ISRAEL BELO DE AZEVEDO
Deus merece ser louvado, com o louvor sendo uma obrigação (em lugar dos sacrifícios) de todo aquele que nEle confia (Salmo 150) — Louvar não é trocar, oferecendo algo em troca, como se Deus fosse trouxa. Louvar é ter prazer em contemplar a Deus e falar que Ele é amado.
Título: Salmos
Capítulos: 150
Versículos: 2461
Tempo aproximado para leitura: 7 horas
Os Salmos são para ler.
Os Salmos são para memorizar.
Os Salmos são para pensar.
Os Salmos são para orar.
Os Salmos são poemas que eram cantados ou recitados pelo povo de Israel. Foram compostos por vários autores ao longo de cinco séculos, de Moisés (século 15) a Salomão (século 9 a.C.).
“Nascemos”, como escreveu André Chouraqui (numa magnífica introdução ao Saltério), com o livro dos salmos “nas estranhas”, um livro com “150 poemas, 150 degraus erigidos entre a morte a vida, 150 espelhos de nossas revoltas e de nossas fidelidades, de nossas agonias e de nossas ressurreições”. Estamos, pois, diante, não apenas de um livro, mas de “um ser vivo que fala — que nos fala –, que sofre, que geme e que morre, que ressuscita e canta, no limiar da eternidade — e nos torna, e nos arrebata, a nós e aos séculos dos séculos, do começo ao fim…” (CHOURAQUI, André. A Bíblia: Louvores I (Salmos). Rio de Janeiro: Imago, 1998, p. 13) Neste livro, nós nos reconhecemos.
Conquanto dois milênios e meio séculos nos separem dos salmistas e estes autores certamente não reconheceriam o mundo em que vivemos, nós — escreveu ainda Chouraqui — “não deixamos ainda de nos reconhecer em seus cantos, o tempo não desgastou suas imagens e sua mensagem não deixa de ser atual”. (CHOURAQUI, André, op. cit., p. 35)
Pouco sabemos sobre a história de cada salmo e também por isto ele pode fazer parte de nossa história, porque, nascidos na história do seu tempo, os salmos são atemporais. As experiências, em forma de exaltação a Deus ou lamento contra Deus, podem ser lidas hoje como se tiradas do fundo da alma de um poeta nosso contemporâneo. Afinal, como escreveu John Stott, “se qual for o estado espiritual” do coração humano, “certamente há um salmo que o reflete — seja triunfo ou derrota, entusiasmo ou depressão, alegria ou tristeza, louvor ou arrependimento, admiração ou raiva”. (STOTT, John. Salmos favoritos. São Paulo: Abba, 1997, p. 5).
Quanto mais lemos, memorizamos, pensamos e oramos os Salmos, mais compreendemos quem é Deus e mais O adoramos.
ESTRUTURA E FORMA
Os salmos parecem organizados em cinco partes (ou Livros), além da introdução e da conclusão:
PRÓLOGO — Salmos 1 e 2 (convites à felicidade)
LIVRO 1 — Salmos 3 a 41 (pedidos de proteção diante dos inimigos)
LIVRO 2 — Salmos 42 a 72 (gritos de misericórdia)
LIVRO 3 — Salmos 73 a 89 (lamentos, atribuídos a Asafe, diante da triste situação nacional)
LIVRO 4 — Salmos 90 a 106 (renovação da esperança)
LIVRO 5 — Salmos 107 a 145 (cânticos sobre o livramento divino)
EPÍLOGO — Salmos 146 a 150 (cantos aleluiáticos, com convites à adoração)
De vez em quando, na leitura, dependendo da versão usada, nós nos deparamos com informações preliminares aos poemas, como o autor da composição (Davi, filhos de Coré, Asafe, etc.), o título da melodia com que deveria ser cantado (gitith [Salmos 8, 81 e 84] ou sheminith [Salmos 6 e 12]) ou o contexto histórico da sua escritura. Estas informações devem ser consideradas como úteis, embora nem sempre saibamos o que realmente significam. É o caso da expressão “Selá” e que deve significar “Pausa”, embora não tenhamos certeza absoluta.
Os salmos são poesia e devem ser lidos como poesia. Sua leitura demanda uma alma poética. Eles estão cheios de figuras de imagem, sobretudo metáforas.
A poesia hebraica se caracteriza por um ritmo (respiração, diríamos) e por uma forma, dominada pelo paralelismo. O parelelismo pode ser:
. SINONÍMICO (o segundo verso repete o primeiro)
“Os reis da terra se levantam,
e os príncipes juntos se mancomunam contra o Senhor”.
(Salmo 2.2)
. SINTÉTICO ou PROGRESSIVO (o segundo verso acrescente idéia ao primeiro)
“Sem que haja uma palavra na minha língua,
eis que, o Senhor, tudo conheces”.
(Salmo 139.4)
. CULMINANTE (em que os versos vão crescendo em significado até um clímax)
“Atribuam ao Senhor, o seres celestiais,
atribuam ao Senhor glória e força.
Atribuam ao Senhor a glória que o seu nome merece;
adorem o Senhor no esplendor do seu santuário”
(Salmo 29.1-2)
. ANTITÉTICO (em que um verso se contrapõe ao outro)
“Alguns confiam em carros e outros em cavalos,
mas nós confiamos no nome do Senhor, o nosso Deus.
Eles vacilam e caem,
mas nós nos erguemos e estamos firmes”.
(Salmo 20.7-8)
“A ti, Senhor, clamei,
ao Senhor pedi misericórdia:
Se eu morrer, se eu descer à cova, que vantagem haverá?
Acaso o pó te louvará?
Proclamará a tua fidelidade?
Ouve, Senhor, e tem misericórdia de mim;
Senhor, sê tu o meu auxílio.
Mudaste o meu pranto em dança,
[mudaste] a minha veste de lamento em veste de alegria,
para que o meu coração cante louvores a ti e não se cale.
Senhor, meu Deus, eu te darei graças para sempre”.
(Salmo 30.8-12)
. INCOMPLETO (em que um elemento do primeiro verso é omitido no segundo
“Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe,
o mundo e os que nele vivem”
(Salmo 24.1)
O conhecimento destes aspectos ajuda na meditação dos textos, mas não são absolutamente indispensáveis.
SÍNTESE TEOLÓGICA E CONVITES Á VIDA
Embora escrevendo em tempos e lugares diferentes, os poetas dos Salmos têm uma visão coerente acerca de Deus e do ser humano. Vejamos algumas de suas enfases, como ilustrado num determinado salmo:
1. Deus é o Criador e Sustentador da vida. Ele é o rei do universo, da história e do coração humano (Salmo 19) — Por que temos medo de inimigos tão pequenos, se o nosso Deus é tão grande?
2. Deus cuida dos seus filhos como um pastor cuida das ovelhas do seu rebanho (Salmo 23) — Ah, o nosso grande desafio é viver nos limites do seu amor. Para que ir além dos limites deste amor?
3. Deus é justo e está em atuação na história, embora pareça em silêncio, e recompensa os justos (Salmo 37) — Não estamos mais na teologia da aliança (ainda bem para nós, frágeis e desobedientes), o que nos lembra que podemos pecar e nos recorda que podemos nos arrepender e nos garante que seremos perdoados.
4. Deus merece ser louvado, com o louvor sendo uma obrigação (em lugar dos sacrifícios) de todo aquele que nEle confia (Salmo 150) — Louvar não é trocar, oferecendo algo em troca, como se Deus fosse trouxa. Louvar é ter prazer em contemplar a Deus e falar que Ele é amado.
5. A benignidade de Deus dura para sempre (Salmo 107) — Nosso horizonte não alcança sequer o presente todo, quanto mais o futuro.
6. Deus se comunica com o ser humano (Salmo 29) — Como diz uma velha canção, “Deus não vive longe lá no céu, sem se importar comigo”. Pelo contrário.
7. O ser humano é, ao mesmo tempo, frágil e notável, frágil por causa do pecado, e notável por causa de quem o criou (Salmo 22) — Olhar no espelho é bom. Ouvir Natã é bom.
8. Deus espera que os homens sejam santos (Salmo 1) — Entre ser influenciado e influenciar, nossa escolha deve ser influenciar, bebendo nossos valores da Fonte cujas águas não ficam poluída.
9. O homem deve buscar a presença de Deus, no santuário e na vida (Salmo 139) — Nosso coração é e deve ser o teatro da glória de Deus.
10. O ser humano deve e pode confiar no Senhor (Salmo 84) — Esta é a boa bem-aventurança: confiar.
PARA LER DEVAGAR
Cada um de nós tem a sua lista de salmos prediletos, lista que vai sendo enriquecida com nossas leituras e nossas experiências de vida.
Eis uma relação de alguns (apenas dez) salmos que devemos ler, certo de que a sua lista pode ser outra.
Salmo 1 — Deus nos propõe um caminho a seguir.
Salmo 8 — Deus “caprichou” na criação do ser humano.
Salmo 19 — Deus é perfeito.
Salmo 23 — Deus é o nosso pastor.
Salmo 37 — Deus “está de olho” em nós para nos proteger.
Salmo 42 — Deus é a nossa rocha
Salmo 121 — Deus não dorme hora nenhuma.
Salmo 130 — Deus nos ouve.
Salmo 139 — Deus nos ensina a viver.
Salmo 142 — Deus é o nosso refúgio e fortaleza.
O TEXTO QUE MAIS TOCOU MEU CORAÇÃO
Além do Salmo 23 e além do Salmo 42 e além do Salmo 121 e além do Salmo 122 (e tantos outros),
o Salmo 40 é para ser lido e orado.
Releio assim esses versos extraordinários:
Eis a verdade que sei certa:
sou mesmo pobre e necessitado,
mas comigo está preocupado
Aquele que me liberta.
Quando ponho em Deus a minha confiança,
Ele se inclina em direção ao meu rosto.
Meu grito de socorro não cai no silêncio
e me resgata lá do fundo longo do poço.
Não me pedes sacrifício ou esforço,
mas do lugar alto, onde fui posto,
tenho prazer em fazer a sua vontade
e canto a Ele do fundo da minha liberdade.
TEXTOS DIFÍCEIS
Difíceis são os chamados salmos de lamento (cerca de 60) e sobretudo os salmos imprecatórios (como o salmo 137).
Nos poemas de lamento, há gritos de angústia. Eles estão ali como a nos dizer que também podemos lamentar e gritar. Neles geralmente os poetas reconhecem seus próprios defeitos (ou os da nação) e também suas virtudes (ou as qualidades nacionais). O pressuposto é a teologia da aliança, em que o poeta faz a sua parte e espera que Deus faça a sua (por isto, o “levante-se, Senhor”, que tantas vezes lemos). Trata-se de uma teologia antes da graça, logo insuficiente, mas sempre corajosa.
Quantos aos salmos imprecatórios (Salmos 12, 35, 52, 57-59, 69, 70, 83, 109, 137 e 140), a dificuldade é maior. Eis alguns desejos expressos pelos poetas nas páginas da Bíblia:
. “Quebra os dentes deles, o Deus; arranca, Senhor, as presas desses leões!” (Salmo 58.6).
. “Despeja sobre eles a tua ira; que o teu furor ardente os alcance”. (Salmo 69.24).
. “Sejam humilhados e frustrados os que procuram tirar-me a vida; retrocedam desprezados os que desejam a minha ruína” (Salmo 70.2).
. “Sejam eles humilhados e aterrorizados para sempre; pereçam em completa desgraça” (Salmo 83.17).
. “Sejam exterminados os seus descendentes e desapareçam os seus nomes na geração seguinte” (Salmo 109.13).
. “Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha!” (Salmo 137.9).
Devemos ler estes salmos como derramamentos da alma diante de Deus. Quando atingidos, devemos também nos derramar diante de Deus.
Os salmistas, quando pedem que Deus aja e castigue, estão fazendo a coisa certa: deixam com Deus a solução (“vingança” ou justiça). Sim, Ele é justo.
Os mesmos salmistas que imprecam (xingam) também louvam, o que mostra que aquele tipo de grito não é o seu único. Em sua humanidade, mostram sua fraqueza e sua força.
Como escreveu um autor, “a meditação sobre estes salmos e sua aplicação poderiam ser terapêuticas para os que passaram por experiências traumáticas (como abuso infantil). Despejando a natural amargura em Deus, a vítima poderia tornar-se livro para ‘amar o não amável'”. Afinal, “a vingança é na verdade transferida para Deus, deixando aquele que crê livre para perdoar seus inimigos”. (OSBORNE, Grant R., op. cit., p. 302)
PARA MEMORIZAR
. “O Senhor ampara todos os que caem e levanta todos os que estão prostrados”. (Salmo 145.14)
. “Sonda-me, o Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece as minhas inquietações”. (Salmo 139.23)
. “Dêem graças ao Senhor, porque ele é bom. O seu amor dura para sempre” (Salmo 136.1)
. “Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda” (Salmo 127.1)
. “Aleluia! Como é feliz o homem que teme o Senhor e tem grande prazer em seus mandamentos!” (Salmo 112.1)
. “Misericórdia, o Deus; misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia. Eu me refugiarei à sombra das tuas asas, até que passe o perigo”. (Salmo 57.1)
. “Conceda-me o Senhor o seu fiel amor de dia; de noite esteja comigo a sua canção. É a minha oração ao Deus que me dá vida” (Salmo 42.8)
. “Na minha aflição clamei ao Senhor; gritei por socorro ao meu Deus. Do seu templo ele ouviu a minha voz; meu grito chegou à sua presença, aos seus ouvidos”. (Salmo 18.6)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHOURAQUI, André. A Bíblia: Louvores I (Salmos). Rio de Janeiro: Imago, 1998.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
SCHOKEL, Luís Alonso e CARNITI, Cecília. Salmos I. São Paulo: Paulus, 1996.
STOTT, John. Salmos favoritos. São Paulo: Abba, 1997.