AS SETE PALAVRAS DA CRUZ (coletânea)

 

1
PERDÃO
Na cruz, Jesus disse, amorosamente:
 
— Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo (Lucas 23.34a).
 
Mesmo no sofrimento provocado por seus algozes, Jesus não pensa lhes administrar justiça. Tampouco espera que tomem a inicativa de pedir perdão por sua violência, para, então, os absolver.
Jesus olha para eles e então dirige uma oração ao seu "Aba" (Pai). Nesta oração, pede perdão para aqueles que não sabiam a Quem matavam. A maldade deles vinha da ignorância. Sabiam que matavam, mas não sabiam a Quem matava.
Jesus nos ensina que perdoar deve ser o verbo da nossa vida.
O perdão precisa ser unilateral e incondicional. Enquanto a gente esperar que o ofenses se humilhe, a inimizade continuará.
Você quer perdoar? Pare de olhar para quem o ofendeu. O rancor só fará aumentar.
Quer perdoar? Olhe para o Pai, que lhe perdoou.
 
2
PROMESSA
Na cruz, Jesus disse afetuosamente ao seu colega de infortúnio:
— Eu lhe garanto: "Hoje você estará comigo no paraíso" (Lucas 23.43).
 
A promessa de Jesus na cruz é, na verdade, uma resposta. O rapaz pediu:
— Senhor, lembre-se de mim, quando entrar no seu reino.
 
Não podemos alcançar todo o significado deste pedido, mas Quem precisava percebê-lo o captou. Diante do desejo, Ele põe em ação toda a sua bondade, que é parte integrante do seu ser. Mesmo na dor, abençoa. Se pode levar mais um para morar com Ele no céu, ele leva.
Diante da promessa, precisamos nos perguntar se temos almejado o paraíso. A vida aqui anda tão boa… Ainda não realizamos alguns alvos em nossas vidas… Ainda não compramos nosso mais recente brinquedo tecnológico… O céu pode nos esperar e nós aguardaremos a última caravana para subir.
Os pregadores antigos perguntavam, com vigor, aos seus ouvintes:
— Onde você vai passar a eternidade?
Este nosso mundo pode ser lindo, mas não é o nosso lugar definitivo.
A promessa continua.
 
3
CUIDADO
Uma palavra em duas diz Jesus:
À sua mãe, conforta: “Aí está o seu filho”,
Ao discípulo amado, pede: “Aí está a sua mãe” (João 19.26-27).
Jesus não teve bens. Nem jumento teve. Não teve casa própria. Tinha uma vida, agora dilacerada. Tinha uma família, pela qual se preocupou.
Do alto da cruz, com a visão turva pelos olhos marejados de sangue, vê sua mão em lágrimas. Ao lado, consegue identificar um dos seus discípulos. Foram amigos, unidos pelo seu amor de filho e por seu amor de amigo. A amizade pode continuar.
Com os olhos, convida as mãos da mãe e do amigo a se entrelaçarem.
Com a voz, cuida da sua família. 
Com a voz, pensa nos amigos.
Os laços da família fazem parte do projeto de Deus.
Os laços da amizade estão no centro do projeto de Deus.
O Deus que agoniza perpetua os laços entre os homens.
 
4
DESAMPARO
Se alguém tem dúvida que Jesus foi completamente humano, que ouça a sua palavra em aramaico, sua vida se extinguindo na cruz:
 
— Eloí, Eloí, lama sabactâni? (Mateus 27.46).
 
Exangue impregnado do Antigo Testamento, a memória ainda guarda o salmo que aprendeu talvez na infância, que é o tempo de guardar poemas:
 
— Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste? (Salmo 22.1).
 
Se alguém se sente abandonado, Jesus é seu antecessor.
Seu grito é um brado de identificação.
Essa identificação do divino com o humano é uma palavra de conforto, quando lemos o resto do evangelho de sua vida. O Abandonado foi abandonado até o fim (porque o cálice da morte lhe foi servido), mas foi resgatado no fim, quando não havia mais esperança humana alguma. 
Feliz é aquele que se identifica com Jesus em seu sofrimento.
Feliz é aquele que se identifica com Jesus em sua ressurreição.
O sofrimento faz parte da nossa história. A esperança também.
 
5
HUMANIDADE
Depois de uma longa caminhada sob o sol, depois de perder sangue, no auge de sua exaustão, pede água. É o que seu grito pressupõe:
 
— Tenho sede. (João 19.28)
 
Jesus não tem medo de sua humanidade. Embora fosse Deus, não dá uma de Deus. Prefere ser humano.
Eu me lembro de antigas peças de teatro nas igrejas. Nelas, Jesus não era humano. Na verdade, Jesus, quando aparecia, tinha que ficar de costas.
Em nossas cabeças, o drama existencial de Jesus soa como um drama teatral ou cinematográfico. Aquele sangue todo devia ser ketchup. Aquele sofrimento todo não podia ser uma dor real. Na verdade, parece que ainda somos um pouco docetistas, aqueles quase-cristãos que pensaram que Jesus não era humano, embora parecesse.
Como conciliar uma visão desta com a palavra mesma do Messias, que grita, como qualquer um de nós, que está com sede?
Como conciliar nossa recusa à nossa própria humanidade? Como disse Galileu Galilei há tanto tempo (1564-1642), "todo homem quer ser rei; todo rei quer ser deus; mas só Deus quis ser homem”. Por que nos controla o desejo de parecer o que não somos?
Por que Jesus disse que estava com sede? Jesus disse que estava com sede porque estava com sede.
Por que não nos queixamos que está doendo, se está doendo?
Até nisto Jesus é modelo.
 
6
METÁFORA
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lucas 23.46).
 
Jesus, que perdera a conexão com o Pai, sentindo-se por Ele desamparado, agora restabelece o contato e ora.
Jesus é o mestre das histórias. Cada uma delas nos faz pensar em nossa própria vida.
Jesus é o mestre das parábolas. Cada um delas conta a nossa própria história.
Jesus é o mestre das metáforas. Nem mesmo na agonia, do Getsêmani ao Gólgota, ele abandonou as metáforas. Numa delas, ora: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lucas 23.46)
Na verdade, não conseguimos falar das coisas mais importantes da vida sem o uso das metáforas. Não conseguimos falar sobre Deus, o Fundamento de nossa vida, sem o uso das metáforas.
Chamar Deus de "pai" é também uma metáfora, porque Ele não é um pai no sentido biológico da palavra.
Dizer que Deus tem "mãos" é uma metáfora, filha de nossa única maneira de falar dele, antropomorficamente.
Entregar o próprio espírito a Deus é afirmar-se pronto para morrer. Trata-se de uma metáfora da rendição, uma vez que Jesus lutou para viver ("passa de mim este cálice" e "por que me abandonaste?"). Agora, ele se rende à vontade do Pai e se apresenta pronto para morrer.
Jesus enfrentou o seu Getsêmane e dele saiu, vivo.
Jesus enfrentou o seu Gólgota e dele saiu, morto.
A história segue e ele sai vitorioso.
Também passamos pelo Getsêmane, mas, como o nosso lugar não é lá, somos dele libertados na sexta-feira.
Também passaremos pelo Gólgota, mas, como o nosso lugar não é lá, dele seremos retirados no domingo. No domingo da ressurreição.
 
7
COMEÇO
O último brado da cruz, agora quase inaudível, tão fraca a força da voz de Jesus, foi:
— Está consumado.
É como se dissesse: “Pai, obrigado. Tudo saiu como planejamos”.
 
Na cruz e a partir da cruz, o plano de oferecer gratuitamente ao ser humano a oportunidade de ser salvo do poder do mal, que se manifesta em egoísmo e guerra…
Do monte Gólgota e a partir do monte Gólgota, o derramamento sobre todos da graça salvadora e educadora de Jesus, como água potável jorrando de uma Fonte que jamais se esgota…
No olhar em consórcio do Pai e do Filho, o desejo de rasgar o véu que separava de Deus as pessoas, véu tecido inconsutilmente pelo pecado…
No cume da barra vertical que a visão não alcança o fim, o projeto de trazer o céu à terra por meio de um corpo pendido…
Nos braços forçadamente abertos do Raboni mas transformados em braços amorosamente abertos, o convite a todos os cansados e oprimidos…
No martelo que pregou a condenação de Jesus, o decreto da absolvição de todos que se ajoelham diante dEle… 
 
… está consumado.
 
A paz, proferida pelos lábios de Jesus e exposta no seu corpo, é plenamente possível. 

 

ISRAEL BELO DE AZEVEDO