RODOLFO! (Rui Xavier Assunção)


 

Ele é um gato! …

 

Ignoro se a grafia correta de seu nome é Rodolpho ou Rodolfo. Nunca me esclareceram tal detalhe. Ele também não o sabe pois é  totalmente analfabeto. De pai e mãe. O pior é não poder entender  seu linguajar por mais que me esforce.

Se você está a pensar em um rapagão espadaúdo, atlético, tipo Apolo, saradão, dono de musculatura que os homens invejam, as mulheres admiram e as mais afoitas cobiçam, engana-se redondamente.  Refiro-me a representante da espécie felina, um bichano.

Há pessoas que em homenagem a um fato marcante em suas vidas, ou por qualquer outro motivo, dão a seus animais de estimação nomes de pessoas. Também há as que, carinhosamente, apelidam os seus entes queridos, chamando-os por nomes de animais sem disso se aperceberem. “Lulu”, por exemplo,   nome de cachorro, é caso típico. Isso para mim é  o fim! Tipo de carinho perfeitamente dispensável. Será que o Dr. Sigmund Freud poderia explicar tais comportamentos?

Se tivesse que escolher animal de estimação, jamais escolheria o gato. Prefiro os cachorros. Alguns são estúpidos, está certo, mas ainda assim os prefiro.

Nada tenho contra os felinos e até os acho simpáticos. São higiênicos, pois constantemente estão a se limpar. Quando satisfazem suas necessidades fisiológicas escondem os resíduos. São esnobes. Tem um andar altivo e majestoso. Nem sempre se dignam aceitar o carinho que você lhes quer fazer mas, na carência dele o importunam até que você os acaricie pelo tempo que desejarem.

Já os cães não tem a noção de higiene dos gatos. São barulhentos, mas de lealdade a toda prova. Em defesa dos donos não exitam em arriscar suas vidas. Há cães trabalhadores. Os que ajudam os peões a tanger o gado. Há os de guarda e os que protegem as crianças. Cães policiais. Os farejadores que, nas catástrofes, auxiliam a localizar pessoas. Há os guias de cegos. A espécie canina, bem treinada,  realiza muitas tarefas. Há cães ferozes e há os que são verdadeiras feras, treinados para matar. Destes a prudência manda guardar boa distância. Nunca tente agradar cachorro que você não conhece ou que não o conheça. O resultado poderá ser funesto e o culpado não será o animal.

Admiro os vira-latas. Bravamente lutam pela sobrevivência sempre atentos ao que acontece em derredor. Se você der comida a um deles e ele aceitar o seu afago, você terá um leal amigo para o resto de suas vidas. A sua ou a dele. Se você se for antes, provavelmente o animal não viverá por muito tempo. Considero maldade e burrice manter cachorro em apartamento. Maldade porque violenta a natureza da espécie e burrice porque você se obriga a sair com ele diariamente, chova ou faça sol. Se assim não fizer ele poderá ficar estressado e serei obrigado a concordar com o Ilmo. Sr. Ex-Ministro do Trabalho, quando disse que “cachorro também é gente”, ao justificar o uso de carro oficial para transportar até ao veterinário seu animal de estimação. Lembram-se?

E os gatos? Bem, trabalho não é coisa para as suas majestades. Pisam macia e delicadamente. Ainda ontem o Rodolfo me fez o favor de pular até a mesa onde eu redigia um texto, dedilhando o teclado. O bichano me observou, cheirou aqui e ali e, de repente, passou por cima do meu braço esquerdo, pisou no teclado e o texto sumiu da tela. Pulou para o chão e se foi, como se nada tivesse acontecido. Pelo menos assim me pareceu. 

Ficou viúvo há três dias, o Rodolfo. Anda pela casa a miar tristemente em busca da companheira de muitos anos. Eles habitavam na casa de meu filho, atualmente em obras de reforma. Como residimos no mesmo prédio, meu filho e seus familiares hospedaram-se no meu tugúrio até o término das obras, e deixaram o casal de gatos. Por um motivo qualquer, Mimi, a gata, passou mal. Levada ao veterinário, ficou internada para observação, mas não resistiu e morreu naquela noite.

Minhas netas choraram muito.  

Rodolfo veio para nosso apartamento apesar da Elza detestar gatos desde a meninice. As meninas estão sempre a controlar o bichano para ele não se aproximar da avó. De quando em quando ele burla a vigilância e se põe a examinar o novo ambiente.

Pessoalmente nunca tive problemas com os felinos. Sempre nos respeitamos à distancia, cada um na sua. Que me lembre só vivi um incidente com um gato, causado por acidente.

Eu trabalhava no Posto de Serviço do Banco do Brasil na Base Almirante Castro e Silva, a base de Submarinos da Marinha de Guerra do Brasil, na Ilha de Mocanguê. Lugar aprazível, bonito, com vasto arvoredo e muitos passarinhos. Havia, também, alguns gatos ali mantidos para caçar os ratos, embora eu nunca tenha visto estes roedores. Alguns felinos também caçavam passarinhos, claro está, pois se julgavam no direito de mudar o cardápio de quando em quando.

Certa feita conversava com o Sr. Comandante da Base, em frente ao prédio principal daquele quartel. Inesperadamente recuei um passo e, neste exato momento, pisei no rabo de um gato que se sentara atrás de mim e eu não percebi. O bichano deu um berro, reagiu e me atacou ferozmente. Até hoje não sei se ele me mordeu ou se cravou as afiadas unhas na minha perna esquerda. Embora eu vestisse calça comprida a ferida foi profunda. Por precaução tomei uma série de  vacina anti-rábica. Isso ocorreu há mais de trinta anos, mas até hoje minha perna mostra a marca do incidente ou, melhor dizendo, do acidente. Não tive culpa mas sempre penso na terrível dor que o animal sentiu ao suportar todo o peso do meu corpo naquele involuntário pisão.

O coitado do Rodolfo anda tristonho, em ambiente que não é o seu. Fica a chamar a companheira de tantos anos e que não o pode ouvir. Receio que o bichano morrerá  de saudades. Sentimento muito parecido com o da raça humana, pelo menos de boa parte dela.

Rodolfo e Mimi eram os principais personagens da ópera La Bohème, de Puccini. Dois apaixonados! Ao final do último ato ela morre vitimada pela tuberculose e ele, em sua última nota aguda, grita todo o seu sofrimento. 

É a vida que imita a arte ou é a arte que imita a vida? Eis a questão. Resolvam-na se forem capazes.

Se pudesse  consolaria o triste gato, incutindo-lhe coragem, pois essas coisas acontecem na vida de qualquer um.

 

Rui Xavier Assunção