Quando lançado, o filme dirigido pelo famoso ator norte-americano Mel Gibson, católico confesso, causou muita discussão na mídia. Segundo a maioria dos noticiários, muitos judeus reclamaram do filme, considerando-o um incentivo ao antissemitismo, isto é, uma forte e preconceituosa atitude antijudaica.
A polêmica sobre o filme surpreendeu o mundo acostumado a uma indústria cinematográfica que se coloca geralmente acima da ética. Já houve ameaça até de censura (volta da ditadura!?). Tal interdição talvez viesse a criar mais conflitos religiosos do que se imagina. A verdade é que filmes muito mais violentos são vistos diariamente por adolescentes sem qualquer constrangimento. A imoralidade sexual grosseira e aviltante é “defendida” em nome da liberdade. Até a apologia à droga, à prostituição e a discriminação contra a família tradicional são temas do cotidiano sem que não se diga nada sobre assunto. Além disso, diversas produções “artísticas” que incitam um preconceito antirreligioso, o que envolve preconceito contra valores católicos, judeus, evangélicos e muçulmanos, fazem parte da realidade.
Apesar disso, o objetivo deste artigo não é discutir o filme, mas sim o cenário por trás dessa problemática, que envolve principalmente as relações judaico-cristãs.
Historicamente, os judeus têm lutado por sua sobrevivência e identidade desde os tempos bíblicos. A ameaça da destruição e do aniquilamento dos judeus tem início desde a escravidão egípcia, na época do Êxodo. Depois de enfrentarem povos vizinhos, assírios e babilônios, os filhos de Abraão quase foram extintos durante o período persa, conforme vemos no livro de Ester.
O problema dos judeus tornou-se ainda mais delicado com o surgimento do cristianismo. A igreja primitiva sofreu com a intolerância dos líderes religiosos judeus, como se vê no livro de Atos dos Apóstolos. Mas assim que a igreja teve acesso ao poder, a atitude geral para com os judeus foi nitidamente negativa. Os judeus eram geralmente considerados malditos pelo catolicismo medieval. Foram perseguidos e maltratados. Mediante uma leitura distorcida do Novo Testamento, os judeus foram considerados culpados pelo crime máximo, isto é, o deicídio, isto é, mataram o próprio Deus, encarnado em Cristo. Diante de tal histórico, somado às perseguições sofridas no ambiente europeu, como os pogroms e o próprio holocausto, não deve surpreender a atitude de desconfiança e de receio dos judeus da chamada “cristandade”.
Apesar dessa história tão complicada, nos últimos 50 anos as coisas têm mudado muito. Os judeus vivem geralmente em paz em sua grande maioria em países de tradição cristã. A relação entre judeus, por exemplo, é tão boa nos Estados Unidos que a maior desafio dos filhos de Davi é uma possível assimilação. Há inclusive milhares de judeus messiânicos, principalmente nos EUA. A teologia evangélica americana chega a ser nitidamente pró-Israel, a tal ponto, que a segurança e sobrevivência de Israel hoje deve-se em grande parte à teologia evangélica americana! Até a igreja católica, tradicional algoz do povo judeu, tem mudado seu perfil desde o Concílio Vaticano II, e o próprio papa João Paulo II desculpou-se perante os judeus pelos erros do passado.
O aparecimento da obra de Mel Gibson deve ser entendido dentro desse quadro. Infelizmente, a maneira como se vê o filme pode reabrir feridas que devem ser cicatrizadas. Algumas pessoas de perfil antijudaico podem aproveitar-se do momento para promover seus interesses racistas. Alguns judeus radicais podem sugerir que o cristianismo, bem como o próprio Novo Testamento, é essencialmente antissemita. Nenhuma das atitudes pode ser aceita. Todo antissemitismo e todo anticristianismo devem ser rejeitados.
Tanto para cristãos de tendências antissemitas como para judeus radicais deve ficar claro que o evangelho de Cristo nunca aprovou qualquer perseguição contra ninguém. Na verdade, isso não faz o mínimo sentido. Para confirmar o absurdo dessa hipótese, devemos lembrar que o próprio Jesus Cristo é judeu. A igreja cristã primitiva era inicialmente uma igreja totalmente judaica (Atos 10-11). Todo possível sentimento de superioridade dos cristãos gentios em relação aos judeus é criticado pelo apóstolo Paulo (Romanos 11.15-24). Se fosse antissemita, o cristianismo do Novo Testamento teria se destruído, pois tratava-se de igreja cristã judaica. Apesar disso, vemos muitas críticas aos judeus no Novo Testamento, especialmente no evangelho de João. Como entender tais críticas? É preciso ler o texto corretamente, pois os escritores cristãos, que também eram judeus, estavam criticando o judaísmo de seu tempo, como o fizeram os profetas do Antigo Testamento. Não era uma palavra contra a “raça judaica”, mas sim contra uma liderança religiosa específica, que veio a sofrer crítica no próprio judaísmo posterior.
No caso do cerne da discussão do tema em vista, que é a responsabilidade pela morte de Cristo, os judeus não podem nem devem ser punidos ou castigados por causa da morte de Cristo. Jesus ensinou que devemos amar até aos inimigos (Mt 5.44), como poderíamo odiar seus próprios irmãos de sangue?
A morte do messias da fé cristã, Jesus Cristo, deve ser encarada sob duplo enfoque:
1) Quem foi que matou Cristo?
2) Quem é responsável e culpado pela morte de Jesus Cristo?
A leitura mais imediata dos quatro evangelhos revelará que a morte de Cristo teve diversos participantes:
1) Judas Iscariotes, o discípulo traidor, que o entregou para morrer (Lucas 22.21);
2) O governo romano, que condenou a Cristo, por meio de Pôncio Pilatos (Mateus 27)
3) Os líderes religiosos da época (Marcos 14.53-65). A participação dos mesmos é reconhecida pelo próprio Talmude (Sanhedrin) e pelo grande rabino Maimônides (na Epístola ao Iêmen). É muito plausível que a liderança judaica tivesse algum papel no processo, já que rejeitava o próprio Jesus.
4) O próprio Jesus, que entregou a própria vida voluntariamente (João 10.18; 19.30).
5) O próprio Deus, que, conforme a teologia cristã, já havia planejado a salvação da humanidade por meio do Messias (Isaías 53.4-12)
6) Finalmente, com base na teologia de Paulo, o responsável pela morte de Cristo ‘sou eu’. Fui eu (e os meus pecados) que matou a Cristo.
Portanto, a idéia de castigar os judeus por causa da morte de Cristo é absurda! A idéia de que o Novo Testamento é antissemita também é absurda. Toda hostilidade gratuita contra judeus e contra cristãos deve ser condenada. Infelizmente ainda se pode achar hoje, inclusive na imprensa, muito anticristianismo e também antissemitismo. Isso não deve ser aceito.
(Luiz Sayão)