Salmo 004: MOVIDO A DIVERSÃO

MOVIDO A DIVERSÃO

(Salmo 4.7)

Um poeta e crítico brasileiro escreveu:
“Um espectro ronda o mundo atual: o espectro do tédio. Ele se manifesta de diversas maneiras. Algumas de suas vítimas invadem o shopping center e, empunhando um cartão de crédito, comprometem o futuro do marido ou da mulher e dos filhos.
A média, porém, opta por ficar horas diante da TV, assistindo a “reality shows”, os quais (…) tornam interessante para seu público a vida comum de estranhos. (…)
Ele desempenha um papel em hábitos e atitudes tão diferentes entre si, como o de se dopar com álcool ou drogas variadas em busca de uma realidade alternativa e o de ouvir num templo tal ou qual descrição emocionante dos conflitos contemporâneos para, depois, seguir os ensinamentos de clérigos exaltados.
O mal ataca hoje em dia faixas etárias que, uma ou duas gerações atrás, julgávamos naturalmente imunizadas a seu contágio. Crianças sempre foram capazes de se divertir umas com as outras ou até sozinhas. E, todavia [hoje], os pais se vêem cada vez mais compelidos a inventar maneiras de distrair seus filhos durante as horas ociosas destes, um conceito que, na minha infância, inexistia.
O tédio não é piada, nem um problema menor. Ele é central. Caso inexistisse, não haveria, por exemplo, toda uma indústria do entretenimento e tantas fortunas decorrentes dela”. [ASCHER, Nelson. Como o rei de um país chuvoso. Folha de São Paulo, 9.4.2007, ilustrada, p. 12]

Sim: o espectro do tédio ronda os seres humanos. Tanto é verdade que a indústria do entretenimento é uma das vigorosas do mundo.

A IDEOLOGIA DA DIVERSÃO
O que há de novo nisto?
Em todos os tempos, e não apenas agora, o ser humano busca a felicidade. No nosso tempo também. As histórias dos povos estão cheias de festas e desejos de alegria, sempre tomados como demonstrações de felicidade.
Cada época tem uma ideologia própria de que seja a felicidade. Na nossa época, felicidade está associada a diversão. Uma evidência disto é que a publicidade, esta técnica capaz de flagrar as necessidades humanas, tem como pressuposto que toda a sua comunicação deve ser revestida de humor. Neste território, a publicidade brasileira, especialmente a televisiva, é uma das mais divertidas do mundo.
As ações de marketing procuram responder a essas necessidades e vender mais produtos, serviços e idéias. Há um anúncio de uma empresa fabricante e distribuidora de picolés e sorvetes que tem o seguinte slogan (2007): “movido a diversão”. Há uma informação implícita: “este sorvete é movido a diversão”. Há um convite implícito: “Faça com que sua vida seja movida a diversão” ou “Tendo diversão, você tem tudo. Tome o nosso sorvete e você terá tudo o que precisa”.
Sim: felicidade, antes, era sinônimo de alegria; agora, precisa ser sinônimo de diversão.
E nossa cultura associa diversão com movimento do corpo, realizado no lazer, em viagens, em esporte (assistido ou jogado).
Em função destes desejos, tomados como necessidades, há uma industria cultural a nos vender as oportunidades de diversão. Não temos que cavar a informação; ela nos é fornecida. Não temos que buscar roteiros turísticos, eles nos chegam em casa. Não precisamos ir ao teatro comprar o ingresso; nós o compramos pelo computador.
Na verdade, a diversão se tornou um valor. Tudo tem que ser divertido. Uma aula tem que ser divertida. Um programa de televisão tem que ser divertido. Uma compra no supermercado tem que ser divertido. Um livro tem que ser divertido. Um culto ou um sermão tem que ser divertido. Um telejornal tem que ser divertido. O dia tem quer divertido; se não for possível, o fim-de-semana tem que ser. A vida tem que ser divertida; se não é, vale tudo para que seja: a ingestão de drogas (seja o cigarro que acalma, o tóxico que alucina, o remédio apaziguador ou o álcool euforizador) ou a participação num esporte radical, onde se dissipe muita adrenalina, para usar a linguagem da cultura do entretenimento.
Mais que um passatempo, para o tempo livre, a diversão se tornou uma ideologia, um modo de viver. É como se a vida fosse insuportável sem a diversão. Todo silêncio deve ser preenchido. Todo conflito (e a vida é conflito) deve ser negado.
O resultado desta ideologia é o entorpecimento. Há muitos anos vi uma das mais dramáticas reportagens do telejornalismo brasileiro. Era uma família de pobres sendo despejada; uma mulher e seus filhos, todos os em prantos. As imagens eram revoltantes. A próxima matéria, no entanto, era sobre esporte, colocada intencionalmente, para quebrar a violência revolucionária da reportagem anterior. Era preciso afastar as pessoas daquela realidade, produzindo outra diferente. Não por ocaso, a palavra “diversão” vale precisamente isto: vem do verbo “divertere”, que significa “afastar-se, apartar-se, ser diferente, divergir, ir-se embora”.
Felicidade se torna, então, ausência de conflitos, numa espécie de supressão compulsiva da realidade.
É por esta razão que se multiplicam as tecnologias para o encerramento dos conflitos. A própria religião faz parte deste circo. Mesmo a religião cristã procura varrer da Bíblia aqueles versículos que não ignoram a natureza decaída do ser humano, por causa do pecado; há versões pagãs de Cristianismo que são sedutoras precisamente por oferecerem respostas aos dilemas humanos que parodiam as respostas pagãs.

ENCONTRADOS PELA GRAÇA
Quando lemos o salmo 4, podemos nos perguntar se o poeta não sucumbiu à ideologia da diversão, da felicidade pela superfície, quando diz (nos versos 7-8): “Encheste o meu coração de alegria, alegria maior do que a daqueles que têm fartura de trigo e de vinho. Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança”.
Os versos anteriores deixam claro a peregrinação do poeta, feita de angústia e aflição.
Ele começa rogando ao Senhor: “Responde quando clamo, oh Deus que me fazes justiça! Dá-me alívio da minha angústia; tem misericórdia de mim e ouve a minha oração” (verso 1).
Sua salvação não vem de nenhuma tecnologia médica ou comunicativa. Vem da Fonte. O vazio não pode ser produzido por quem o experimenta; o vazio só pode ser preenchido pelo autor da vida, por Aquele que projetou o corpo, a mente e a alma do ser humano, por Aquele que não faz de conta que preenche o vazio, mas que o preenche mesmo, com Sua própria presença.
Por isto, o salmista conta a sua história. É a mesma de tantos outros alcançados pela graça de Deus.
O poeta se recorda que também procurou abastecer-se na ilusão e na mentira. E o que encontrou? O vazio. (Verso 2)
O poeta clamou pelo Senhor Deus, depois de ter tentado os ídolos, e foi escutado. (Verso 3)
Agora não se desespera mais. A ansiedade lhe vem, porque vem a todo ser humano; a aflição lhe estreita o caminho, como acontece a todos nos vales da experiência humana. No entanto, não se revolta mais contra Deus, nem atacando quem está ao  seu lado (verso 4).
Reconhecido, ele presta culto a Deus, não culto para agradar a si mesmo, como uma forma de diversão; seu culto tem arte, mas é arte para Deus. Neste culto, depois de aprendido, pode ficar em silêncio diante de Deus, para que possa escuta. Antes, Ele falava o tempo todo e Deus ficava quieto, sem nenhuma chance de proferir sequer uma bênção. (Verso 5)
Transformado, vive movido não a diversão, que desfruta, mas a esperança. Ele sabe que a luz do rosto de Deus brilha sobre o seu próprio rosto (verso 6). De que mais precisa?
A chave da experiência deste crente está no verso 7.
“Encheste o meu coração de alegria”.
Ele classifica esta alegria como sendo “maior do que a daqueles que têm fartura de trigo e de vinho”.
A experiência deste crente é a chave para a sua vida.
Em algum momento da sua jornada, marcada por buscas, interrogações e esforços, ele conheceu a Deus. Depois do encontro, o resto é luz. Depois da conversão, a plenitude.
O que buscava em suores recebeu de graça, como dom. Só a graça nos salva.
Graças ao Novo Testamento, entendemos muito bem este processo comunicativo de Deus.
Quem o viu de carne e osso, o evangelista João, assim descreve Jesus Cristo: “Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram. (…) Aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus, os quais não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus. Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito [Filho único] vindo do Pai, cheio de graça e de verdade” (João 1.4,5,10-14). Jesus é, portanto, a alegria dos homens.
A luta desesperada pela alegria acabou. Com Jesus, ela veio como dom. Com Jesus, Deus lançou a semente da alegria, para ser recebida com alegria (Mateus 13.20). Nos termos do salmista, o encontro com Deus nos enche os corações de alegria. Este encontro se dá num momento. Ter este encontro é conhecer a vereda da vida, a alegria plena da presença de Deus, eterno prazer (Salmo 16.11).
Quem quiser mover sua vida de um modo que vale a pena precisa receber a Jesus. Ele nos implanta o chip da alegria.
Com esta alegria implantada, buscaremos as festas, procuraremos domar as circunstâncias, cultivaremos as amizades, mas não dependeremos que estas coisas se realizem para que nos sintamos plenos. Nossa plenitude vem da certeza da companhia de Deus conosco.

TEOLOGIA DA DIVERSÃO
Com o salmo 4, aprendemos que não é o movimento que vence o tédio.
É a graça de Jesus em nós. Quem busca a alegria fora da presença de Deus fatalmente encontra o vazio.
Quem busca a alegria junto com Ele certamente encontra a plenitude.
Se queremos nos divertir verdadeiramente, no sentido de nos alegrarmos verdadeiramente, precisamos cuidar para que não sejamos seduzidos por ilusões, que são mentiras que brilham diante de nós. Quem teve um encontro com Deus e recebeu sua alegria vive momentos de emoção, busca-os até, mas não põe neles a sua felicidade; busca-os, mas cuida para que não se convertam em ídolos sobre a sua vida; presta atenção para não ser controlado por estes momentos e atividades, de modo a perder o essencial, que é a certeza de que o que importa é Deus. Quem tem Deus não ama ilusões e não busca mentiras (verso 2).
Quem tem a Deus invoca a Deus, vivendo de modo santo, sem trocar seus valores por um prato de lentilhas do pecado por mais saboroso que pareça. Nas horas da tentação, quem é movido, não pela diversão, mas pelo Espírito Santo, sabe quem é: alguém que teme ao Senhor, que não o troca por nada (verso 3). Ele sabe que o ouve.
Quem tem a Deus não perde de vista as conseqüências, negativas e positivas, dos seus atos (verso 4). Quantas vidas são perdidas por um instante de prazer, seja a da velocidade, a do sexo, a da droga! Quantos cônjuges destroem suas vidas e comprometem o bem-estar de gerações por um desatino de infidelidade!
Quem tem a Deus confia em Deus, tendo prazer em prestar culto a Ele na igreja e na vida. Quem confia em Deus contempla a Deus e vê Quem Ele é. E quanto mais o vê, mais o ama, mais o contempla, mais se completa nEle. Quem contempla a Deus, mais considera suas instruções (verso 5). Quem considera a Palavra de Deus procura andar na sua presença (verso 6). Quem caminha na sua presença experimenta alegria, que é força e farol.

RESPOSTAS A ALGUMAS SITUAÇÕES
1. Preciso considerar a experiência do salmista, registrada no verso 8: “Em paz me deito e logo adormeço, pois só tu, Senhor, me fazes viver em segurança” (verso 8). Quem caminha na presença de Deus dorme em paz à noite, seguro que o Pai velará seu sono.
Epa! Quantos cristãos demoram a dormir de noite, tendo até que apelar para remédios para conciliar o sono!
Será que isto acontece com eles porque não confiam em Deus?
Esta é a experiência do salmista. Sua confiança o levava a dormir logo que se deitava. Tanta era a sua alegria, depois do encontro salvador, que os desgostos da vida não lhe tirava o gosto pela vida.
Esta pode não ser a experiência de todos, alguns por distúrbios ligados ao sono, que devem ser tratados de modo próprio; outros por hábitos pouco saudáveis que foram desenvolvendo, os quais devem ser mudados. A experiência do salmista nos convida a experienciar a paz, como um dom, na esperança da segurança que vem de Deus, o vigia de nossa noite e que não dorme jamais para que possamos descansar. Ele está sempre alerta! (Salmo 121.4).
O crente confiante sabe que, mesmo em meio à insônia, Deus não se retira. Mesmo no aperto, Deus não sai de perto.
O confiante crente sabe que “os acontecimentos nos causam sofrimento ou alegria, mas o crescimento é determinado pela reação a ambos, por nossa atitude interior”. [TOURNIER, Paul. Creative Suffering]. E nossa atitude interior depende em quem nossas vidas estão ancoradas: se em Deus, nossa atitude será vitoriosa, de crescimento; se for em nós mesmos ou em quaisquer outras pessoas ou ídolos, nossa atitude será negativa, de perda e de desgosto.
Neste contexto, pergunto àqueles que experimentaram a força da alegria, por causa daquele maravilhoso encontro inaugural, e agora roem-se desencantados com a vida: o que foi feito da sua alegria? Como a roubaram?
Peça-a de volta ao Senhor. Não descanse enquanto não a receber outra vez. O dom não pode ficar apagado.

2. Desejo falar aos que andam atrás de diversão.
É claro que a ideologia da diversão encontra eco em nossas ações, porque fomos feitos também para a diversão. Eis uma necessidade básica nossa.
No entanto, cuidado. A ideologia da diversão, que está associado ao comércio, põe-se acima da vida. Eis a sua filosofia: comamos e bebamos, como se amanhã fôssemos morrer (Isaías 22.13; 1Coríntios 15.32).
Mova-se a diversão, mas sem perder o efeito da conversão. Um dia você teve um encontro com Cristo. Que Ele continue sendo o farol de sua vida, não as luzes de uma festa.
Mova-se a diversão, mas sem caminhar pela perversão. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Provérbios 9.10). “O temor do Senhor prolonga a vida, mas a vida do ímpio é abreviada” (Provérbios 10.27). “O temor do Senhor é fonte de vida e afasta das armadilhas da morte” (Provérbios 14.27). “O temor do Senhor conduz à vida: quem o teme pode descansar em paz, livre de problemas” (Provérbios 19.23).
Mova-se a diversão, mas não saia do caminho da santificação. Ser santo é caminhar na presença de Deus visando a perfeição.
Mova-se a diversão, mas não abandone o compromisso da missão. Ao ajudar ao próximo, você se movimenta, é abençoado, afasta o tédio e abençoa.

3. Convido agora a uma decisão a quem não recebeu Jesus como fonte de sua alegria, a que o faça.
Ele mesmo falará:
. “O escravo não tem lugar permanente na família, mas o filho pertence a ela para sempre. Portanto, se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres” (João 8.35-36).
. “O ladrão vem apenas para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham plenamente” (João 10.10).
. “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente. Você crê nisso?” (João 11.25-26).
. “Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o seu coração, nem tenham medo” (João 14.27).
. “Se vocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço. Tenho lhes dito estas palavras para que a minha alegria esteja em vocês e a alegria de vocês seja completa” (João 15.10-11)
. “Eu lhes disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo” (João 16.33).

Aceite o convite e se livre-se de tudo o que lhe atrapalha e do pecado que o envolve e corra com perseverança a corrida que lhe é proposta, “tendo os olhos fitos em Jesus, autor e consumador da nossa fé. Ele, pela alegria que lhe fora proposta, suportou a cruz, desprezando a vergonha, e assentou-se à direita do trono de Deus” (Hebreus 12.1-2).
Então cante com um poeta antigo (conde de Zinzendorf — 1661/1742):

“Jesus, teu sangue e a tua justiça
São agora minha beleza,
Minha gloriosa vestimenta.
Entre os mundos flamejantes,
Coberto por estas vestes,
com alegria te exultarei”.

***
Então agora. “Àquele que é poderoso para impedi de cair e para apresenta diante da sua glória sem mácula e com grande alegria, ao único Deus, nosso Salvador, sejam glória, majestade, poder e autoridade, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor, antes de todos os tempos, agora e para todo o sempre! Amém!” (Judas 24-25).

(ISRAEL BELO DE AZEVEDO)