuns, se fortalece,
noutros, não mais se conhece.
Sentado na laje fria, o Pai permanece.
Com força pulsa-lhe o coração,
Entre um e outro satisfeito cochilo
o Adversário a si mesmo se brinda.
 
La fora a história termina.
Lá dentro a história germina.
 
Nas casas das Marias amigas
os ungüentos deixam os armários
e ganham outras especiarias
para visita na manhã que chegaria.
 
Os lábios felizes dos íntimos amigos
são agora imensos pontos de interrogação.
A única certeza, que não vale uma canção,
é que sucumbirão aos perigos,
já que o reino de Deus não chegou
e o sonho de um mundo bom junto se enterrou.
 
Os palácios frenesiavam-se com satisfação.
O império não teria o que temer por anos.
Naquela terra não haveria mais sedição.
Os generais podiam recolher a guarnição.
Ficaria firme a faina dos publicanos.
Arrancar dinheiro do povo seguirá cotidiano.
Os sacerdotes manteriam sua opressiva religião.
 
Os profetas, desolados, ainda clamavam:
— Deus onde estás que não vês isto?
Porque deixaste morrer o Cristo?
Onde está Aquele por quem nossas almas arfavam?
 
Em silêncio, o Pai vigia
o corpo do Filho ao lado
na noite difícil e fria,
como se fosse um derrotado.
 
Aqui dentro o tempo se envolve em mistérios.
Lá fora o tempo troca minutos e horas
até o tempo em que as enlutadas mulheres
podem sair de casa com suas ânforas,
mas não terão corpo para suas cânforas.
 
Aqui fora as mulheres esperam amanhecer,
para que possam fazer sua homenagem.
Lá dentro o Pai prepara a manhã
para pintar o traço final da paisagem.
 
Chegada a hora, no fim da madrugada,
o Pai respira fundo e desenrola o sudário.
Remove a pedra da beirada,
escancara o portão do tartáreo.
Está livre o corpo para a escapada.
 
E noite ainda lá fora.
O Filho na morte ainda mora.
 
O Pai respira fundo e se inclina
— das Suas intervenções esta é a mais linda —
e toma o corpo ainda inerte pela mão
e lhe sopra a vida, como fez com Adão.
 
O corpo animado lentamente se levanta
e pospõe prazeroso o pórtico do portão.
 
O Pai volta ao umbral e põe a tranca,
com o Adversário sufocado por seus gemidos;
até hoje é a única coisa que pode fazer,
enquanto o Filho abraça os amigos.
 
ISRAEL BELO DE AZEVEDO