Eu sei, ó Senhor, que não é do homem o seu caminho,
nem do homem que caminha, o dirigir os seus passos.
Castiga- me, ó Senhor, mas com medida,
não na tua ira, para que me não reduzas a nada.
Derrama a tua indignação sobre as nações que te não conhecem
e sobre as gerações que não invocam o teu nome;
porque devoraram a Jacó;
devoraram-no, consumiram-no e assolaram a sua morada.
(Jr 10.23-25 — ARC)
Há, entre os leitores da Bíblia, duas grandes perguntas, entre outras.
A primeira é: como saber o que nos compete e o que compete a Deus na tarefa da vida?
A segunda é: Deus realmente se ira contra as pessoas, como tantas vezes lemos na sua Palavra?
Estas duas indagações moravam nas mentes dos israelitas contemporâneos de Jeremias (século VI a.C.). Suas razões guardam distâncias e semelhanças com as nossas.
Havia entre os israelitas um sentimento de inalcançabilidade. Como Deus estava com eles, nada lhes poderia acontecer.
Deus, no entanto, era mais uma espécie de amuleto do que uma pessoa real. Nos dias de hoje, seria como alguém se sentir protegido:
. ou por ter um santo padroeiro;
. ou por guardar no peito um crucifixo;
. por carregar uma Bíblia de baixo do braço;
. ou por portar uma carteirinha de membro de uma igreja evangélica;
. ou por ter participado de dois cultos no domingo passado;
. ou por se encontrar sob a "cobertura espiritual" de um pastor ou apóstolo.
Deus é uma efígie que se compra e não uma pessoa que nos ama e deve ser amada por nós.
Quando lemos os sermões do profeta Jeremias, ficamos assustados com a coexistência deste sentimento de proteção especial e da idolatria que grassava entre a maioria dos israelitas, inclusive de seus líderes políticos e religiosos.
NÃO É DO HOMEM O SEU CAMINHO
Ao mesmo tempo, os contemporâneos de Jeremias tocavam suas vidas como se não houvesse um profeta que os advertisse ou um Deus que se incomodasse com os seus pecados. Eles estavam firmados na aliança que celebraram com Deus, aliança que lhes prescrevia um compromisso que não seguiam e nem se preocupavam com as consequências do seu não-seguimento. Estavam protegidos e pronto.
Faziam seus planos, nos quais Deus estava ausente. Eram donos do seu presente e do seu futuro. Seu futuro seria o que planejassem. Então, Jeremias lhes prega que o seu caminho não lhes pertencia e que não lhes cabia dirigir os seus passos. ("Eu sei, ó Senhor, que não é do homem o seu caminho, nem do homem que caminha, o dirigir os seus passos" — Jr 10.23 00 ARC)
Em outras palavras, o que o profeta lhes anuncia é que o homem não é senhor do seu futuro, uma vez que não "pode controlar o que acontece na sua vida" (Jr 22.23 — NTLH).
Outro profeta, seis séculos depois, lamentou esta jactância humana: "vós que dizeis: ‘Hoje ou amanhã, iremos a tal cidade, lá passaremos um ano, contrataremos e ganharemos’. Digo- vos que não sabeis o que acontecerá amanhã" (Tg 4.13-14a — ARC)
Submeti-me a várias cirurgias, numa história que talvez seja a sua; as duas últimas formaram um contraste vigoroso. A penúltima era considerada muito séria, para extirpar um órgão canceroso; a última era tida como simples, para limpar as pernas de varizes de grosso calibre. Para aquela eu me preparei longamente; para esta, foram poucos os cuidados. Aquela demandou muita oração. Esta demandou menos oração. Para a do câncer, eu me internaria, seria operado, iria para o CTI e ficaria alguns dias no quarto do hospital. Para a de varizes eu me internaria, seria operado e sairia no dia seguinte. Ser operado de câncer é algo sagrado; tirar varizes é coisa profana. O câncer toca no mistério. As varizes cabem nos planos.
Quanto as coisas são previsíveis, não oramos ou oramos pouco. Tocamos nossas vidas, a menos que uma doença vil nos toque. Como as doenças vis são raras, são raras as nossas orações. Quem ora porque está com dor de cabeça?
Também no campo da saúde, dizemos: "amanhã iremos a tal hospital, lá passaremos um dia e logo voltaremos para casa. Não precisam se preocupar". Confiamos na medicina, como confiamos nos automóveis, como confiamos nos aviões. Não há lugar para Deus, a menos que um acidente nos flagre.
Então, Tiago nos diz: sim, você vai fazer isto ou aquilo, mas se Deus quiser. Se ele permitir. Se ele agir para que as coisas naturais aconteçam naturalmente. Se ele intervir para que o extraordinário suceda. Temos ouvido que Deus é o Deus dos impossíveis. É verdade, mas ele também é o Deus dos possíveis. Ele está presente no milagre e também na rotina, no previsível e no previsto.
Precisamos chamar Deus para a rotina, para a rotina de uma consulta médica, para a disciplina metódica dos estudos numa escola, para a sequência dos dias de trabalho, para a previsível leitura de um livro, para a alegria banal de uma festa de aniversário, para a tranquilidade de uma viagem de férias.
Na tarefa da vida, o que compete a Deus? tudo. O que compete ao homem? tudo.
Tudo é para ser feito em conjunto, pelos dois.
O homem não deve se afobar. O homem não deve cruzar os braços.
O homem faz o caminho, mas o caminho é de Deus. O homem dá os passos, mas estes passos devem seguir na direção que Deus indicar.
DESVIA A TUA IRA, SENHOR
A oração de Jeremias prossegue com um pedido, para nós, estranho:
"Castiga-me, ó Senhor, mas com medida,
não na tua ira, para que me não reduzas a nada.
Derrama a tua indignação sobre as nações que te não conhecem
e sobre as gerações que não invocam o teu nome;
porque devoraram a Jacó;
devoraram-no, consumiram-no e assolaram a sua morada".
(Jeremias 10.24-25 ARC)
Jeremias ora a um Deus poderoso. Que bom: porque só um Deus poderoso pode transformar as coisas impossíveis em viáveis. Não nos esqueçamos disto: um deus pequeno faz o que nós podemos fazer. Um Deus grande faz o que nós não podemos fazer.
Jeremias ora indignado ao Deus todopoderoso contra a injustiça feita a Jacó, aqui uma metáfora para todo o povo de Israel, que estava para ser reduzido de novo à escravidão, estado do qual fora tirado um milênio antes.
Jeremias pede a Deus que não pegue pesado, porque, se o fizer, nada vai sobrar.
Jeremias sabe que Deus se ira.
Nesta altura, o leitor moderno, com o Novo Testamento presente em suas veias, reage: Deus é amor e não se ira.
Indo ao Novo Testamento com atenção, veremos que Deus se ira. Jesus veio ao mundo porque Deus se ira. Jesus morreu na cruz porque Deus se ira. Jesus gritou "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" porque Deus se ira.
É o apóstolo Paulo que oferece a mais completa explicação para a ira de Deus.
Em Romanos 1.18, ele nos lembra que "do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça". E em 1Tessalonicenses 5.9-10, ele nos conforta: "Deus não nos destinou para a ira, mas para a aquisição da salvação, por nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós, para que, quer vigiemos [fiquemos vivos], quer durmamos [morramos], vivamos juntamente com ele". Deus nos destinou para a vida eterna. Vida eterna é vida com Deus.
Na cruz, a ira de Deus, uma expressão do seu amor, foi satisfeita pela graça, outra manifestação do seu amor. Assim, para aqueles que aceitaram a graça do sacrifício de Jesus na cruz não há mais ira de Deus. Para os que não aceitaram o sacrifício da graça na cruz, a ira de Deus se manifestará no futuro. Mas mesmos para estes, a oferta continua. Jesus, o Filho de Deus a quem ressuscitou dos mortos, pode livrar a todos da ira futura (1Tessalonicenses 1.10), para a destruição certa (cf. A MENSAGEM). Até a manifestação desta ira futura, caso aconteça, é prova da ira de Deus, porque ela se manifesta como uma ausência de Deus na vida da pessoa, que escolheu este afastamento e Deus, amorosamente, respeita esta decisão. Ser alvo da ira de Deus é uma escolha. Ser livre da ira de Deus é uma escolha, a melhor. Jesus foi exatamente para nos oferecer esta possibilidade.
E aqui estamos para levantar um muro de esperança.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO