A história do cristianismo pode ser pensada como uma vitória sobre os reducionismos e sobre os falsos dilemas.
Os reducionismos, internos e externos, pretendem transformar a fé cristã num slogan que caiba num outdoor. Os dilemas, que são também reducionistas, propõem resolver problemas internamente criados, pelo que geralmente são falsos.
Essas visões são esquecimentos do conselho sapiencial: o temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 9.10).
VITÓRIA SOBRE OS REDUCIONISMOS
A história do cristianismo pode ser pensada, portanto, como uma sucessão de vitórias contra os reducionismos, que podemos reduzir (sic!) a quatro, todos anteriores e contemporâneos de Jesus. São eles: o farisaísmo, o essenismo, o zelotismo e o saducismo.
FARISAÍSMO — Os fariseus se achavam formando uma elite de puros, em função de sua dedicação à Lei mosaica, à qual reduziam toda espiritualidade. Achando-se aceitos por Deus, mais que os outros, porque defensores da Lei, os fariseus eram apaixonados por si mesmos e se exibiam para exibir sua santidade e para chamar os outros ao seu caminho, pois tementes ao Senhor seriam aqueles que aceitassem suas posições e esposassem suas percepções e preferências. Ao seu modo, eles propunham uma volta à Bíblia, volta perdida, porque mediada apenas pela sua interpretação, que resultava numa espécie de legalismo, tradicionalismo e fundamentalismo.
Este tipo de reducionismo legalista perturbou o ministério do apóstolo Paulo, às voltas com aqueles que queriam subordinar a graça à Lei. Todos os tradicionalismos e fundamentalismos, até hoje sedutores, são filhos do farisaísmo. Os fariseus de hoje estão prontos a apontar os pecados… dos outros e a propor castigos. Decorre daí todo tipo de moralismo, como o puritanismo.
ESSENISMO — À sua direita estava o essenismo, para o qual a vida na presença de Deus só pode acontecer na ausência do mundo. Os essênios, auto-exilados em comunidades nos desertos e nas montanhas, pretendiam formar um mundo à parte, num estilo de vida que pretendiam próprio. Sua tarefa seria facilitada pelo fato de Deus os ter revelado segredos acerca do cosmo e da correta interpretação da Lei. Eles não se viam como pessoas constituídas por carne e sangue, mas como ‘seres celestiais’ que levavam uma vida espiritual desprovida de preocupações materiais.
(Aliás, parece que Jesus estava advertindo seus seguidores para este perigo, ao pedir ao Pai que nos tirasse do mundo [mandando-os para comunidades no deserto] mas que os livrasse da corrupção vigente no mundo.)
Esta tendência transcendentalista encontrou eco no círculo íntimo dos discípulos, como o ilustrado no desejo de permanecerem indefinidamente no alto da Transfiguração. Ao longo dos séculos, inspirou o monaquismo e todas as outras tentativas contraculturais de vivência da fé. No plano teológico, toda a escatologia niilista (que compõe versos como “passarinhos, belas flores, querem me encantar, / oh! vãos, terrestres esplendores não quero aqui ficar”) e todo o redomismo cristão (como o que garante o dístico de Tertuliano, de que não há “nada mais estranho ao cristão do que a política”) devem tributo ao essenismo.
ZELOTISMO — No extremo oposto estava o zelotismo, com seu reducionismo político, sem a mística cristã, mas como zelo pela Lei mosaica. Este tipo de fanatismo defendia o uso da violência como método para a conquista da libertação do Império Romano. Toda obediência a Roma, incluído aí o pagamento de impostos, era traição a Deus.
Embora falassem no nome de Deus, os zelotes criam menos nele e mais no poder de suas adagas. Sua postura politizada vem acompanhando a história dos cristãos e pode ser representada por todos aqueles que admitem, como corolário da fé, o emprego da força para fins de convencimento e conquista.
Assim, o zelotismo representa a tendência imanentista no cristianismo.
SADUCISMO — Não menos imanentista é o saducismo. Este reducionismo serve bem para representar as posturas dos cristãos que põem todas as suas forças na lógica e na razão. Todo o esforço para tirar da religião aquilo que ela tem de simbólico e sobrenatural é tributário dos saduceus que, embora aceitassem a Lei mosaica, recusavam os livros proféticos. De igual modo, não criam em anjos e espíritos e rejeitavam terminantemente a possibilidade da ressurreição.
A propósito, esta visão racionalista desarvorou os saduceus, por ocasião da destruição do templo de Jerusalém em 70 A.D. Eles simplesmente desapareceram com a crise. A ausência da dimensão transcendental foi decisiva.
VITÓRIA SOBRE AS POLARIZAÇÕES
O reducionismo se manifesta também na polarização.
Há polarizações de caráter propriamente teológico, como os de natureza política (o cristianismo é uma religião de renúncia ou de denúncia?), litúrgica (a que deve o culto atingir: a emoção ou a mente?) e missiológica (a quem pregar: aos judeus ou aos gentios? o Evangelho para a alma ou para o corpo?)
No caso cristão, uma das mais polarizações mais prolíficas é a travada entre os que reduzem o cristianismo à teologia e os que o privilegiam à vida (ou teologia e prática, ou teologia e ministério, ou teologia e moral) que bem poderia ser teologia ou vida (ou também teologia ou prática, teologia ou ministério, teologia ou moral). Em outros termos, à moda Rubem Alves, a polarização pode ser descrita em termos de uma luta entre a supremacia da reta doutrina e a supremacia da reta vida.
Assim, coloca-se a adesão a um conjunto de afirmações de fé, teologicamente bem formuladas, como estando em oposição à experiência desta fé. Chuta-se a razão em nome da emoção. Os racionalistas acabam achando que as manifestações religiosas carregadas de emoção são inaceitáveis, porque não passam pelo crivo da razão. Os emocionalistas consideram lixo a reflexão teológica, na pressuposição de que ela afasta de Deus.
O INTECTUALISMO DO SÉCULO — A desconfiança mútua é imensa. Isso vem dos tempos apostólicos. Paulo foi considerado louco por alguns de seus contemporâneos, por pregar a cruz, que a razão considera(va) uma loucura absoluta (1Co 1.17-2.16). Ainda hoje os sem-fé julgam os com-fé como pessoas insensatas, que renunciaram sua própria inteligência. Eles não conseguem alcançar a máxima antiga de que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 9.10).
Contra o preconceito da razão, o único argumento é a própria razão. Portanto, a tarefa de derrubar raciocínios que se levantam contra o conhecimento de Deus só pode ser levada a cabo com o uso da própria razão, mas razão cativa à obediência a Cristo (2 Co 10.5), o que não lhe tira absolutamente nada do seu método, mas apenas reorienta o seu objetivo.
Em lugar de legitimar os que acham o cristianismo uma religião para insensatos e iletrados, os cristãos precisam ter em mente o valor do seu discurso, na certeza de que o discurso da fé e o discurso da ciência são duas visões de mundo que se complementam. Uma não esgota a outra. A míngua de uma delas torna o homem menos humano.
À razão quem tem fé, fé em Jesus Cristo como Senhor de todas as áreas da vida, precisa dizer, no discurso da ciência, da tecnologia e da filosofia, que o conhecimento não abarca a fé, que é uma dimensão importante da experiência humana. Ignorá-la é incorrer em reducionismo, que é a própria negação da verdade.
Os que fazem do conhecimento (científico, tecnológico e filosófico) o seu filtro para ver o mundo devem ser humildes, sabendo que sua apreensão é limitada às suas próprias possibilidades e à natureza cambiante do conhecimento. A verdade científica é verdade naquele momento, até que uma nova hipótese seja formulada e demonstrada, num processo interminável.
Os que fazem da ciência, da tecnologia e da filosofia a sua profissão devem aprender com a fé a dimensão moral das descobertas, dos inventos e das percepções. Sem a dimensão moral, que o cristianismo porta intrinsecamente, todo avanço científico, se transforma em barbárie. Sem Deus, como disse o personagem de Dostoievsky (em “Os Irmãos Karamazov”), tudo é permitido. Se tudo é permitido, não há civilização, não há progresso.
O NOSSO INTELECTUALISMO — Esta visão intelectualista está presente também no próprio cristianismo, ele que tem sido vítima desta percepção desde sua gênese. Em nosso meio, ela se apresenta sob diferentes formas.
Uma delas é a afirmação da supremacia da doutrina sobre a vida, com aquela sendo tomada como mais importante do que esta. Para estes racionalistas, a ortodoxia (crença correta, segundo cum conjunto previamente estabelecido) vale mais que a ortopraxia (vivência correta, de acordo com os padrões éticos do Novo Testamento).
Outra atitude, muito comum nesta percepção, é a recusa a qualquer expressão espiritual que tenha algum toque de emoção. Um culto, por exemplo, se funda na centralidade da Palavra, que é racional, a partir de uma liturgia rígida, com todos os momentos previamente fixados. No caso batista brasileiro, em função de nossa história recente, há cultos em que expressões bíblicas como “amém” e “aleluia” não são bem-vindos. A ordem do culto a Deus é mais importante do que o Deus a quem se presta o culto.
Há uma grande ênfase, nesta visão, aos credos doutrinários (confissões de fé) e à sistematização das doutrinas. A doutrina é sacralizada, ao ponto de, no caso brasileiro, se poder falar na existência de um protestantismo da reta doutrina (conforme a classificação de Rubem Alves).
Numa postura mais extremada, pode-se chegar a divinização da instância racional. Há teólogos cristãos que negam a possibilidade da operação do milagre, que fazem uma leitura apenas histórica da Bíblia, tomada como uma coleção de mitos sem qualquer aspecto normativo sobre os crentes contemporâneos, e que recusam na comunidade de fé a liberdade do sopro do Espírito Santo, acorrentado a fórmulas teológicas e litúrgicas tradicionais.
O ANTIINTELECTUALISMO CRISTÃO — Como a desconfiança é mútua, entre os cristãos também viceja um visceral antiintelectualismo, que carece de ser combatido com vigor. Sua proposição, sedutora, é a afirmação da supremacia da vida sobre a doutrina. Tudo é reduzido à ortopraxia: a pessoa não precisa conhecer (sua fé), apenas vivê-la.
Neste caso, as emoções são valorizadas, ao ponto de se perder o controle sobre elas. É considerada menor a experiência religiosa que não tiver a bênção de uma lágrima. Quanto mais dramática for uma conversão, mais genuína ela será, pregam os que valorizam os sentimentos.
Há uma óbvia desvalorização do estudo, colocado como um trampolim para a incredulidade e para a apostasia. As ciências são desprestigiadas e sua sofisticação é apontada apenas como um indício do final dos tempos.
Há várias evidências práticas deste tipo de atitude. Em muitas igrejas o estudo da Bíblia não é levado a sério. Há muitas igrejas onde não há qualquer setor voltado para a educação dos seus membros. Há poucas igrejas com bibliotecas organizadas, onde os membros podem aprofundar seus conhecimentos, geralmente superficiais.
No caso particular dos batistas, a chamada crise de identidade resulta de uma crise de sua teologia, sempre reprodutora (de idéias boa, mas antigas) e pouco produtora (de idéias novas). A identidade não se faz no ativismo, mas no silêncio da produção teológica. A prática carece de uma orientação… teológica.
A carência teológica provoca ainda uma compreensão clara da missão da igreja e, por conseqüência, da sua estratégia. A missão cristã é colocar o mundo de cabeça para baixo, inoculando nele, pela palavra e pela vida, a semente do Evangelho, este poder de Deus que transforma. Como alcançar esta meta, se se ignorar o discurso (o do mundo) que se quer mudar? Esta é uma tarefa que não pode ser feita sem o concurso da reflexão teológica, que parte da Verdade para desmascarar as verdades, que precisam ser conhecidas.
RECONEXÃO
Lembrando-nos que os piores dilemas são os falsos dilemas, precisamos reconectar doutrina e vida, que não podem se excluir mutuamente. As igrejas precisam se lembrar que a teologia não é só relevante como fonte indispensável para sua vitalidade. Ao mesmo tempo, as igrejas precisam se lembrar que teologia sem vida (sem o coração abrasado, na expressão de Wesley) é vaidade.
As igrejas precisam de uma teologia que lhes permita estar prontas para explicar sua fé, explicação que se nos é pedida cada vez mais. Há uma guerra contra a fé e a teologia é uma arma que pode ser útil no campo da batalha.
Essa teologia (ou doutrina) precisa entender que seu conhecimento não abarca as ciências, com quem deve aprender e a quem deve ensinar (se, para tal, estiver preparada). A boa teologia, portanto, é humilde, por saber que está sempre em construção e por compreender que as experiências religiosas não são universalizáveis.
Toda doutrina deve derivar da Bíblia Sagrada, para ser legítima. No entanto, se é fato que ela é e contém a verdade, que é imutável, também o é que sua interpretação acerca desta verdade não é imutável.
A fé cristã deve aceitar, e mesmo se rejubilar com elas, diante das descobertas das ciências, que jamais são uma ameaça à verdade. Fé e ciência são, como ensina Allan Richardson (“Apologética Cristã”), duas trilhos de uma linha de trem. Como as retas paralelas, jamais se encontram. Se se aproximarem ou se afastarem, além dos limites, o trem descarrila.
O Espírito que habita no crente não apenas o regenera, mas também o move em direção à maturidade. Há (ou pelo menos deveria haver) uma clara conexão entre o longo processo de santificação e a árdua tarefa do desenvolvimento teológico. Quando Espírito habita em nós com toda a plenitude, ele nos conduz a uma clara compreensão da teologia, a qual nos habilita a confrontar o espírito de nossa época.
O dilema entre doutrina vida ou razão e emoção é, portanto, falso. A afirmação da sua existência não interessa ao cristianismo. O desequilíbrio entre conhecimento e graça, entre intelecto e sentimento, é uma tendência que os que têm fé no Senhor da emoção e da razão devem rejeitar.
Israel Belo de Azevedo