Fidelidade é uma das palavras mais empregadas na Bíblia. Freqüentemente ela é associada a Deus, cujo atributo mais caro ao ser humano é precisamente a Sua fidelidade, pelo que muitas vezes é chamado de Rocha, numa indicação de Sua imutabilidade (Dt 32.4). Como aprendemos no Novo Testamento, “fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1.9).
Nele, fidelidade é a Sua persistência no propósito de ser misericordioso e bondoso para conosco. Como o salmista, sabemos que a Sua “misericórdia se eleva até aos céus e a Sua fidelidade, até às nuvens” (Sl 57.10). Por isto, cada um de nós pode elevar a Ele a sua voz em termos semelhantes ao dos Salmos 69.13 e 89.1). Tal é essa verdade que, em Deus, misericórdia e fidelidade são sinônimas.
DIMENSÕES DA FIDELIDADE
Para entendermos bem o significado da fidelidade requerida de nós por Deus, podemos usar uma figura do mundo dos esportes. No atletismo, há dois tipos de corredores: uns são especialistas em corridas de curta distância, como os velocistas, e outros se desenvolvem melhor em corridas de longo percurso, como os maratonistas. Dificilmente, um especialista em 100 metros corre uma maratona, de 42 quilômetros, e vice versa.
O velocista é corredor de explosão. Ele tem que começar perto do máximo para alcançar o máximo do máximo em apenas nove segundos, por exemplo (no caso de uma corrida de 100 metros). O maratonista é corredor de regularidade e resistência. Quem acompanha a São Silvestre (aquela corrida realizada em São Paulo por ocasião da passagem do ano) vê corredores disparando na frente, mantendo ilusoriamente a liderança por alguns metros ou até quilômetros, para depois desaparecerem no anonimato.
A que tipo de corrida compararemos a vida cristã? Às duas. O início da vida cristã, com a força revolucionária da salvação, se compara à explosão de uma corrida de 100 metros. No entanto, o prosseguimento da vida cristã se assemelha a uma corrida de longa distância, com um percurso de milhões de quilômetros. A salvação por Jesus nos põe na pista; a fidelidade a Jesus nos mantém nela.
Quando Paulo relaciona as marcas da vida no Espírito, o apóstolo usa uma palavra (pistis), que significa ao mesmo tempo fé e fidelidade, o que nos aproxima da comparação entre a corrida de velocidade e a corrida de resistência. No caso específico, ele está preocupado com a vida enquanto corrida de longa distância, que também é a vida cristã.
Aliás, é bastante interessante que toda a lista de Paulo se refere à vida prática, no campo pessoal e no campo comunitário, sem uma conotação evidentemente religiosa. São todas virtudes indispensáveis para a vida que é sempre vida socialmente. Alegria, amor, benignidade, bondade, domínio próprio, longanimidade, mansidão e paz são essencialmente virtudes bidimensionais, realizando-se entre nós e os próximos. Fidelidade, também, mas ela vai além, alcançando a tridimensionalidade, pois nos envolve pessoalmente e em nossos relacionamentos com o Deus que nos chama e com os próximos com quem convivemos.
Ser fiel é ser digno de confiança; leal e firme na devoção e no compromisso; constante na crença. Fiel é quem não duvida de Deus. Fiel é quem não começa com o Espírito e segue a procissão da carne. Fiel é quem começa com Deus e continua caminhando com Ele.
Fidelidade, portanto, é uma vida marcada por algumas qualidades, das quais quero destacar quatro: exclusividade, verdade, regularidade e persistência.
A exclusividade é um requerimento básico de Deus no nosso relacionamento com Ele
Josué destaca a natureza desta exclusividade (Js 24.14-15). É este o tipo de fidelidade como exclusividade que Deus espera de nós. É esta a disposição que Deus espera de nós, a de servir somente a Ele.
É desta exigência que o marketing contemporâneo derivou uma de suas palavras mais eficientes: fidelização. As marcas esperam que lhes sejamos fiéis. Quanto mais uma marca consegue reter a nossa fidelidade, mas ela vale. É por isto que a marca é mais importante que a empresa. A marca Coca Cola, por exemplo, vale mais que o produto. O segredo da marca não é o segredo da fórmula do seu xarope, mas o sucesso em se manter como a marca mais conhecida no mundo. A marca Bradesco vale mais que todo o dinheiro depositado no banco por seus milhões de correntistas e investidores.
Fidelizar, portanto, é um neologismo que significa manter fiel o cliente, fiel no sentido de ser o primeiro na mente do consumidor, fiel no sentido de ser considerado o único a satisfazer o desejo do consumidor. As marcas, portanto, querem que nós as sirvamos, num novo tipo de idolatria, diferente daquela que Moisés e Josué enfrentaram.
Ser fiel, portanto, é ter, no discurso e na prática, Deus e Seu reino como nossa primeira e única escolha. Queremos realmente seguir a Ele? Qual é a nossa resposta? Elias fez a mesma pergunta direta ao povo de Israel: “Até quando coxeareis entre dois pensamentos? Se o Senhor é Deus, segui-o; se é Baal, segui-o”. O comentário do autor bíblico é muito revelador: “O povo nada respondeu” (1Rs 18.21) ao profeta.
Sempre tendemos a pensar que é possível fazer uma média, achando que podemos servir a Deus e a nós mesmos.
A verdade é a outra faceta da fidelidade
Penso que nada ilustra melhor a idéia de fidelidade enquanto verdade do que uma balança. Quando você vai à feira, por exemplo, se pergunta se um quilo pesa mesmo um quilo. Quando você vai numa farmácia conferir seu peso, também se pergunta se a balança está falando a verdade (especialmente se você não concorda com o peso indicado no visor…).
Para nos enganar, as balanças têm que parecer verdadeiras. Quanto mais parecem, mais nos enganam. Por isto, um dos sinônimos para verdade é transparência. Com tudo às claras, não dá para enganar. Assim, ser fiel é ser transparente.
O cristianismo padece com a falta de transparência. Por isto, a oração que todo cristão deve fazer diariamente é a do salmista. No Salmo 26.2, a disposição é: “examina-me, Senhor, e prova-me; sonda-me o coração e os pensamentos”. No Salmo 139.23, o convite é: “Sonda-me, oh Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos”. Em outras palavras, é pedir: ilumine, Senhor, todas áreas da minha vida, para que tudo fique transparente.
Temos nós podido orar assim? Temos podido pedir a Deus que ilumine os nossos relacionamentos, mostrando nossas intenções e nossos comportamentos? Nós, cônjuges, temos vivido de tal modo que nossos maridos ou nossas esposas podem acompanhar os momentos quando não estamos juntos e nada encontrar de suspeito ou condenável? Nós, filhos, temos vivido de tal modo que nossos pais poderiam nos acompanhar em todos os nossos atos, sem ter que nos reprovar? Nós, pais, temos vivido de modo coerente com aquilo que ensinamos e exigimos dos nossos filhos?
Sejamos fiéis. Se não estamos sendo, busquemos a verdade no Espírito e andemos no Espírito. Quanto mais tempo formos infiéis, mais difícil será pararmos, piores serão as conseqüências, mais se consumirão nossos ossos dentro de nós, ou mais nos acostumaremos com a infidelidade, mais acharemos aceitável a infidelidade, mais estaremos longe da vida no Espírito. Quanto mais escondermos nossa verdadeira face, mais sombria ela será. Quanto mais nos escondermos, mais fundo desceremos.
Sejamos fiéis. Este é o convite do Espírito Santo a cada um de nós.
Uma terceira dimensão da fidelidade é a regularidade
Também na vida cristã há pessoas que oscilam entre a euforia e a apatia. É impressionante vermos estas demonstrações de infidelidade na igreja. Há pessoas que parecem uns vendavais de tão animados. De repente, somem. Há alguns que começam trabalhos a que nunca dão prosseguimento.
Fidelidade é regularidade. Não adianta ler a Bíblia toda em um mês. Isto pode ser até uma prática para um tempo de euforia, mas o crescimento virá com a leitura constante, cuidadosa, meditativa, realizada anos após anos. É um investimento para a vida toda.
Não adianta passar dias e noites orando. Isto pode ser próprio para um momento, mas o crescimento virá com aquela oração “sem cessar” (1Ts 5.17) ao longo de toda a vida, num prosseguimento constante para o alvo da perfeição.
Os irregulares produzem pouco. Quando produzem, destroem o que fizeram. Eles são irregulares porque são motivados por razões erradas. Talvez busquem logo o prêmio por sua fidelidade e por sua disposição.
Os fiéis colocam-se ao dispor do Espírito Santo e fazem o que Ele orienta. Os frutos surgirão natural e constantemente. Os fiéis são persistentes, persistência que os leva até a mudarem de métodos, nunca de ideais.
Como nos soa estranho hoje o exemplo de Jacó, como retratado na Bíblia. Seu coração era de Raquel, mas o sogro lhe deu Lia trapaceiramente ao final de sete anos de trabalho como forma de dote. Indignado, mas não derrotado, Jacó se dispôs a trabalhar outros sete anos por Raquel.
Como é duro orar pela conversão de alguém e ela não acontecer, no tempo que achamos ou em tempo nenhum! Como é durar lutar pelo florescimento de uma causa e ela demorar a deixar de ser uma coisa pequena! Como é duro buscar uma resposta de Deus e ela vir a conta-gotas.
É por isto que a fidelidade é fruto do Espírito, porque a nossa natureza tende para a irregularidade, para a impaciência e para a desistência. O Senhor requer que cada um seja encontrado fiel (1Co 4.2).
COMO SER FIEL
O que fazermos para frutificar fidelidade?
Primeiramente, temos que nos lembrar que a fidelidade é um fruto do Espírito Santo em nós. Portanto, temos que nos pôr diante dEle e esperar que esta marca do Espírito esteja em nós. Não somos capazes de ser fiéis, mas Ele nos capacita. Busquemos viver e andar no Espírito. Neste caminho, segundo a linguagem do Apocalipse, sobrevirão coisas que nos farão sofrer e que nos porão à prova. No entanto, não devemos temer (Ap 2.10).
Se queremos ser fiéis, pensemos a longo prazo e organizemos nossas vidas em torno de objetivos que não se cumprem no imediato. Nosso investimento pessoal deve se concentrar nos papéis cujo retorno maior virá daqui a anos. É claro que precisamos de um mínimo de retornos rápidos, para sobrevivermos, mas não são eles que vão nos dar uma qualidade de vida que valha a pena.
Uso uma conclusão do mundo do capital para indicar o valor de ações cujos resultados não são imediatos. O economista norte-americano Lester Thurow disse recentemente que o problema da América Latina é que não há investimento na educação. O Brasil é um dos países onde menos recursos são gastos com a educação e menos tempo se passa na escola. Por isso, como iremos competir com países com taxas de escolaridade superiores à nossa? A conclusão do economista é óbvia: só há crescimento com educação.
Também na vida cristã, só há crescimento com educação. Se não gastarmos tempo na presença de Deus, como iremos conhecê-lo? Sua revelação não é mágica; ela se dá pela educação. Paulo foi transformado de uma vez por todas no caminho de Damasco, como cada um de nós que também já experimentou a conversão, mas o apóstolo passou 13 anos meditando e estudando antes de começar seu ministério.
Se queremos ser fiéis, gastemos tempo com Deus, com o próximo, conosco mesmos. Invistamos e aguardemos. Para que tanta pressa?
Gastar tempo implica disciplina. Não existe fidelidade sem disciplina. Nosso corpo quer a dispersão; a disciplina quer a concentração. Nosso espírito quer vagar pelas idéias; a disciplina nos leva a nos ocupar com o que é verdadeiro, com o que é respeitável, com o que é justo, com o que é puro, com o que é amável e com o que é de boa fama (Fp 4.8).
Queremos aprender a orar? Queremos crescer na oração? Então, oremos, organizemos a nossa vida para orar. Tenhamos uma hora para orar. Daniel orava três vezes ao dia. Este é um bom padrão. Comecemos com um minuto e vamos aumentando aos poucos a nossa “competência”.
Queremos aprender a ler a Bíblia? Queremos conhecer mais da Palavra de Deus? Então, leiamos a Bíblia, organizemos a nossa vida para lê-la. Comecemos com dez minutos diários ou uma hora por semana; depois, vamos aumentando a nossa disposição e disponibilidade.
Uma boa sugestão é antes de orarmos a Deus, lermos a Bíblia para ouvirmos a Sua voz, antes de dirigirmos a nossa a Ele. Lendo a Sua Palavra, nós o conheceremos melhor. Conhecendo-o melhor, poderemos falar melhor com Ele.
CONCLUSÃO
Somos convidados a ser fiéis até morte (Ap 2.10).
Os jogadores de futebol costumam dizer durante um jogo de campeonato, antes da final, que ainda não ganharam nada.
Não é assim na vida cristã. Nós já ganhamos tudo, a salvação. No entanto, a fidelidade consiste em permitir que a salvação opere em nós constantemente, como uma invasão de alegria, no presente.
Que a nossa oração seja a mesma feita pelo povo diante de Josué: “Ao Senhor, nosso Deus, serviremos e obedeceremos à sua voz” (Js 24.24).
Renovemos, pois, nossa aliança com Deus.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO