(da série “A última palavra”, 3:)
VIVA A CIÊNCIA! CUIDADO COM A CIÊNCIA
A ciência explica tudo.
Esta é a imagem mais comum em torno da ciência.
A palavra “ciência” inclui o conhecimento científico e suas aplicações, conhecidas genericamente como tecnologia.
Sempre houve ciência e sempre houve tecnologia na história da humanidade. A ciência e a tecnologia sempre fascinaram o ser humano. No entanto, a partir da revolução científica do século 17, quando a ciência obteve um status próprio, ao lado da filosofia, o fascínio foi se tornando cada vez brilhante.
O século 20, ao mesmo tempo em que foi a era das guerras, tornou-se também o tempo em que a ciência, com suas aplicações, alcançou suas maiores descobertas. O século 21 vem ampliando essas conquistas.
Em decorrência destes avanços, no imaginário de muita gente, como o demonstra a ficção de Dan Brown, a ciência está acima dos outros saberes, devendo todos convergir em direção a ela. Em “O Símbolo Perdido”, uma das personagem funda a Noética, a ciência do pensamento, que é apresentado como sendo a maior força do mundo. Esta força é capaz de realizar “a grande promessa de transformar o homem em Deus”. (BROWN, Dan. The lost symbol. New York: Doubleday, 2009, p. 498), tornando-se assim um criador. Com uma das personagens de Dan Brown, muita gente crê que os “nossos cérebros, se usados corretamente, produzem poderes que são literalmente super-humanos”. (BROWN, Dan, p. 500)
Muitos dirão que o que o enredo de “O símbolo perdido” sugere é anticiência, mas sua visão é a de muita gente, numa perspectiva que deifica a ciência.
O PROGRESSO E SUAS MISTIFICAÇÕES
Os cristãos precisamos estar atentos diante destas mistificações.
O progresso da ciência, sobretudo nos seus resultados tecnológicos, bem como as mistificações em torno dela, nos fazem lembrar as palavras do profeta Daniel. No tempo do fim, “muitos correrão de uma parte para outra, e a ciência se multiplicará” (Daniel 12.4 — ARA; No tempo do, “muitos irão por todo lado em busca de maior conhecimento” — Daniel 12.4 — NVI).
É viva também a lembrança do que diz o apóstolo Paulo: “A ciência incha, mas o amor edifica” — 1Coríntios 8.1; “O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica” — 1Coríntios 8.1 — NVI).
Paulo é mais firme quando fala da pretensão da razão. “A mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus. Pois está escrito [em Isaías 29.14]: “Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes”. Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que crêem por meio da loucura da pregação. (…) Porque a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana, e a fraqueza de Deus é mais forte que a força do homem” (1Coríntios 1.18-21, 25).
Lutero, o reformador do século 16, escreveu (as palavras são fortes), parecendo fazer coro com o apóstolo: “A razão é a maior prostituta do Demônio. Por sua natureza e seu jeito de ser, ela é uma prostituta perniciosa. (…) Ela deve ser banida para os lugares sujos da casa, para a privada”. Disse ainda: “A razão é a maior inimiga que a fé também. Ela jamais serve para ajudar nas coisas espirituais. Antes, muito mais que se imagina, ela luta contra a Palavra de Deus”. Por isto, “a razão deve ser enganada, cegada e destruída. A fé tem que subjugar toda razão, senso e entendimento”. (LUTERO, Martim. Frases traduzidas do inglês e citadas em Cf. CÍCERO, Antônio. As minorias que estão por dentro. Disponível em
Nesses casos, razão e ciência são vistos como sinônimas. Indignado, no século 19, Nietzsche considerou que a fé cristã é “inimiga mortal da sabedoria do mundo”, já que veta a ciência, por estar a serviço da mentira. (NIETZSCHE, F. Citado por CÍCERO, Antônio. As minorias que estão por dentro. Disponível em )
VALORIZANDO O QUE DEVE SER VALORIZADO
Como ficamos, como cristãos?
Os textos de Daniel e Paulo são repetidos de modo a dizerem que o profeta e o apóstolo não disseram. Devemos sempre estar atentos ao que realmente a Bíblia diz.
Em sua profecia, Daniel não condena a ciência (ou o conhecimento, em outra versão), mas anuncia a sua expansão, como tem ocorrido.
Quando Paulo fala que “a ciência incha” (ou o “conhecimento traz orgulho”), o tema é a idolatria, algo amplamente aceito até pela alta intelectualidade grega e romana. É como se o apóstolo perguntasse: como esses sábios não perceberam o engano da existência de múltiplos deuses.
Toda a argumentação do apóstolo Paulo contra a razão é sobre a insuficiência da razão, incluída ai a lei judaica. Não tem nada a ver com conhecimento científico ou com razão. Chama-lo de anti-intelectual por causa dessas afirmações é desonestidade intelectual.
O que deve ficar claro que a razão não é perfeita, porque humana, logo passível de erro, e porque condicionada culturalmente (os argumentos nazistas, por exemplo, eram todos racionais, mas todos hoje os achamos irracionais, por seus resultados e também porque perderam…), faz sentido aceitar a idéia, proposta na Bíblia (Salmo 19.9, Provérbios 1.7, 14.27, 19.23, 2Coríntios 10.5) de que a razão é aperfeiçoada (não negada) pela fé.
Precisamos, então, valorizar a ciência. O mesmo Lutero que refutou a razão como capaz de salvar, disse as seguintes palavras sobre a ciência: “Estamos no amanhecer de uma nova era, pois estamos começamos a recuperar o conhecimento do mundo exterior que estava perdido desde a queda de Adão. Nós agora observamos as criaturas de modo adequado. Então, pela graça de Deus, estamos prontos para reconhecer na delicadeza da flor as maravilhas da bondade e da onipotência divina”. (Citado por SPITZ, Lewis W. The Renaissance and Reformation Movements. Chicago: Rand McNally, 1987, p. 582.)
A visão de Lutero fica mais clara quando discute o papel dos remédios no tratamento. “Foi o nosso Senhor Deus que criou todas as coisas e elas são boas. Portanto, é permitido usar remédios, que foram criados por Deus”. (LUTHER, Martin. Table Talk. Traduzido por Theodore G. Tappert. Philadelphia: Fortress Press, 1967, p. 54.)
A FACE BOA
A leitura da Bíblia e dos autores cristãos nos ajuda a por as coisas nos seus devidos lugares, inclusive mostrando o equívoco da onisciência e onipotência da ciência.
A resposta a este equívoco não pode ser outro equívoco, o de tornar a religião onisciente e onipotente. Deus o é. A religião, não.
Ninguém pode ser contra a ciência, quando ela nos ajuda a compreender e transformar a realidade.
Ninguém pode ser contra a tecnologia, quando ela torna nossa vida mais saudável e mais agradável.
Enquanto usufruímos dos seus benefícios (que são tantos!), precisamos ser críticos, para que seus produtos sejam mesmo benéficos.
Um cirurgião médico com quem conversava sobre os cânceres de uns amigos me lembrou, um dia destes, dos avanços da medicina.
— As pessoas que tenho operado têm tinha uma sobrevida cada vez maior. Mas isto não se deve a nós médicos. Este progresso se deve aos engenheiros. Depois que eles deixaram de fabricar equipamentos para a guerra e começaram a fabricar equipamentos para uso da medicina, o ganho foi tremendo.
Que bom que os engenheiros estejam mais voltados para a vida, e menos para a morte.
Muitos cristãos parecem preocupados com a ciência, porque ela parece que vai diminuindo o espaço do mistério, território da religião, com suas explicações.
Não devemos nos preocupar. A religião é inimiga da superstição, não da religião. Para tanto, a religião deve perder a pretensão de explicar tudo.
Como escreve uma autora, “a religião não existe para nos explicar a origem do universo. Esse é o papel da ciência. (…) As religiões nos ajudam a lidar com os aspectos da vida para os quais não existem respostas fáceis: a morte, a dor, o sofrimento, as injustiças da vida e as crueldades da natureza. (…) A razão pode até nos curar do câncer, mas não nos ensina a agir ao receber seu diagnóstico nem nos ajuda a morrer em paz”. (ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2010).
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
Este texto é uma introdução a