É INÚTIL MANTER PURO O CORAÇÃO?
(Salmo 73)
O salmo 73 deve ser lido junto com os Salmos 37 e 49, porque também questiona: se Deus é sábio, soberano e bom, por que permite que os perversos continuem em cena, dando as cartas no mundo e se dando bem? Por que permite que o crime compense?
Em sua indignação, o poeta usa (segundo a tradução da NVI) três vezes uma mesma palavra: “certamente” [conforme a percepção de CÉSAR, Elben. Refeições diárias com o sabor dos salmos. Viçosa: Ultimato, 2003, p. 164], que aparece em três versos (verso 1 — “Certamente Deus é bom para Israel, para os puros de coração”; verso 13 — “Certamente foi-me inútil manter puro o coração e lavar as mãos na inocência”, e verso 18 — “Certamente os pões em terreno escorregadio e os fazes cair na ruína”.) Ele acerta duas vezes, mas erra uma, quase erra, porque não dá o passo que marque sua desistência de Deus. Por pouco, ele não escorregou (verso 2).
Sua experiência nos ensina muito sobre o mundo, sobre nós mesmos e principalmente sobre Deus. Vejamos:
1. Como o poeta, ouvimos e cantamos que Deus é bom, mas, por vezes, esta declaração nos soa distante ou falso (verso 1).
Pode ser que agora agora ou em algum momento da vida, esta bondade não nos pareça viva.
Há situações que desafiam a nossa fé, levando-nos à amargura (versos 3 — “Tive inveja dos arrogantes quando vi a prosperidade desses ímpios”; 14 — “o dia inteiro sou afligido, e todas as manhãs sou castigado” e verso 21 — “Quando o meu coração estava amargurado e no íntimo eu sentia inveja”) e até à perda da fé (verso 2 — “os meus pés quase tropeçaram; por pouco não escorreguei”).
O salmista enumera as suas situações que o afligem (versos 4 a 12). Leiamos estes versos.
Eles não passam por sofrimento e têm o corpo saudável e forte.
(Não é assim que nos sentimos quando vemos as imagens de alguns ímpios, sorridentes, cercados por pessoas saudáveis?)
Estão livres dos fardos de todos; não são atingidos por doenças como os outros homens.
(Mesmo quando ficam doentes, têm dinheiro para pagar os melhores médicos e os melhores hospitais. Lembro-me de um antigo ex-governador e senador que estava sempre bronzeado, mesmo no inverno.)
Por isso o orgulho lhes serve de colar, e eles se vestem de violência.
(O orgulho faz parte da vida dos ímpios, não como defeito, mas como virtude. São elogiados por seu orgulho.)
Do seu íntimo brota a maldade; da sua mente transbordam maquinações.
(Dia e noite, esses ímpios pensam como podem se enriquecer.)
Eles zombam e falam com más intenções; em sua arrogância ameaçam com opressão.
(Então, nos lembramos de um ex-governador e deputado federal, que, acusado de corrupção pelo Ministério Público, elaborou um projeto de lei para limitar os poderes dos procuradores. O acusado ameaça.)
Com a boca arrogam a si os céus, e com a língua se apossam da terra.
(Eles têm a cara-de-pau de dizer que Deus está com eles. Não nos lembramos daqueles deputados “evangélicos” de Brasília, que oraram para agradecer as propinas recebidas? Com a língua, isto é, com a boca, engolem tudo, engolem terras fraudulentamente.)
Por isso o seu povo se volta para eles e bebe suas palavras até saciar-se.
(Com suas palavras, eles seduzem o povo. Quando acontecem as eleições, o povo bebe suas promessas e vota neles. E assim eles se perpetuam.)
Eles dizem: “Como saberá Deus? Terá conhecimento o Altíssimo?”
(O conceito de Deus é de um deus limitado, que não nada, só o que sai nos meios de comunicação…)
Assim são os ímpios; sempre despreocupados, aumentam suas riquezas.
2. Diante destas visões, somos alvos de várias tentações, sopradas assim aos nossos ouvidos. Eis algumas delas:
. Tenha inveja do estilo de vida dos que não crêem. A inveja (daí ser este alvo de um dos Dez Mndamentos: “Não cobiçarás” — Êxodo 20.17) nem sempre é algo claro; pode ser algo sutil que mina a nossa confiança em Deus e em nós mesmos.
. Imite os que são ou parecem ser bem-sucedidos, como tantos fazem, bebendo as palavras dos perversos (verso 10). O primeiro dos Salmos trata do tema da influência, que é ouvir o que os outros dizem ou fazem e considerar que devemos viver como eles vivem. Muitas vezes é algo quase imperceptível por nós mesmos: de tanto ouvir e ver, acabamos fazendo o mesmo.
. Desconfie da bondade e da justiça de Deus. (Você não tem outra escolha, senão a amargura para com Deus. Ele o enganou porque não vale a pena ser puro.) Neste ponto, tendo desconfiado, chegamos ao fundo do horizonte: o que virá depois é tragédia.
. Desista de ser íntegro. (Para que manter sua vida sexualmente ativa apenas no casamento, se os que são infieis nem culpa têm? Para que usar o que você sabe para servir aos outros? Para que ser honesto, se os desonestos são ricos?) É como se gritássemos, desiludidos: cansei de ser puro, esquecidos da palavra de outro salmista: “Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo? Aquele que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente” (Salmo 24.3-4).
. Desista de Deus. O poeta quase traiu a Deus. Escreve o poeta: “Se eu dissesse: Também falarei assim; eis que ofenderia a geração de teus filhos” (verso 15). Este “assim” é o conteúdo dos versos 4 a 14, os mesmos em que o salmista descreve o que inveja nos maus. Ele cogitou que o caminho deles era o melhor. Em alguns momentos, ele teve certeza que era melhor deixar Deus de lado. No entanto, ele parou, quando deixou Deus falar.
3. No entanto, aprendemos, neste salmo e em tantos outros, conferidos pelas experiências de vida, que outras devem ser as nossas escolhas:
. Podemos admitir que é difícil entender a justiça de Deus por causa de nossas limitações (verso 16), mas precisamos nos alinhar com os que têm coração puro, aos quais Jesus chama de felizes (Mateus 5.8).
. Contemplemos quem Deus é (verso 17), porque, se perdermos esta visão, acabaremos tomando como nossa a visão do mundo em que vivemos sobre as coisas.
Neste sentido, lembremos que igreja tem uma tarefa: viver de tal modo que as pessoas vejam Deus. Contemplando quem Deus é, ficamos preparados para aceitar que Ele é o Senhor (versos 18 a 20). Contemplando a Deus, “vemos as coisas como Deus as vê” [Campbel Morgan. Citado por STOTT, John. Salmos favoritos. São Paulo: Abba, 1997, p. 72]. No santuário, nossa perspectiva é corrigida por Deus. Aconteceu assim com o salmista que foi ao templo despedir de Deus, anunciando que desistia dEle. No entanto, “lá o Senhor lhe falou ao coração de modo compreensivo e convincente” [CÉSAR, Elben, op. cit. , p. 165].
Por tanto, na hora difícil em que a santidade parece não valer a pena, voltemo-nos para Deus. Leiamos a sua Palavra, onde está o Seu conselho para nós. Participemos dos cultos com os nossos irmãos. Mesmo que estejamos cheios de dúvidas (ou mesmo de “certezas” sobre a inutilidade da pureza), não abandemos nossa igreja. É cultuando a Deus que descobriremos ou redescobriremos um Senhor completamente justo (versos 18-20 e 27). Esta adoração gera comunhão (versos 25-28).
“A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti.
(É como dizer: “Deus é o meu único Deus. Os deuses dos maus não são os meus. O meu Deus é o único. Quero estar perto dEle. Por isto, eu o cultuo o templo. Por isto, estou diante dele todos os dias, fora e dentro do santuário.]
O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre.
(Reconheço que pode fraquejar, como quase fraquejei, mas sei que não tropecei porque Deus é a minha força. Os maus têm dinheiro, mas eu tenho a herança que Deus me dá, que dura para sempre.]
Os que te abandonam sem dúvida perecerão; tu destróis todos os infieis.
[O fim dos ímpios é uma questão de tempo. Eu, porém, viverei para sempre]
Mas, para mim, bom é estar perto de Deus; fiz do Soberano Senhor o meu refúgio; proclamarei todos os teus feitos”.
[Podemos examinar as alternativas. Nossa conclusão é que o melhor é Deus. Os ímpios se refugiam em suas conquistas, mas meu refugio em Deus, que me conquistou.]
Quando se “enfrenta” com Deus, o poeta reconhece que só Deus é Deus. A alegria volta. Tudo agora volta a fazer sentido de novo. Nada mais deseja senão estar perto de Deus.
Então, o poeta olha para si mesmo. Tem vergonha de que quase fraquejou, mas grita que a sua fraqueza não predominou por causa da força de Deus. Os outros podem ter bens, mas ele tem a herança que Deus lhe dá, que não se mede por coisas, mas com a renovação da confiança em Deus, pela certeza da presença dEle em sua vida, acompanhando sua jornada.
É outra agora a teologia prática do poeta. Os maus não estão mais “com tudo”. O presente dele pode estar bonito, mas seu futuro é triste.
Houve uma mudança no humor e na teologia do poeta, a partir da adoração, que gerou nele intimidade com Deus. Não há nada melhor do que estar perto de Deus. Nada melhor do que a comunhão com Deus.
A comunhão gera confiança. Se olhamos para nós mesmos, vamos confiar em quem? Se olhamos para aqueles que são ímpios, vamos confiar em quem? Então, olhemos para Deus. Olhando para Deus, nós O vemos quem Ele é. Do nosso não sai mais lamento, mas canto; não mais reclamação, mas louvor. O louvor não altera nem mesmo superficialmente quem Deus é, mas nos altera profundamente. Voltamos ao sorriso da confiança.
A confiança inclui a compreensão de como Deus age (verso 24a — “Tu me diriges com o teu conselho”).
Entre vários textos, o do profeta Malaquias 3.14-18 nos ajuda nesta compreensão:
“Vocês dizem:
‘É inútil servir a Deus. O que ganhamos quando obedecemos aos seus preceitos e ficamos nos lamentando diante do Senhor dos Exércitos? Por isso, agora consideramos felizes os arrogantes, pois tanto prosperam os que praticam o mal como escapam ilesos os que desafiam a Deus!’
Depois, aqueles que temiam o Senhor conversaram uns com os outros, e o Senhor os ouviu com atenção. Foi escrito um livro como memorial na sua presença acerca dos que temiam o Senhor e honravam o seu nome.
“No dia em que eu agir”, diz o Senhor dos Exércitos, “eles serão o meu tesouro pessoal. Eu terei compaixão deles como um pai tem compaixão do filho que lhe obedece.
Então vocês verão novamente a diferença entre o justo e o ímpio, entre os que servem a Deus e os que não o servem”.
(Malaquias 3.14-18)
O poeta, diante de Deus, aprendeu que “aquela pessoa que parecia não ter falta de nada não era tão feliz nem tão bem-sucedida como o salmista imaginava. Toda a sua riqueza se limitava ao curtíssimo período de vida que se estende do nascimento à morte”. [CÉSAR, Elben, op. cit., p. 165] Então, o crente estende a mão para Deus e lhe garante: “A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti” (verso 25).
A compreensão produz em nós uma satisfação em e com Deus. Não nos importam mais os maus. Estamos com Deus. Ele nos importa, porque Ele se importa conosco.
Que o nosso canto seja:
“O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas
Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre.
Os que te abandonam sem dúvida perecerão; tu destróis todos os infiéis.
Mas, para mim, bom é estar perto de Deus;
fiz do Soberano Senhor o meu refúgio;
proclamarei todos os teus feitos”
(versos 26-28)
(versos 26-28)
ISRAEL BELO DE AZEVEDO