O templo de Jerusalém era o lugar por excelência de culto entre os judeus. As pessoas faziam romarias em direção ao templo, que ficava num lugar elevado, sobre o monte Sião (ou monte santo). Enquanto peregrinavam, cantavam e dançavam. Os compositores prepararam salmos para estes momentos, alguns dos quais estão preservados, como o Salmo 121, cuja melodia desconhecemos:
“Elevo os meus olhos para os montes; de onde me vem o socorro?
O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra.
Não deixará vacilar o teu pé; aquele que te guarda não dormitará.
Eis que não dormitará nem dormirá aquele que guarda a Israel.
O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua mão direita.
De dia o sol não te ferirá, nem a lua de noite.
O Senhor te guardará de todo o mal; ele guardará a tua vida.
O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre”.
(Salmo 121 — ARA)
Imagino que o poeta escreveu este salmo recordando sua participação numa destas caminhadas e o compôs para que pudesse ser cantado ao longo da jornada. O canto é, na verdade, uma bênção, para ser proferida individualmente por um sacerdote ou por um amigo, durante a romaria. Mais tarde, no contexto do culto, o solista, representando estar angustiado diante dos perigos, perguntava e o coro lhe respondia, infundindo-lhe confiança.
Na introdução da bênção (versos 1-2), o poeta se dirige a si mesmo. Sua resposta é para alguém próximo (versos 3-8) ou para si mesmo, já que o recurso de falar a si mesmo é recorrente no saltério (como nos salmos 42.5,11; 43.5; 62.5 — “Descanse somente em Deus, oh minha alma; dele vem a minha esperança”; 116.7. 146.1).
O templo para onde ia a caravana ficava no monte Sião. Os crentes olhavam para ele e os seus olhos imediatamente iam além, para cima, alcançando o firmamento. Ele pensa no templo, onde estaria e cultuaria. Ele, então, começa a meditar. Da meditação, vai para a contemplação de quem Deus é e do que Deus faz. Embora esteja (ou se imagine) na multidão, ele está só, ele medita silenciosamente, ele se encontra consigo mesmo.
Sua pergunta é a questão essencial da impotência humana, embora aparecendo sob diferentes formas: “De onde me vem o socorro?” (verso 1) quando estou aflito? Quem me livrará dos apertos e dos perigos? Quem me socorrerá no tempo da adversidade e da enfermidade? Quem impedirá que meus inimigos internos e externos me causem danos? Quem me livrará de mim mesmo, como no grito do apóstolo Paulo: “Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte?” (Romanos 7.24)
O poeta canta a resposta: “o meu socorro vem do Senhor” e de mais nada e de ninguém mais. Quem me liberta é o Criador dos céus e da terra. Quem me toma pelas mãos é o meu Deus, o Deus eterno, não o deus dos montes.
Quando lemos a história do povo de Israel, notamos que Deus falou e revelou a sua glória nos montes (Êxodo 17, 24 e 34). Mais tarde, quando sugiu o templo, ele foi edificado sobre um monte, o monte Sião, símbolo da presença de Deus. No templo, a sua glória se manifestava (Isaías 6). Há um elogio aos montes, sobretudo ao monte Sião, onde o templo foi fincado: “O Senhor edificou sua cidade sobre o monte santo” (Salmo 87.1) Então: “Por que, oh montes escarpados, estão com inveja do monte que Deus escolheu para sua habitação, onde o próprio Senhor habitará para sempre?” (Salmo 68.16)
Jesus gostava de orar no monte, embora o fizesse em qualquer outro lugar. Era-lhe comum sair “para o monte a fim de orar” e passar “a noite orando a Deus” (Lucas 6.12. cf. Mateus 14.23).
O monte acabou tomado como o lugar onde Deus mora ou onde deve ser cultuado, o que explica a dúvida da samaritana a Jesus: “Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar” (João 4.20)
Como é forte a tentação em confiar em coisas, alguns transformaram os montes em centros de idolatria, isto é, de anticulto a Deus. As pessoas, ao contrário da orientação divina, “ergueram colunas sagradas e postes sagrados em todo monte alto e debaixo de toda árvore frondosa” (2Reis 17.10) Os israelitas — lamenta um profeta — “se lembram dos seus altares e dos postes sagrados, ao lado das árvores verdejantes, sobre os montes altos” (Jeremias 17.2)
Ainda hoje, mesmo entre cristãos, há os que acham que, adorando no monte, suas orações serão ouvidas por Deus de um modo especial. Por isto, há pessoas que realizam vigílias de oração em lugares montanhosos, sozinhos ou em grupo, achando que, por estarem ali, serão abençoados, como se a bênção fosse uma questão de retribuição e não de graça.
Podemos olhar para os montes e ver apenas o que são: montes; podemos olhar para os montes e contemplar o Deus que está além e acima dos montes. Podemos subir os montes e achar que encontramos Deus ou pensar que o sacrifício de os subir nos tornará mais dignos da misericórdia de Deus. Os montes nos convidam, ao mesmo tempo, à fé e a idolatria.
Idolatria tem a ver com magia, isto é, com a crença num deus que atua no certo lugar, a partir de palavras-chaves. Fé é confiar em Deus como aquele que “me livrará de toda obra maligna e me levará a salvo para o seu Reino celestial. A ele seja a glória para todo o sempre. Amém”. (2Timóteo 4.18) Na idolatria, os montes ocupam o lugar de Deus. Na fé, os montes são um convite à confiança em Deus.
Sabe o poeta que os montes podem ser tomados como mediadores de Deus. “Podemos subi-los com os pés ou com o olhar; a ascensão, porém, há que se dirigir a Deus”, como toda contemplação. (SHOEKEL, L.A., CARNITI, C. Salmos. São Paulo: Paulus, 1998, v. 2, p. 1462)
Quando temos fé, descobrimos a verdade que o imaginário coro ou o sacerdote entoa:
“Não deixará vacilar o teu pé; aquele que te guarda não dormitará.
Eis que não dormitará nem dormirá aquele que guarda a Israel.
O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua mão direita.
De dia o sol não te ferirá, nem a lua de noite.
O Senhor te guardará de todo o mal; ele guardará a tua vida.
O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre”.
(Salmo 121.3-8)
Uma outra versão (NVI) nos ajuda na compreensão da profundidade do salmo:
“Ele não permitirá que você tropece; o seu protetor se manterá alerta,
sim, o protetor de Israel não dormirá; ele está sempre alerta!
O Senhor é o seu protetor; como sombra que o protege, ele está à sua direita.
De dia o sol não o ferirá, nem a lua, de noite.
O Senhor o protegerá de todo o mal, protegerá a sua vida.
O Senhor protegerá a sua saída e a sua chegada, desde agora e para sempre”.
(Salmo 121.3-8)
O título para este salmo poderia ser “Deus guarda” ou “O guardião”. Por seis vezes, o verbo guardar aparece nesses oito versos. (A NVI prefere “protege” “protetor”, que aparecem sete vezes.)
O GUARDIÃO
Então, lemos:
“Não deixará vacilar o teu pé; aquele que te guarda não dormitará.
Eis que não dormitará nem dormirá aquele que guarda a Israel”.
(Salmo 121.3-4)
Deus nos guarda em nossa caminhada na vida, evitando que tropecemos.
Como o salmo foi feito para ser cantado na subida para Jerusalém, o poeta começa descrevendo o cuidado de Deus com uma possibilidade comum — o tropeço — que Deus torna impossível. Nossa caminhada é feita em meio a curvas, buracos e pedras. Assim são as estradas, cheias de curvas, e nós não sabemos o que vem depois delas, mas Deus as conhece e nos guarda. São assim as ruas das cidades, cheias de buracos, e nem sempre os vemos, mas Deus os vê e nos guarda. Os nossos caminhos são feitos de obstáculos, como pedras, pedregulhos, ressaltos, mas Deus os nota e nos guarda. Deus está sempre atento. Ele é como um guardião de piscina, que jamais falha. Ele é como um salva-vidas na praia, que a tudo vê. O guardião (ou protetor ou sentinela) está sempre alerta. Ele não dorme, nem cochila. Ele não tira férias, nem folga. Como Baal, os deuses dormem (1Reis 18.27), mas Deus sequer cochila.
Então, podemos dormir porque o sentinela divino não dorme. Podemos nadar porque o guardião não falha. Podemos viver porque Deus está ao nosso lado.
O SOMBRA
Como isto é possível?
O salmista celebra:
“O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua mão direita.
De dia o sol não te ferirá, nem a lua de noite”.
(Salmo 121.5-6)
O guardião humano falha.
Quantos homens de grande poder, guardados por tantos seguranças, são assassinados! Os seguranças humanos falham, porque não conseguem ver tudo e porque, conquanto bem preparados e bem intencionados, ficam cansados. Noutras vezes, a tecnologia do ataque é mais vigorosa do que a da defesa. Por isto, outro salmista diz que, se os bandidos quiserem atacar, em vão vigiarão as sentinelas, “se o Senhor não guardar” (Salmo 127.1).
Outro poeta convida: “Alegrem-se todos os que confiam em ti; exultem eternamente, porquanto tu os defendes; sim, gloriem-se em ti os que amam o teu nome” (Salmo 5.11) Assim, enquanto “uns confiam em carros e outros em cavalos”, somos chamados a fazer “menção (isto é: clamar) do nome do Senhor, nosso Deus” (Salmo 20.7).
A tarefa de nos guardar pode parecer irrealizável, mas não é impossível para o nosso Deus, que é quem nos guarda. Deus é mais alto que os montes elevados. Deus é maior que os nossos problemas reunidos e em ação todos ao mesmo tempo.
Uma das formas de Deus guardar é abrir uma sombra sobre o caminhante, de modo que se esforce menos e gaste menos energia, e sofra menos a força do calor do sol. Deus é apresentado como sendo a própria sombra. Outros salmistas imaginam-nO como tendo asas para produzir sombra, o que leva ouro poeta a orar: “esconde-me, à sombra das tuas asas” (Salmo 17.8) Um poeta exalta a Deus nos seguintes termos: “Quão preciosa é, oh Deus, a tua benignidade! Os filhos dos homens se refugiam à sombra das tuas asas”. (Salmo 36.7)
Podemos ainda pensar que Deus é “o sombra”, como na brincadeira, para mostrar alguém que tão próximo está do outro que parece invisível. Para além do humor, “o sombra” acompanha seu amigo e é capaz de protege-lo muito bem. A proteção è à “mão direita”, isto é, o lado direito, o lado da força, para quem é destrógiro. Por isto, a “mão direita” é mais que a mão direita: é a pessoa inteira. Deus, então, guarda a pessoa toda, em suas dificuldades.
O simbolismo da imagem não para de crescer, porque, topograficamente, a “mão direita” aqui é também “o meio dia”, o momento em que o sol está mais forte e impõe mais riscos ao caminhante. A força deste cuidado se amplia no verso seguinte, quando o sol e a lua são mencionados. O sol e a lua são os senhores do dia e da noite. O sol fere com sua força; a lua, por ser mais fraca em sua intensidade, permite um pouco de trevas, onde se abrigam os salteadores. Mais ainda, sol e lua são indicações de tempo. Deus nos guarda 24 horas, sem intervalo, já que não teme o sol nem dorme de noite.
O COMPANHEIRO
O poeta trabalha com pares opostos de imagens. Até agora, contrastou sol/lua; dia/noite.
Agora, ele nos oferece mais três pares: mal/vida, saída/chegada, agora/sempre, como lemos.
“O Senhor te guardará de todo o mal; ele guardará a tua vida.
O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre”.
(Salmo 121.7-8)
Esses três pares salientam o papel de Deus como nosso companheiro, pelo que o poeta começa por dizer que o Senhor nos guarda “de todo o mal” (isto é, do mal que resulta em morte), para nos guardar a vida. Todo o poema guarda grande parentesco com o salmo 91, mas sobretudo nesta esperança, próxima do outro salmo: “nenhum mal o atingirá, desgraça alguma chegará à sua tenda” (Salmo 91.10).
Nossa vida, como nos mostra nossa história natural e nosso dia a dia, é feita de saídas e chegadas. Quando entramos na vida, é porque saímos do ventre. A saída da vida (pela morte) é chegada no céu. Nestas entradas e saídas, como a saída de manhã de casa para o trabalho ou da cama para a casa ou a rua, como a chegada em casa ao fim do dia ou ao descanso ao fim da jornada em casa mesma, Deus nos acompanha. Ele não tem medo da luz nem das trevas. Eles nos acompanha em todos os momentos, desde quando saímos de casa até quando voltamos em segurança.
O cuidado de Deus que se mostra tão evidente hoje que nos mergulha na eternidade, porque a sua companhia “para sempre” jamais terá um ponto final.
COMPARANDO COM A NOSSA EXPERIÊNCIA
Nossas experiências variam e pode ser que, para alguns, esta declaração entre em choque com muitas perguntas. Uma delas é: se não tenho experimentado este cuidado, há algo de errado comigo?
Quando lemos este salmo, tendo o Salmo 91 no horizonte, parece que somos autorizados a viver de modo temerário, porque os anjos nos protegerão ou que o Senhor nos guardará. Afinal, todas as coisas não convergem para o bem dos que amam a Deus? (Romanos 8.28)? Esta promessa parece ser um eco de outra, presente no Salmo 91, quando Deus mesmo diz: “Porque ele me ama, eu o resgatarei; eu o protegerei, pois conhece o meu nome” (Salmo 91.14)
O amor do homem para com Deus é a resposta esperada. Quem ama a Deus deixa a sua vida com Deus, para Ele fazer como quiser. Quem ama a Deus confia nEle independentemente das intervenções (milagres) que faça. Quem ama a Deus tem prazer naquilo que Ele ensina.
Amar a Deus é confiar em Deus. O que esta demonstração de confiança em Deus tem a ver conosco?
A declaração sobre Deus como guardião surgiu da experiência de culto (na romaria, no templo ou na solitude) e o culto é sempre o território do exercício da confiança. Aproximamo-nos da experiência do poeta quando notamos que as afirmativas de fé são uma resposta ao amor de Deus. É como se o crente estivesse em dúvida sobre o amor de Deus e, então, ouve a resposta magistral: é dEle que vem o socorro, seja o milagre, seja a força para a vida. Sempre que contemplamos a Deus, no culto (particular ou público), nossa fé-confiança é renovada.
Como o poeta, devemos afirmar nossa confiança total em Deus. Só o exercício desta confiança em Deus nos livra do poder da ansiedade sobre nossas almas. A confiança deve ser o nosso olhar.
O olhar de Deus sobre nós é o seu modo de nos acompanhar amorosamente.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
O OLHAR
O OLHAR
(Salmo 121)