DO FUNDO DO POÇO (Lamentações 3.55-56)

Clamei pelo teu nome, Senhor ,
das profundezas da cova.
Tu ouviste o meu clamor:
‘Não feches os teus ouvidos
aos meus gritos de socorro’.
Tu te aproximaste quando a ti clamei e disseste:
‘Não tenha medo’.
Senhor, tu assumiste a minha causa;
e redimiste a minha vida.

Tu tens visto, Senhor, o mal que me tem sido feito.
Toma a teu cargo a minha causa!
Tu viste como é terrível a vingança deles,
todas as suas ciladas contra mim.
Senhor, tu ouviste os seus insultos,
todas as suas ciladas contra mim,
aquilo que os meus inimigos sussurram
e murmuram o tempo todo contra mim.
Olha para eles! Sentados ou em pé,
zombam de mim com as suas canções.
Dá-lhes o que merecem, Senhor,
conforme o que as suas mãos têm feito.
Coloca um véu sobre os seus corações
e esteja a tua maldição sobre eles.
Persegue-os com fúria e elimina-os
de debaixo dos teus céus, ó  Senhor".
(Lm 3.55-66 — NVI)

 

Esta oração tem duas partes.
Destaquemos que a segunda (versos 59-66) segue o mesmo diapasão das preces anteriores e pede justiça. O sofrimento da cidade, personificada na pessoa do poeta, foi agravada por insultos, ameaças, deboches e ciladas. Em sua oração, o poeta encontra uma solução para a sua dor: a eliminação dos seus inimigos, para que parem de provocar a dor.
Neste sentido, o lamento se aproxima dos chamados cânticos de imprecação (ou xingamentos) que lemos no Saltério (Salmos 3 a 7, 9, 10, 12-14, 17, 22, 25, 28, 31, 35, 36, 38, 39, 41-44, 49 e 51-61, 63, 64, 70, 71, 73, 74, 77, 79, 80, 83, 85, 86, 88, 90, 94, 102, 109, 120, 122, 123, 125, 129, 130, 127, 139-143). A leitura destes lamentos deve considerar três pressupostos.
O primeiro é que na literatura do Antigo Testamento as adversidades são sempre personificadas; assim, pedir o fim dos inimigos é pedir o fim dos problemas, atitude que qualquer pessoa moderna pode assumir.
O segundo é que devem ser meditados junto com os ensinos de Jesus Cristo, que espera que amemos os inimigos, tendo ele mesmo perdoado os seus algozes.
O terceiro é que o sofrimento, como megafone de Deus, uma vez que, na conhecida expresão de C.S. Lewis, ele “sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossos sofrimentos”. 1 Em outros termos, o sofrimento pode e deve nos levar a uma vida de mais intimidade com ele. Isto não quer dizer que Deus nos mande padecer (embora possa fazê-lo em casos absolutamente excepcionais) para o buscar.
No caso do autor de Lamentações — e chegamos ao coração desta prece, que está na primeira parte (versos 55 a 58) — o poeta clamou ao Senhor do fundo do poço e o Senhor se aproximou dele, assumindo a sua defesa, a qual anunciou por meio de um sussurro suave e claro: "Não tenha medo".
A partir daí, toda vez que o medo se agigantava, ele se lembrava dessa promessa divina como um muro de esperança, desenvolvendo uma certeza eloquente:

"Graças ao grande amor do Senhor 
é que não somos consumidos,
pois as suas misericórdias são inesgotáveis.
Renovam-se cada manhã".
(Lm 3.23)

Precisamos, como ensinou Paul Tournier, "aceitar com realismo a condição humana onde Deus nos pôs para que voltemos a ele, para que abandonemos cada dia mais o que existe de pecaminoso em nosso medo e para conservar seu aguilhão, na medida em que o próprio Deus o pôs em nosso coração a fim de nos darmos conta de nossa miséria”. 2
Estes cuidados nos permitem captar que o Deus antes percebido como distante e irado é agora o Deus que se aproxima, o Deus da misericórdia que nos ouve quando, mesmo no fundo do poço, recorremos a ele.
E sua palavra, como aquela que Jesus proferiu às vésperas de ir embora, é: não tenha medo ou: "Não fiquem aflitos. Creiam em Deus e creiam também em mim" (João 14.1).

"Não tenha medo" — escutamos este canto dos lábios divinos dezenas de vezes na sua Palavra. Reescutemos algumas:

Quando nos dá uma tarefa, ele promete:

. "O próprio Senhor irá à sua frente e estará com você;
ele nunca o deixará, nunca o abandonará.
Não tenha medo! Não se desanime!” (Dt 31.8 — NVI)

. "Não fui eu que lhe ordenei?
Seja forte e corajoso!
Não se apavore, nem se desanime,
pois o  Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar”.
(Js 1.9 NVI)

"Certa noite o Senhor falou a Paulo em visão:
‘Não tenha medo, continue falando e não fique calado,
pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal ou feri-lo,
porque tenho muita gente nesta cidade’”.
(At 18.9-10 — NVI)

Quando passamos por dificuldades, podemos ouvir sua voz:

. "Por isso não tema, pois estou com você;
não tenha medo, pois sou o seu Deus.
Eu o fortalecerei e o ajudarei;
eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa.
(Is 41.10 — NVI)

. "Não terá medo da calamidade repentina
nem da ruína que atinge os ímpios,
pois o Senhor será a sua segurança
e o impedirá de cair em armadilha"
(Pv 3.25-26 — NVI)

Estas promessas decorrem daquilo que Deus é, não do que somos:

. "Não tremam, nem tenham medo.
Não anunciei isto e não o predisse muito tempo atrás?
Vocês são minhas testemunhas.
Há outro Deus além de mim?
Não, não existe nenhuma outra Rocha;
não conheço nenhuma”.
(Is 44:8 — NVI)

Jesus sempre animou os seus seguidores, com palavras de sabedoria e esperança:

. "Não tenham medo dos que matam o corpo,
mas não podem matar a alma.
Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno.  Não se vendem dois pardais por uma moedinha?
Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês. 
Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados.
Portanto, não tenham medo;
vocês valem mais do que muitos pardais!"
(Mt 10.28-31 — NVI)

. “Não tenham medo, pequeno rebanho,
pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino".
(Lc 12.32 — NVI)

Por que tantas promessas dessa natureza?
Porque Deus sabe que temos medo.
Ele sabe que "há pessoas que por décadas são submetidas a uma vida cheia de restrições até o ponto onde, no seu lugar, qualquer um ficaria doente: são privadas de tudo o que lhes dá força, como alegria, o trabalho, a esperança, o amor. Quanto mais adoecem, mais se lhe proíbe toda atividade, mais se lhes sugere o medo da fadiga [a sua] convicção de impotência”. 3
Temos medo porque ouvimos mentiras quando éramos crianças. Mentiram para nós dizendo que não seriamos capazes de vencer os obstáculos. Mentiram para nós cantando que atrás do muro morava um bicho-papão.
Temos medo porque um dia tentamos e fracassamos e, a partir daí, passamos a achar que fracassaríamos sempre. Desde então, não tentamos e, se tentamos, trememos.
Temos medo porque nos comparamos com outras pessoas, imaginando-as mais fortes do que nós.
Temos medo porque olhamos demasiadamente os obstáculos (como os inexistentes gigantes da terra de Canaã).
Temos medo porque não prestamos atenção às promessas de Deus e acabamos por ignorar que Deus é aquele luta conosco e está sempre conosco.
Temos medo porque expulsamos Deus das nossas vidas.
Para não ter medo, não tenhamos medo de ter medo. Temos e nem sempre sabemos por que. Se temos, reconheçamos que temos medo.
Para não ter medo, afirmemos a verdade que as mentiras que nos contaram são mentiras, nas quais obviamente não podemos acreditar.
Para não ter medo, quando tivermos algo a fazer, façamos. Se fracassarmos, tentemos de novo, até acertarmos e fazer o medo ir embora.
Para não ter medo, olhemos menos os obstáculos e mais para as qualidades que Deus nos deu.
Para não ter medo, memorizemos as promessas de Deus, confiando nele. Se vier uma crise de confiança, reafirmemos nossa fé nele. Memorizemos alguns versículos que nos falam do amor de Deus para conosco.
Para não ter medo, entrelacemos nossa mão com a mão de Deus e sigamos juntos a jornada.
Para não termos medo, lembremos que “a fé não elimina o medo mas permite que sigamos lutando. Quando aquele meu amigo inglês fez a lista de seus medos o fez para enfrentá-los com a graça de Deus. No recolhimento abandonamos a utopia estóica de uma vida sem medos, fonte de tantas inibições e mentiras. Na presença de Deus podemos encarar de frente o medo e confessá-lo"; neste sentido, o medo "é frutífero pelo que tem de divino.” 4

Quando Jesus nasceu, o anjo que trouxe a notícias aos pastores cantou em coro: “Não tenham medo. Estou lhes trazendo boas novas de grande alegria, que são para todo o povo:  `Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor`". (Lc 2.10-11 — NVI) Não deve haver espaço, portanto, para o medo em nosso relacionamento com Deus. Mais ainda: o nosso relacionamento com Deus deve nos fazer homens e mulheres livres do medo ou homens e mulheres que estão em busca de ficarem livres do medo.
Jesus veio ao mundo precisamente para isto.

REFLETINDO AINDA SOBRE O MEDO
O psicanalista cristão Paul Tournier nos ajuda a melhor compreender o lugar do medo nas nossas vidas.
Eis algumas de suas orientações (transcritas do seu "Os fortes e os fracos", 5 nas quais cabe ainda refletir:

. “O medo é catalisador da sugestão e a sugestão a semente de um sem-número de temores absurdos e persistentes no coração do homem, inclusive dos mais inteligente e valentes". (p. 72)

. “Neste mundo não se pode ter tudo o que se deseja; tampouco se pode viver sem medo, sem o medo de ser impedido externa e internamente de realizar nossos desejos. Externamente pelas forças da natureza e pela vontade das demais pessoas e internamente por nossa consciência moral". (p. 85)

. “Não há obra frutífera sem medo. Não há bom ator que não tenha que enfrentar o medo. Não há conferencista de êxito que não trema”. (p. 98)

. “O medo é também a porta estreita de que Cristo falava e fora da qual não se encontra a Deus. A graça é prometida a quem reconhece sua fragilidade e não a quem se vangloria de sua força. A Bíblia, com seu conhecimento realista do coração humano, repete 365 vezes: ´Não temas´; mas também fala do ´temor de Deus´ como o princípio da sabedoria. Jesus Cristo, com sua perspicácia psicológica, sabe que não existe vida sem medo". (p. 99)
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1  LEWIS, C.S. O problema do sofrimento. São Paulo: Vida, 2006, p. 106.
2  TOURNIER, Paul. Os fortes e os fracos. São Paulo: ABU, 1999, p. 101.
3  TOURNIER, Paul, Op. cit., p. 115.
4  TOURNIER, Paul, Op. cit., p. 100.
5  TOURNIER, Paul. Os fortes e os fracos. São Paulo: ABU, 1999.