A CASA CAIU (o drama de Niterói) — Altair de Assis

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ALTAIR SOUZA DE ASSIS
 
“Menino soterrado no Morro dos Prazeres buscava um lugar seguro para se abrigar.” Esta chamada de reportagem sobre a tragédia das chuvas no Rio lembrou-me da minha infância em Nova Aurora, subúrbio de Belford Roxo.
Aquele menino tinha apenas oito anos. A vida mal tinha começado para ele e já foi ceifada, porque a casa caiu. Como ele, muitas outras crianças tiveram suas vidas preciosas e únicas misturadas à lama dos deslizamentos, entrando para a lista dos que morrem de fome, doenças e pela violência urbana, todos os dias, nesta cidade.
A maioria dos que lerão este post é da classe média, pois estes sempre possuem computador e internet. Geralmente, quem é de classe média nunca morou numa casa improvisada, que com qualquer vento mais forte ou chuva pode cair sobre sua cabeça e o soterrar. Pois eu sei muito bem o que é isso. As classes altas moram bem, comem bem, dormem bem, viajam, tem carros, internet, televisão aberta e a cabo, comida light, tem lazer semanal e férias anuais, comem fora, estudam em universidade pública, pintam e cortam o cabelo no cabeleireiro e fazem as unhas também, além das idas ao SPA e a academia de ginástica. E, sempre voltam para uma casa que não sucumbe ao Da minha infância pobre em Nova Aurora, até hoje, lembro-me muito bem, do pavor que sentia da minha casa desabar, durante os temporais, que a cada ano se repetia, com a precisão dos respeitados relógios suíços. O vento começava do nada e eu, ainda nos meus tenros sete anos de vida, já aprendia lições sobre o pavor solitário. Não teria para onde ir, se a casa viesse a cair, a única saída era apelar para uma santa que, na época, me disseram, nos protegia dos ventos fortes – Santa Bárbara. Minha casa nunca caiu mas vi, lá no alto do morro, uma casa ser derrubada pelo vento, algo indescritível, uma cena apavorante, para uma criança pequena.
Os ricos e a classe média nunca saberão o que é o medo de que a casa caia sobre sua cabeça a qualquer momento, não é mesmo? Entretanto, são estas mesmas classes que detêm a maioria dos recursos do país. São elas que dominam a produção intelectual, a política e que governam quase tudo neste asteróide chamado Brasil – que, infelizmente, não é responsável pelo que ele cativa.
E, aquela rocha rolando em direção a sua casa, esmagando tudo e todos? Já sentiu esse tipo de medo? Pois eu já senti isso também. Na adolescência, morei num barraco que ficava na rota de uma pedra enorme e me dava a impressão que iria rolar a qualquer momento, esmagando minha casa, meus sonhos e, em última instância, a mim mesmo.
Faça chuva ou faça sol, lá estava ela a me aterrorizar. Noite e dia, via aquele monstro cinzento, me desafiando e me causando pavor. Por que eu não saia de lá? Mas, para onde? O desamparo nos deixa paralisados, mesmo diante da morte iminente. As pessoas não saem das áreas de risco porque, na verdade o maior risco que correm é o de fugir para o nada – o nada oferecido pelo Estado.
E, lama e esgoto passando dentro de sua casa, jorrando como uma cachoeira? Já viu isso? Pau, pedra, papel, lama, lata, plástico, fezes era o que se via, a cada chuva forte que caía no Morro do Alemão, meu endereço na adolescência. Lama, lixo e esgoto cruzavam o meu barraco de zinco, madeira mofada e jornal colado na “parede”, para tapar as fendas.
Diante de tragédias como esta de 2010, (foram várias desde o século passado – pessoalmente padeci com a de 1966), que se abateu sobre Niterói, constata-se que a população pobre acaba sendo duplamente vitimada. Na hora do terror, é como se a cidade fosse a mais interessada em pobres do planeta – típico de uma cidade que se omite de fazer o bem, mesmo vendo o mal tomando conta do lugar durante todo o curso do ano: mata e salva, salva e mata, numa esquizofrenia sem fim.
O que ninguém vê ou não quer ver é que estas pessoas pobres, soterradas, enlameadas e dês-casa-das, estavam neste planeta, neste asteróide, muito antes da chuva cair – aí está o crime! Eram invisíveis para as classes abastadas e os governantes vazios de valores elevados – se não corruptos, claramente incompetentes; se não incompetentes, claramente despreparados; se não despreparados, claramente perdidos num gerenciamento para o qual não se preparam para exercer.
A moça sepultada nos escombros era sua faxineira. O rapaz cortava sua grama, era seu lixeiro ou seu pedreiro, a senhora era sua babá, sua cozinheira, sua passadeira ou sua manicure. O mesmo favelado mal educado e sem educação é o que faz a sua vida Quem é altruísta de verdade, o é o ano todo, não só nas hecatombes. Favelas (e encostas) e pobres estão aí o ano todo, não só no carnaval e nas calamidades. Basta olhar com cuidado ao seu redor, para cima no alto do morro, para baixo nos grotões, A educação pode salvar muitas vidas. Não adianta só criticar os favelados por permanecerem em locais de risco, nas encostas íngremes. Não adiante dizer que é porque são preguiçosos, ignorantes ou porque querem ou gostam de bagunça mesmo.
Estas teses não explicam e nem resolvem o problema, na verdade só o agravam. Ninguém, em sã consciência, quer morar numa casa em situação de risco, porque quer morrer. O valor do lar, do cantinho privado, mesmo que seja um barraco furado, sujo e horroroso, como aquele em que morei parte da minha vida, é maior que a perda da vida – a morte. A dignidade não está na grandeza da moradia que temos, mas dentro do nosso coração como um valor inalienável, a não ser pela morte.
Temos, sim, que ajudar a educar a atual geração das comunidades populares (favelas), suas crianças e adolescentes, para que possam fazer escolhas corretas para a vida, quando chegarem à idade da decisão – que na realidade de uma comunidade popular é agora e prá hoje. Para que possam, no futuro, construir sua casa e sua família com dignidade, sem colocar em risco sua integridade física e de sua família, de forma irreversível. Isso tem que ser possível num país decente, só que não tem sido possível neste asteróide em que vivemos hoje.
Contudo, esta não é uma tarefa para ser feita com espasmos de altruísmo e/ou heroísmo, como sempre se vê nas cidades e nesse país, mas tem que acontecer todo dia, toda hora, dia e noite, de forma avassaladora. Para isto, é preciso renunciar a um monte de privilégios dos quais, em geral, você não abre mão, porque é mais fácil esperar por alguma oportunidade para, de tempos em tempos, mostrar a sua grande bondade.
Ficamos chocados quando morrem muitos de uma só vez, mas o genocídio nesta cidade é diário, chova ou faça sol…Quantos mesmo, por 100 mil por ano? O crime é esse. Já existem ciência, tecnologia, sistemas de gerenciamento integrado e capital humano para evitar essas tragédias ou, na pior das hipóteses, mitigar os efeitos, como desta que se abateu sobre o Estado do Rio de Janeiro.
A natureza sempre avisa o que vai fazer. As grandezas físicas que controlam o clima e o tempo formam sistemas dinâmicos, altamente não lineares, com possibilidade de caos – significando, que pequenas mudanças nas condições iniciais, podem causar grandes mudanças no estado final do sistema. Cabe aos homens a competência de lançar mão da tecnologia para avaliar um cenário de risco no clima ou no meio ambiente. Para isso temos todo tipo de ferramentas estatísticas, matemáticas, computacional e tecnológicas – como satélites, balões, aviões especiais e radares metrológicos – para fazer previsões.
Agora me pergunto, o que seria desse estado se, simultaneamente a um evento de chuva forte, tivéssemos um evento nuclear na usina de Angra dos Reis, quem iria gerenciar a crise? Pelo visto, mais uma vez seria o Dr. Caos. Culpar a chuva, pelo estrago visto e vivido por todos nós é, no mínimo, uma atitude muito feia dos governos local e central, e é um crime contra os que morreram em vão.
Só resta ao MP e demais órgãos de defesa da população acompanhar muito de perto o desenrolar desse evento catastrófico, tomando as medidas que lhes são prerrogativas de Estado, para que uma perda desta magnitude nunca mais ocorra neste país, por negligência do Estado Brasileiro seja de que partido for.
Urge uma mudança imediata de postura da sociedade brasileira para com as condições de vida nas comunidades populares. Num giro pelos subúrbios do Rio, pelos “Bumbas” de Niterói e por São Gonçalo é apavorante o descaso das autoridades para com estas áreas. Quando se passa, por exemplo, pelo Jardim Catarina via RJ104 ou pelo Jacarezinho descendo a Av. Dom Elder Câmara é como se estivéssemos em Mogadício. 
De metrô, da estação Carioca até Del Castilho, passando pela Mangueira, Triagem, Jacarezinho e Maria da Graça tem-se uma verdadeira “Rota da Desesperança” de tanta favela, lixo e abandono. Quando chove nestas áreas é um verdadeiro caos, por causa do volume assustador de lixo nas ruas e córregos. E ainda querem me convencer, que a culpada da tragédia das favelas é a chuva?!!
Termino, fazendo duas observações e uma conclusão. É gritante o caos governamental que se estabelece em tempos de crise. Em plena era da comunicação com blog, Orkut, Twiter, Facebook, email, texting, etc., é grande a falta de cultura de segurança, de efetivo treinado, de equipamento apropriado como simples bombas para drenar o excesso d’água, enfim, de coordenação geral linkada com a população e de pulso firme – ah, disso não posso falar, porque o governo permitiu um jogo de futebol no maracanã mesmo neste caos. E os bombeiros, como sempre heróicos, dando o suor e a vida para mitigar as lambanças do poder público, salvando quantos podem salvar, mas não No fundo, o que importa mesmo é fazer tudo certo…antes da chuva e antes da casa cair!
 
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Prof. Dr. Altair Souza de Assis
Físico de Plasma, Prof. Titular de Métodos Matemáticos da UFF, Ex- Diretor de Segurança da CNEN, Especialista em tratamento de lixo, Ativista de Direitos Humanos, Especialista em Violência Urbana e Presidente da ONG CCDIA.