1Timóteo 3.16-17: LUTERO, CATIVO DA PALAVRA DE DEUS

“Minha consciência é cativa da Palavra de Deus” (Martin Lutero).

(1Timóteo 3.16-17)

Entre as frases de Lutero, há uma que merece figurar no quadro mental de todo cristão. É aquela que proferiu na Dieta de Worms, em 1521: “A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura e já que não aceito a autoridade do papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém”

HISTÓRIA DA FRASE E DOS POSTULADOS DA REFORMA
1. Em 1514, o monge agostiniano Martin Lutero (1483-1546) era professor de teologia moral da Universidade e padre da igreja de Wittenberg. Por esta época, ele convivia com a incerteza acerca da sua salvação, que tanto buscava. Preparando suas aulas, deparou-se com a afirmativa de Paulo, em Romanos 1.17, de que o homem é justificado pela fé. Para ele, foi o que ele mesmo chamaou de “a descoberta do evangelho”, descoberta que mudou a história do Cristianismo.
Já com esta convicção, ele observou, no seu trabalho pastoral, que o povo, em lugar de comparecer à igreja, ia a cidades vizinhas (como Jüterbog ou Zerbst) para comprar indulgências, pelas quais tinham perdoados os seus pecados sem necessidade de confissão (isto é, de arrependimento). Um dos vendedores de indulgência na região, o comissário papal Johann Tetzel (1465-1519), fazia suas ofertas de modo muito ostensivo, dizendo (segundo consta) que “quando o dinheiro tilinta na caixa, as almas dão um pulo para o céu”.
A prática deixou Lutero repugnado e ele passou a pregar contra o comércio de indulgências. Ele escreveu então 95 teses (frases) para servir de debate sobre o tema. Entre elas, podemos destacar três, por sua contemporaneidade:
. “Erram os apregoadores de indulgências ao afirmarem ser o homem perdoado de todas as penas e salvo mediante a indulgência do papa”. (21ª Tese)
. “Todo e qualquer cristão que se arrepende verdadeiramente dos seus pecados sente pesar por ter pecado, tem pleno perdão da  pena e da dívida, perdão esse que lhe pertence mesmo sem carta de indulgência”. (36ª  Tese)
. “Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidade e, a despeito disto, gasta dinheiro com indulgências não adquire indulgências do papa. mas provoca a ira de Deus”. (45ª  Tese)
No dia 31 de outubro de 1517, Lutero enviou cartas a alguns bispos e amigos, com transcrição das teses, sem imaginar a reação que se seguiria. As teses foram impressas pouco depois por diferentes pessoas em diferentes cidades. Tetzel protestou e acusou Lutero de ser um herege, seguidor de Jan Hus, ameaçando-o queimar numa fogueira. Alguns bispos aplaudiram Lutero.
Em seguida, Roma abriu uma inquisição (inquérito) contra ele (1518). Atacado, Lutero se pôs a trabalhar, desenvolvendo uma teologia autônoma, na qual começava a afirmar os postulados fundamentais do que seria a Reforma Protestantes, ausentes nas suas 95 Teses.  Seus primeiros livros (“Mensagem à Nobreza Cristã da Nação Alemã”, “O Cativeiro Babilônico [da Igreja Católica]” e “A Liberdade do Cristão”), escritos sob forte emoção, rompiam com Roma, que ameaçou excomungá-lo se não se retratasse.
A resposta de Lutero foi queimar em público a bula  (“Exurge Domine”) que o ameaçava. O papa o excomungou pouco depois.

2. Para tentar acalmar os ânimos, uma dieta imperial foi convocada por pressão de principies (governadores) que não o apoiavam). Lutero foi convocado pelo Imperador da Alemanha. Apoiado por outros príncipes, que tinha interesses políticos, Lutero compareceu à reunião, realizada em Worms, onde chegou aplaudido pelo povo. No caminho, pregou em várias cidades.
Por duas vezes, ele compareceu diante do Imperador Carlos V. Seus livros foram colocados sobre a mesa. Ele foi perguntado se os livros eram seus e se se retratava de algo ali contido. Lutero pediu tempo para responder e no dia seguinte ele voltou com a seguinte resposta: “A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura e já que não aceito a autoridade do papa e dos concílios, pois eles se contradizem mutuamente, minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém”.

3. Lutero foi dispensado e só não foi preso porque tinha um salvo-conduto que lhe dava 21 dias de viagem em segurança. Quando ele e os príncipes que o apoiavam deixaram a cidade, o reformador foi declarado proscrito e podia ser morto por qualquer pessoa sem que isto fosse um crime.
Para protegê-lo e evitar mais dificuldades para si mesmo, o eleitor (governador) Frederico, da Saxônia, manteve-o recluso em Wartburg. Ali era chamado de Cavaleiro Jorge e deixou seu cabelo e sua barba crescerem. Neste ínterim, traduziu o Novo Testamento a partir do grego, no curto período de 11 semanas.
Quando deixou o refúgio, a Reforma Protestante estava próxima de se tornar uma realidade, para qual Lutero contribuiu com a ação e com a produção de tratados, comentários, tradução da Bíblia e de hinos que foram 36, dos quais o mais conhecido é “Castelo Forte”, de 1529, baseado no Salmo 46.

4. Um dos postulados da Reforma (“sola Scriptura”, a autoridade da Bíblia como regra de fé e pratica) encontrou seu teste-de-fogo em Worms. A busca pela salvação chegara ao fim com a leitura da Bíblia, que lhe permitiu uma nova e maravilhosa definição da justiça de Deus e a conseqüente compreensão de que a fé é indispensável para salvação (“sola Fide”). O embate contra as indulgências estava na formação do outro postulado, de que não há mediadores entre o homem e Deus no seu caminho para o Pai  (“solos Christus”).

Decorrido quase meio milênio da formulação do princípio da autoridade normativa da Bíblia, ainda precisamos dele. Necessitamos entender que a Bíblia deve ser a fonte de nossos desejos e opiniões, bússola para nossas decisões. Não é cristão quem “acha” isto ou aquilo mas aquele que lê a Palavra de Deus, interpreta-a e aplica-a, para si primeiramente e para o mundo em que vive, depois.

A TRISTE ATUALIDADE DAS INDULGÊNCIAS
Olhando para o Cristianismo hoje, podemos vislumbrar a atualidade renovada da prática das indulgências. Ao tempo de Lutero e no nosso, somos bombardeados com o anúncio de um evangelho fácil.
Segundo este evangelho fácil, podemos ter fé sem nos arrependermos; podemos ser evangélicos sem seguirmos o Evangelho; podemos ler a Bíblia, sem conhecê-la e sem seguir os seus ensinos. Precisamos estar atentos a estes convites.

1. Uma fé sem arrependimento destaca que Jesus Cristo é Salvador, que Sua graça é para todos que Ele vem em socorro dos que o buscam. Estas verdades, no entanto, devem ser acompanhadas de outra, que Ele é Senhor e que um cristão é quem submete sua vida ele, começando pelo arrependimento dos pecados. A ordem bíblica é clara: arrependa-se e creia. Narra o evangelista Marcos que, depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho”. Não há fé verdadeira sem arrependimento verdadeiro, que se realiza com a disposição para uma mudança de vida. As novas indulgências apregoadas hoje põem ênfase nas bênçãos de Deus, chegando algumas a condicionar estas bênçãos à entrega de ofertas, não ao oferecimento radical de vidas. Assim como nas indulgências, Deus era obrigado a fazer as almas saltarem para o céu, nas novas indulgencias Deus é obrigado a ser fiel como aqueles que Lhe são fiéis. Os Tetzel de hoje gritam: “Dê tudo para Deus, que Ele vai lhe dar tudo”. Os papéis se invertem: o homem determina e Deus obedece.

2. Um evangelho sem Evangelho produz doutrinas ou práticas sem o apoio da Bíblia, porque baseadas no comodismo de quem as consome ou no interesse pessoal de quem as formula. Na Bíblia não há lugar para amuletos, quaisquer coisas a que se agarre para a proteção. Só Deus, sem nenhuma intermediação, nos conduz, nenhum outro objeto, nenhum outro ser. O desespero de muitos cristãos, o oportunismo de muitos apregoadores e o desconhecimento da Bíblia têm produzido um evangelho absolutamente com conexão com o Evangelho.
Dê Deus uma oportunidade de servi-lO àqueles, por exemplo, que são convidados, e aceitam, a ir a uma praia, porque a água salgada lava os pecados e leva os problemas das pessoas. Ensine Deus àqueles que, seguindo o paganismo moderno, crêem em anjos protetores e enchem seus corpos de broches angelicais. Inspire Deus àqueles que estão nos extremos de achar que Seu poder, por meio de palavras, de dons e de milagres, ficou no passado, servindo-nos apenas agora de inspiração, ou de achar que são os maestros de Deus, pensando bobamente que podem manipulá-lO com uma batuta mágica para faça as suas vontades e não a do Senhor da história e da glória.

3. Uma vida sem a Fonte da vida é tudo menos a vida transbordante, que se desenvolve a partir de um estudo sério e corajoso da Bíblia, sério porque dedicado e disciplinado, e corajoso porque compromissado em viver o que a Palavra de Deus ensina. Deus é a fonte da vida e a Bíblia é a palavra que vem desta Fonte. Se queremos vida, precisamos ler a Sua Palavra. Se queremos vida, precisamos obedecer a Sua Palavra. A Bíblia não está superada, porque Deus não está superado. Corretamente lida, a Bíblia não nega a razão, se a razão estiver cativa de Deus. Inteligentemente lida, a Bíblia não se contrapõe à consciência, se a consciência é regida pelo amor.

A UTILIDADE PERMANENTE DA BÍBLIA
Olhando para o Cristianismo, podemos ver a necessidade da renovação da frase de Lutero.Diante da força dos desejos, da oposição das tendências, precisamos pensar como o Reformador: “A menos que eu seja convencido pelas Escrituras e pela razão pura (…) minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Eu não posso e não vou me retratar de nada, pois não é seguro nem certo ir contra a consciência. Deus me ajude. Amém”.

1. Para tanto, precisamos crer como Lutero, que cria, com Paulo, que

toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino,
para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça,
a fim de que o homem de Deus seja perfeito
e perfeitamente habilitado para toda boa obra.
(1Timóteo 3.16-17)

O apóstolo Paulo deseja que todo cristão seja um homem de Deus, que toda a mulher seja uma mulher de Deus. Esta expressão “homem de Deus”, que significa pessoa que pertence a Deus, que busca fazer a Sua vontade, aparece 70 vezes no Antigo Testamento e duas vezes nas cartas a Timóteo (aqui e em 1Timóteo 6.11), uma claramente aplicada ao filho espiritual de Paulo e outra aplicável a todo cristão.
No Antigo Testamento, são homens de Deus o líder Moisés (Deuteronômio 33.1), os profetas Semaías (1 Reis 12.22), Elias (1 Reis 17.18), Eliseus (2 Reis 4.7), o rei Davi (Neemias 12.24), o funcionário da casa real Jigdalias (Jeremias 35.4) e uma multidão de anônimos (Juízes 13.6, 1 Samuel 2.27, 1 Samuel 9.6, 1 Reis 13.1, 2 Reis 23.16).
Todos foram homem habilitados para desenvolver a missão que receberam, habilitados pela Palavra de Deus. Quando precisaram falar, falaram a Palavra de Deus. Quando precisaram decidir, decidiram segundo a Palavra de Deus. Por isto, foram chamados de homens de Deus, que é como devemos também ser chamados.

2. E nós o seremos se entendermos que a Bíblia foi inspirada por Deus, com objetos claros: ensinar a boa doutrina e educar para a vida reta.
Para tanto, precisamos aceitar e entender que a Bíblia foi inspirada por Deus. Paulo, na verdade, diz que ela foi “soprada por Deus” (theopneustos). Ela se originou na mente de Deus e foi comunicada aos homens por meio de homens e em palavras de homens. Ao longo da história, homens e mulheres captaram a mente de Deus, por uma vida de intimidade com Ele, traduziram-na em palavras humanas, tornando a Bíblia assim uma espécie de tomografia computadorizada do cérebro do Criador. A Bíblia não é Deus, mas palavra dEle. Os homens a escreveram, não foi Deus quem a ditou, porque Deus trabalha em cooperação com os homens. É esta parceria que dá a Bíblia a sua dimensão humana e sua dimensão divina. É por isto que ela nos inspira, ensina e molda.

3. Deus, portanto, inspirou a Bíblia para nos ensinar. A natureza deste ensino, o apóstolo Paulo a apresenta em três dimensões: a dimensão soteriológica, a dimensão teológica e a dimensão ética.

A Bíblia ensina o plano de Deus para a salvação do homem. Ela não é um manual de ciência, a qual valoriza, e não é um livro de história, porque foi escrito para o homem creia. Ciência e historia o homem descobre e descreve pela pesquisa. A salvação, não, esta não vem pela razão, nem pela ciência, nem pelo conhecimento histórico, mas da audição da Palavra de Deus. A Bíblia é o livro da salvação por meio de Jesus Cristo. Ela ensina que todos pecaram e se afastaram voluntariamente de Deus, mas que Deus enviou Seu Filho ao mundo para salvá-lo, para levá-lo de volta ao lar. Ao longo da história, milhares de pessoas têm entendido o plano de Deus para suas vidas lendo a Bíblia. Quem ainda não entendeu este plano e ainda não aceitou o oferecimento do perdão para os seus pecados e ainda não se sente perdoado, e quem sabe nem mesmo pecador, precisa ler, ou continuar lendo, a Bíblia.

Depois desta compreensão de natureza soteriológica, o homem de Deus precisa de uma compreensão teológica, isto é, do entendimento de todo o conselho (plano de Deus), que inclui a salvação e vai além. Estamos nos referindo à utilidade da Bíblia como fonte para um pensar correto. A palavra para este pensar correto é ortodoxia, que tem que ser bíblica, se não, não será ortodoxia, mas tradição e teimosia. Se o nosso pensamento não beber da Fonte bíblica, será bonito, será cortês, será inteligente, mas não terá o hálito de Deus, logo não terá utilidade para uma vida feliz.

A terceira utilidade da Bíblia é de natureza ética. O apóstolo Paulo nos diz que a Escritura bíblica é útil para a educação na justiça, incluindo aí a repreensão e a correção. Se precisamos pensar correto, precisamos viver de modo correto. Tanto quanto precisamos da ortodoxia bíblica, precisamos da ortopraxia bíblica, isto é, de uma vida inspirada por Deus, porque fundada nos ensinos da Sua Palavra. A Bíblia nos ensina a viver e inclui corrigir os nossos erros, evitar os nossos desvios. A Bíblia é sempre a nosso favor, mas, quando suas verdades nos corrigem, ela parece estar contra nós. Na verdade, se ela não estiver contra nós (neste sentido), é porque não a estamos lendo, e, se a estamos lendo, não a estamos levando a sério. Ela tem que nos repreender e corrigir, mesmo quando o erro se enraíza em nós ou mesmo quando parece tão inofensivo.

***
É a Bíblia que nos ensina a sermos homens e mulheres de Deus.

De que está cativa a nossa consciência? Que seja da Palavra de Deus.
Quem nos tem convencido, no agir e no pensar? Que seja Deus, por meio da Sua Palavra.
Que permaneçamos naquilo que cremos, se o que cremos vem da Palavra de Deus.

Se temos tais intenções, Deus nos ajuda a viver estes compromissos rumo à maturidade cristã.