Salmo 63.1-9: QUERO

QUERO

(Salmo 63.1-9)

Há uma ideologia pairando no ar. Não é uma ideologia política. Não é uma ideologia religiosa. Ela está afixada nos luminosos da cidade.
O conteúdo destes anúncios está refletido nas falas de pessoas de todas as idades. Uma vez li a seguinte síntese: “Este foi um fim-de-semana espetacular. É isso que eu quero”.
Convivemos com a ideologia do consumo, que não consumimos como consumo, mas como se fosse o próprio sentido da vida.

Então, leio pausadamente o salmo 63.1-9, em que o poeta apresenta outro sentido para a vida.

[Salmo 063.1-9]
Oh Deus, tu és o meu Deus,
eu te busco intensamente;
a minha alma tem sede de ti!
Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água.
Quero contemplar-te no santuário e avistar o teu poder e a tua glória.
O teu amor é melhor do que a vida!
Por isso os meus lábios te exaltarão.
Enquanto viver, eu te bendirei,
e em teu nome levantarei as minhas mãos.
A minha alma ficará satisfeita como quando tem rico banquete;
com lábios jubilosos a minha boca te louvará.
Quando me deito lembro-me de ti;
penso em ti durante as vigílias da noite.
Porque és a minha ajuda,
eu canto de alegria à sombra das tuas asas.
A minha alma apega-se a ti;
a tua mão direita me sustem.

O salmista tem outra ideologia: que é buscar a Deus intensamente. Intensamente, que palavra ainda nossa contemporânea! Não queremos viver intensamente? “Intensamente” rima com “agora”, com “tudo”, com “corpo”, com “prazer”. Não é tudo o que queremos?
O próprio salmista oferece os passos desta intensidade de busca.

1. CONTEMPLANDO DEUS
Quero contemplar a Deus no santuário e avistar o poder e a glória dEle (v. 2 — “Quero contemplar-te no santuário e avistar o teu poder e a tua glória”).

Contemplar é um verbo estranho para nós.
Contemplar é estar em silêncio diante de algo, como Henri Nouwen diante de “A volta do filho pródigo”, de Rembrandt. Contemplar não é fazer; é não fazer.
Contemplar é ouvir em silêncio o que Deus tem a dizer, por meio da Sua palavra, por meio da natureza, por meio da palavra dos outros. Contemplar não é falar; é ouvir.
Quem contempla está na contramão da história, mas que linda contramão. Um dia destes um banco propôs num anúncio: meditação é a melhor coisa que deve fazer uma pessoa que não quer dinheiro. Senti um tom de lamentável deboche no anúncio.
Precisamos aprender, mesmo contra a nossa cultura, a contemplar. Bom seria que cada igreja tivesse uma capela destinada à contemplação. Um lugar feito para a adoração sem palavras.
No contexto do poeta, ele se imagina no santuário. Para os hebreus, o santuário era uma experiência de exceção. Por isto, outro salmista ora: “Uma coisa pedi ao Senhor; é o que procuro: que eu possa viver na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a bondade do Senhor e buscar sua orientação no seu templo” (Salmo 24.1).
No nosso contexto, agora, o santuário é a regra. A experiência do culto coletivo é múltiplo, acontecendo várias vezes na semana. Talvez por isto banalizamos a experiência, e damos pouca oportunidade para Deus falar. Falamos muito com Ele, que é importante, mas perdemos a oportunidade de ouvi-lO mais.
Vendo-O, ouvindo-O poderemos ter uma visão do Seu poder e da Sua glória de Deus. Sem essa visão, experimentaremos a nulidade da vida, mesmo que forrada de dinheiro, sexo e poder.
Se queremos ser felizes, precisamos contemplar o poder e a glória de Deus.
Contemplar o poder e a glória de Deus é colocarmo-nos no nosso lugar e colocar Deus no lugar dEle. Como é sedutor inverter os papéis. Como, por  vezes, deixamo-nos seduzir por nossas palavras e passamos a ensinar a Deus como Ele deve agir e até de determinar o que Ele deve fazer.
Contemplar o poder e a glória de Deus é fazer uma clara escolha: lutaremos na vida, fruiremos a vida, mas lutaremos e fruiremos na certeza do poder e da glória de Deus, não na depressão de nossa impotência, não na euforia de nossa competência.
Contemplar o poder e a glória de Deus é confiar que o poder dEle não está distante, mas nos alcança, que a glória dEle não está no céu mas circula por aqui, entre nós. O totalmente outro está totalmente conosco. O totalmente diferente de nós não é indiferente a nós

2. VALORIZANDO O AMOR DE DEUS
Quero valorar o amor de Deus como a melhor coisa da vida!  (v. 3 — “O teu amor é melhor do que a vida! Por isso os meus lábios te exaltarão”)

Quero mesmo?
Aqui está o nosso problema.
O salmista diz que o amor de Deus é melhor do que a própria vida. Exagero?
Não quero me alongar aqui. Vou apenas ler o que um jovem de 19 anos de idade escreveu: “Fiz por escrito uma dedicação solene do meu ser a Deus, entregando minha vida e tudo o que eu tinha a Deus; não tendo o meu futuro como me pertencendo; agindo como alguém que não busca mais nenhum direito para si mesmo, em nenhuma área. Solenemente jurei considerar Deus como toda a minha porção e alegria, de modo a não ver nenhuma outra coisa como parte de minha felicidade e não agir como se assim fosse; jurei tomar sua lei como a regra constante para obedecer, empenhando-me em lutar contra o mundo, a carne e o sangue, até o fim da minha vida”. (Jonathan Edwards. Personal Narrative)
O autor deste compromisso se chamava Jonathan Edwards (século 18), que, depois, seria conhecido como um grande pregador.

3. LOUVANDO A DEUS POR CAUSA DA ALEGRIA
Quero louvar a Deus com alegria que vem da minha convicção de que Ele existe e de que me protege com as Suas “asas” e deseja a minha companhia.

Aprendemos com o salmista a razão e a forma do louvor.

1. A razão do louvor está altissonante no verso 7: “[Senhor,] porque és a minha ajuda, canto de alegria à sombra das tuas asas”.
Para o salmista, Deus não é um ser distante, tanto que O imagina com asas que cobrem seu corpo todo. É a forma que encontra para dar visibilidade à presença de Deus na sua vida.
Cada um de nós pode dar asas à sua imaginação e perceber a presença de Deus numa forma própria, desde que esta forma não aprisione Deus.

A forma do louvor é plural e é apresentada em vários versos. Neles aprendemos:

1. Devemos nos comprometer-se a bendizer o nome de Deus por toda a vida (v. 4a — “Enquanto viver, eu te bendirei”). Mesmo que estejamos no deserto, cantemos; com Deus conosco, o deserto é oásis. Ou não cremos que nada nos pode separar do Seu amor?

2. Devemos exaltar a Deus com os lábios  (v. 3 — “O teu amor é melhor do que a vida! Por isso os meus lábios te exaltarão”). Devemos abrir a boca para louvar a Deus.

3. Devemos levantar as mãos no nome de Deus (v. 4b — “em teu nome levantarei as minhas mãos”.)
Entendemos melhor o significado do levantar as mãos em outro salmo (Salmo 141.2), que diz: “Seja a minha oração como incenso diante de ti, e o levantar das minhas mãos, como a oferta da tarde”.
Somos, portanto, convidados a levantar as nossas mãos como uma oferta. É uma herança do livro de Levítico, com instruções sobre orações levantadas. O sacrifício de louvor pode ser levantado também.
Hoje, nas igrejas evangélicas, levantar as mãos na oração ou no louvor não é mais um problema. Há muitos anos, uma aluna no Seminário tinha o hábito, quando ninguém ainda o tinha, de orar ou cantar levantando as duas mãos. Seus colegas riam dela, mas eu os repreendi e ela pôde cultuar a Deus do seu modo, um modo bíblico, por sinal. (Vou dizer o nome dessa aluna, em forma de homenagem: Rosa Edith Fernandes Braga. Visitei-a muitos anos no hospital, de onde não sairia mais. Dos seus sobrinhos ouvi testemunhos do coração que tinha. Ela estava à frente do seu tempo.)
Há coisa boas e coisas ruins no louvor evangélico de hoje. O ruim é a cópia; os grupos de louvor parecem clones de outros; os cantores parecem saídos de uma máquina xerox; os ministros de louvor acham que são pregadores (alguns até se fizeram ordenar como pastores) e têm que pregar um sermãozinho entre cada música, que, depois, é repetida, repetida, repetida, repetida. O ruim é a baixa qualidade melódica e teológica da maioria das letras, feita por gente que parece que não estuda música e não se interessa por teologia e não conhece a Bíblia e não gasta tempo em oração.
Deus nos livre desse louvor, filho da indústria cultural evangélica, importada e brasileira.
Deus nos livre também do louvor engessado, feito de cabeças baixas e bocas carrancudas; de letras difíceis, de músicas duras, sejam elas importadas ou brasileiras.
Cresci cantando o Cantor Cristão; devo saber de cor mais 100 hinos. Até hoje os cantarolo, mas não posso impor esses hinos a quem nasceu dos anos 80 para cá. Aqueles hinos respondiam a necessidades estéticas de uma época que não é nossa. Dirão: mas eles são bonitos. São bonitos porque aprendemos a gostar deles, como podemos aprender a gostar das novas canções. Não vamos gostar de todas, como não gostamos de todos os hinos do Cantor Cristão ou do Hinário Para o Culto Cristão.
Os jovens não podem ter preconceito com o Cantor Cristão. Os adultos não podem ter preconceito com os novos louvores. O Espírito Santo que inspirou Salomão Luiz Guinsburg ou Manoel Avelino de Souza é o mesmo que inspira Asaph Borba ou Ana Paula Valadão.
Música é uma expressão cultural que nós moldamos e que nos molda. A cultura muda. A nossa mudou. Entre Beethoven e os Beatles, prefiro Beethoven, mas não posso negar que ambos responderam às necessidades estéticas de sua época e, ao mesmo tempo, criar estas necessidades. O que é bom fica; o que é ruim desaparece.
Não discuto gosto. Entre um lindo hino e um belo cântico, prefiro o que me aproxime mais de Deus; chego mais perto dele cantando “Maravilhosa graça” ou “Deus de aliança”.
Chega de ditadura, seja dos hinos, seja dos cânticos. Sejam livres para cantar a música que mostre, com beleza, minha condição de pecador e, ao mesmo tempo, abra a janela da graça diante de mim para que possa ser por ela alcançado.

4. Devemos demonstrar satisfação com os banquetes de Deus (v. 5 — “A minha alma ficará satisfeita como quando tem rico banquete; com lábios jubilosos a minha boca te louvará”.).
Não louvamos para ter alegria; isto é louvor antropocêntrico, centrado em nossas necessidades.
Louvamos por termos alegria; isto é louvor teocêntrico, centrado naquilo que Deus é e faz.
O louvor, portanto, é filho da gratidão. Crente ranzinza não louva a Deus. O fariseu louva a si mesmo.

4. DESAFIOS EM FORMA DE PERGUNTA
O salmista diz: “tu és o meu Deus”. Eu pergunto: quem é o seu deus? O dinheiro, o poder, o sexo?
O salmista diz: “eu te busco intensamente”. Eu pergunto: a quem você busca, o que você quer da vida? Quando  diz que busca a Deus, busca-O intensamente, ou apenas socialmente, liturgicamente, indo na onda?
O salmista diz: “tenho sede de Deus”. Eu pergunto: Você tem sede de Deus?
O salmista diz: “Quero contemplar-te no santuário e avistar o teu poder e a tua glória”. Eu pergunto: o que tem feito para contemplar Deus, para ver o poder dEle, para ver a glória dEle?
O salmista diz: “O amor de Deus é melhor do que a vida!” Eu pergunto: Qual a coisa mais importante da sua vida? Quem está acima de tudo na sua vida?
O salmista diz: “Porque és a minha ajuda, Senhor, canto de alegria”. Por que você canta a Deus? Aliás: você tem cantado a Deus, tem agradecido os banquetes que tem posto sobre a mesa da sua vida ou tem reclamado da formiga que invade o seu açúcar?
O salmista diz: “Minha alma está apegada a Deus”. Eu pergunto: a sua alma está apegada a Deus?
Se você tem vivido numa terra seca, exausta e sem água, você precisa de um oásis, o oásis onde Deus aguarda você, para você se apegar a Ele. Para chegar ao oásis do reavivamento espiritual, você precisa renunciar, renunciar o que afasta você de Deus. Você quer mesmo Deus? É isto que você quer?

QUERO
Há deuses disputando o meu coração,
mas só Um quer mesmo o meu bem:
é a Ele que eu desejo como Senhor ter.
Posso tomar muitas águas, que correm,
vindas dos desertos secos da solidão,
mas é a que escorre dEle que eu quero beber.

Os poderes brilham diante de mim,
as luzes piscam me chamando para sair,
os amores pulam no meu corpo para o seduzir,
mas eu quero, com a música e com a vida, repetir:
quero diante do brilho de Deus  me conduzir
quero tão somente pela luz de Deus me dirigir
quero o amor-de-Deus-melhor-que-a-vida sentir,
de manhã quando projeto o dia a ser vivido,
ao longo do dia em que toco esforços e troco prazeres,
à noite quando o descanso supera os afazeres,
na madrugada encurtada pelo intenso lazer curtido
ou alongada pela insônia do sofrimento sentido.

Com meu corpo apegado a Ti, Senhor,
levanto minha voz para o canto,
levanto minhas mãos para o louvor,
vivo na Tua presença como um santo
alimentado por teu amor inesgotável amor.