Salmo 138: FORÇA E CORAGEM

Salmo 138
FORÇA E CORAGEM

Convivemos, quando não nós mesmos estamos nestas condições, com pessoas que encontram dificuldade em conciliar sua fé com as lutas que enfrentam, sejam elas de ordem física, financeira, relacional, emocional ou espiritual. Como manter a fé firme, com o desemprego se perenizando? Como ficar firme na esperança, se o divórcio se estabelece inevitável embora indesejado? Como cantar louvores, se a depressão se esconde atrás dos lábios? Como ter esperança, se a sua periclita?
Estas condições estão mergulhadas em nossas vidas, ou melhor: nossas vidas estão mergulhadas nestas condições, e isto não é de agora. Antes de nós, as perguntas ecoaram em muitos corações, talvez em todos os corações. Depois de nós, a perplexidade continuará a sair dos poros.
Essas condições estão na Bíblia, o livro da vida, livro sobre a vida, livro de vida, especialmente nos Salmos, que revelam as entranhas da alma humana. A arte faz isto, ou melhor, a arte é isso. Por trás da beleza, está o drama; sob a forma das formas, está a dor; em meio à melodia, está o desejo. Arte se revela a si mesmo e revela o artista e revela dos seus contemporâneos. Quando ela o faz, mesmo descrevendo o cotidiano de sua época, oferece um painel da alma. Por isto, só é arte aquela que é universal, mesmo sendo tão pessoal; só é arte aquela que é atemporal, mesmo tão precisa em suas descrições do tempo do artista.
Uma destas obras de arte antiga e que chegou até nós é o Salmo 138. Pouco sabemos sobre as condições de sua produção; o que sabemos está no próprio poema e mostra um contexto que tem a ver com cada um de nós aqui, neste momento ou em alguém outro da história pessoal. Não precisamos fazer com os pesquisadores de arte contemporâneos, que usam recursos de alta tecnologia para “ler” quadros de grandes artistas. Uma equipe de estudiosos descobriu um novo método para obter imagens escondidas de quadros: os pesquisadores recriaram um retrato colorida do rosto de uma mulher que estava sob um quadro de Vincent van Gogh pintado em 1887. O grande pintor holandês pintou um quadro e depois pintou outro sobre a mesma tela. Por que razão? Parece que o primeiro quadro fazia parte de um estudo e Van Gogh, por razões econômicas, decidiu reaproveitar a mesma tela.
Por que razão o poeta escreveu o salmo 138? Estaria ele em dificuldades financeiras? Não sabemos muito, mas a leitura — infelizmente a melodia se perdeu; quem sabe um dia seja descoberta — nos mostra uma pessoa passando por uma dificuldade prolongada, como se fosse uma guerra. Nesta guerra, já passara vitoriosamente por algumas batalhas, mas outras estavam por vir. Sua vida se parecia com a de alguém que passa por depressão, em que a vitória final é feita de pequenas conquistas, como liberar um sorriso que estava escondido, como levantar-se para tomar o café da manhã. O dia, no entanto, ainda será longo.
Os versos 7 e 8 revelam o clima interior do poeta, que traduz as nossas condições, por vezes. O poeta conhecia momentos de angústias. O poeta sabia na própria pele o que era enfrentar a adversidade. O poeta achava às vezes que estava sozinho. Por isto, pede, na linha final: “Senhor, não abandones as obras das tuas mãos!” (verso 8b).
É como se, numa nota de rodapé, ele deixasse um soneto:

<II>não lhe conto festivo a minha história
para lhe exibir um postiço herói
o que doi em você em mim também doi
como a sua, minha vida é contraditória

eu lhe trago fragmentos de memória
para deixá-los além do tempo que corrói
que a lembrança e a alegria esmói
esquecido o sorriso de antiga vitória

a esperança se espalha na grama da gratidão
pelo que nossos dias precisamos contar
se um coração sábio queremos alcançar

a confiança se compila no compasso da canção
pelo que sempre precisamos cantar
muitas aleluias ao Autor da grande salvação<FI>

Como toda obra de arte, o poeta escreveu este poema para si mesmo. No entanto, cada um de nós pode se identificar com ele. Imagino que, fosse o poeta um menestrel, um cantor que se apresentava regularmente, seus ouvintes lhe pediam: cante o salmo 138. Como isto não é mais possível, eu lhe sugiro: repita o salmo 138. Quem sabe, invente-lhe uma melodia, porque este poema fala de mim, de nós, para mim, para nós, já que as dificuldades nos são comuns, como se ironizassem de nossa fé
Ficarei feliz, se poema passar a fazer parte da sua galeria pessoal de arte, especialmente nas horas de sombra. As coisas não iam bem para o poeta, mas ele cantava. Ficarei feliz, se você deixar um canto se debruçar dos seus lábios, mesmo de olhos fechados pela falta de perspectiva de solução.
E digo por que.

Mesmo em meio ao sofrimento, o poeta cantava “de todo o coração” (verso 1). Na verdade, ele cantava para Deus. Seu Deus era com letra maiúscula. Seu Deus era o único. Pregadores prometiam deuses que acabavam com todo o sofrimento em 24 horas, deuses que fechavam os corpos para que não fossem alcançados, mas o poeta sabiam que eram falsos e ficava com o seu Deus, o Único, mesmo que suas promessas não fossem assim tão automáticas, mas verdadeiras, como verdadeira é a vida.
Mesmo em meio à confusão que estava a sua jornada, sua mente estaria voltada para Deus. Ele imagina, como seus contemporâneos, Deus morando num templo; então, para lá assestava o seu interesse; era lá que queria estar, porque era lá que os coros cantavam hinos sobre a fidelidade de Deus. Era lá que queria estar para cantar:

“A ti, oh Deus, fiel e bom Senhor, poderoso  Deus,
que estás presentes sempre junto aos teus
a ministrar as bênçãos lá dos céus.
Aleluia! Aleluia!”
(Maxwell Wright)

Ele sabia que Deus não é uma coisa limitada, uma pessoa limitada, mas está exaltado acima de todas as coisas e de todas as pessoas. É como se pudéssemos olhar para cima e pudéssemos ver Deus pendendo dos céus, amoroso, amável, amigo.
Era esta a sua visão, descrita sob a forma da poesia, e ele deseja que todos vejam, inclusive os que se acham os poderosos da terra, na política, na arte, no esporte, na guerra. Ele imagina um coro em que o refrão seja uma letra que exalte a bondade do Senhor, como esta:

“Mesmo que a figueira não floresça, nem fruto dê
e os campos não produzem seus mantimentos
ainda assim no Senhor nos alegraremos”.
(Williams/Harlan/Hodges)

O salmista imagina um conjunto de estrofes, nesta melodiosa canção, que destaque harmoniosamente aquilo que Deus faz para com ele.

O QUE DEUS FAZ
Em sua experiência, o poeta se volta para Deus e conhece pessoalmente um Deus que olha para os humildes.

1. A despeito de Sua glória, Deus se importa com os que estão enfraquecidos, perseguidos, desanimados, cansados, solitários. Deus tem interesse por nossa causa. Ele não troca de calçada quando nos vê em necessidade. Ele não está ocupado para não nos atender. Um dia desses eu dirigia meu por uma de nossas avenidas, quando vi um automóvel parado em meio ao movimento pesado da manhã. Primeiro, critiquei, até ver o homem sair e empurrar sozinho o seu veículo, cujo motor não pegava. Ele estava em frente a um ponto de ônibus, com centenas de pessoas; outras passavam por ele. Ninguém o via; estavam todos com pressa, para chegar ao ponto de ônibus ou à estação de trem ao lado. Não pude fazer nada. Eu não podia parar. Tinha uma boa desculpa para seguir em frente. Todas as pessoas tinham seus motivos. O poeta pensa em Deus como um Deus que pararia para socorrer aquele motorista, correndo perigo ali; Deus não faria como eu fiz: Ele correria perigo para socorrer. Numa palavra, Deus é aquele que se importa.
Uma promessa feita ao remanescente do povo de Israel ilustra bem esse modo amoroso de Deus agir: “Farei cicatrizar o seu ferimento e curarei as suas feridas”, declara o Senhor, porque a você, Sião, chamam de rejeitada, aquela por quem ninguém se importa”. Assim diz o Senhor: ‘Mudarei a sorte das tendas de Jacó e terei compaixão das suas moradas. A cidade será reconstruída sobre as suas ruínas e o palácio no seu devido lugar. Deles virão ações de graça e o som de regozijo. Eu os farei aumentar e eles não diminuirão; eu os honrarei e eles não serão desprezados. Seus filhos serão como nos dias do passado, e a sua comunidade será firmada diante de mim; castigarei todos aqueles que os oprimem. (…) Por isso vocês serão o meu povo, e eu serei o seu Deus” (Isaías 30.17-22).

2. Apesar de parecer escassear a luz no túnel, Deus cumpre o Seu propósito.
Nossa vida não singra sem rumo e sem comando os mares. O profeta Isaías nos relembra a profunda verdade da ação de Deus: “Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam para eles sem regarem a terra e fazerem-na brotar e florescer, para ela produzir semente para o semeador e pão para o que come, assim também ocorre com a palavra que sai da minha boca: ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo e atingirá o propósito para o qual a enviei” (Isaías 55.10-11).
Tem razão Eliú, o amigo de Jó: “Deus é poderoso, mas não despreza os homens; é poderoso e firme em seu propósito” (Jó 36.5). Sim, “os planos do Senhor permanecem para sempre, os propósitos do seu coração, por todas as gerações” (Salmo 33.11). Esses propósitos são profundos, tão profundos que o insensato não entende e o tolo não vê (Salmo 92.5-6). Ninguém os pode impedir. Quando estende a sua mão, para socorrer, ninguém pode faze-la recuar (Isaias 14.27).
Em linhas amplas, o propósito dAquele que nos criou é nos preservar a vida (verso 7) e nos tornar maduros, de modo a não sermos levados de um lado para o outro pelas ondas (Efesios 4.14). Afinal, somos obras de suas mãos (verso 8).
Especificamente, Deus tem um propósito para cada pessoa que criou. Seu propósito pode ser visto como um plano que se desenvolve em parceria. Se não há parceria, não há plano, não há propósito. A vontade de Deus respeita a liberdade do homem. Não há destino, que Deus trace;  Ele tem um propósito, a partir do qual nos faz um convite, que livremente aceitamos ou não. Ser feliz é aceitar esta parceria e pó-la em prática. Este é o propósito de Deus. No que depender dEle, a parceria está selada, a aliança está firmada. A escolha é nossa. Felicidade rima com a convicção de fazer parte do propósito de Deus. É feliz quem permite que a sua história se entrelace com a história. Feliz é quem sabe que sua história está escrita na história de Deus.

OS RECURSOS DE DEUS
Para cumprir o seu propósito, poderoso (Salmo 32.19), para conosco, Deus nos dá força e coragem e nos livra.

1. Deus nos dá força e coragem.
Quando oramos, somos capacitados com força e coragem para a vida. Escreve o nosso poeta: “Quando clamei, tu me respondeste; deste-me força e coragem” (verso 3). Outra versão, com o mesmo sentido, diz: “No dia em que eu clamei, me escutaste; alentaste-me, fortalecendo a minha alma” (Corrigida).
Quando confiamos em Deus, Ele nos dá força resistir aos socos tomados no ringue, tão fortes que parecem nos drenar o fôlego. Quando esperamos em Deus, Ele nos dá força para esperarmos sua orientação ou sua intervenção. Quando nos firmamos em Deus, Ele nos dá força para não seguirmos as soluções sedutoras dos maus, embora tantos as prefiram ao nosso redor.
Quando confiamos em Deus, Ele nos dá coragem para tomarmos as decisões capazes de gerar felicidade, embora sejam dolorosas, como, por exemplo, uma cirurgia a ser feita ou uma parceria pessoal ou profissional a ser rompida. Quando esperamos em Deus, Ele nos dá força para percorrer as sinuosas curvas da vida, tão sinuosas que parecem nos jogar para fora.Quando nos firmamos em Deus, Ele nos dá coragem para buscar a ajuda que precisamos, mesmo que pareça uma derrota a nossa busca.
Deus nos dá força e coragem para escolher o caminho da integridade. Deus nos dá força e coragem para mudarmos as rotas de nossas vidas quando estão indevidas para uma vida que valha a pena.
Deus nos dá força e coragem, seja para agir, fazendo a nossa parte, seja para esperar que Ele faça o que deseja fazer em nosso favor. Deus nos dá força e coragem para manter a fé e a esperança quando Ele parece em silêncio.
A certeza de um poeta anima a sua oração:

“Tua voz me nutre, dando vida e luz,
pão do céu pra alma, só tu és, Jesus.
Fala pois teu servo, pronto está ao ouvir,
e com tua glória vem me encobrir”.
(Grimes/Shwoebel)

2. Deus nos livra.
Deus faz mais que nos dar força e coragem. Ele intervém.
Exclama, confiante, o poeta: “Ainda que eu passe por angústias, tu me preservas a vida da ira dos meus inimigos; estendes a tua mão direita e me livras” (verso 7).
É como se dissesse: “Mesmo quando o medo me deixa angustiado, tu afastas o perigo para bem longe; quando o risco é alto, por erro meu ou de outros, tu vens pessoalmente em meu socorro e tiras da área do conflito para um lugar seguro”.
A Bíblia está cheia de um Deus que fala e que intervém.  
Nas experiências dos homens e mulheres de Deus, ao longo da história bíblica e depois dela, Deus livra agindo de modo sobrenatural, em resposta à oração, seja ou não do nosso conhecimento, tanto a oração humana quanto a intervenção divina. A Bíblia está cheia desses relatos de intervenções de Deus. E Deus continua o mesmo. Ele nos livra até enviando pessoas (algumas que aparecem e desaparecem) que nos resgatam de situações das quais sozinhos não tínhamos como sair.
Ele nos livra orientando-nos para seguir uma trilha diferente da que estamos seguindo, por saber que leva para a morte. (Ah quanto sofremos por nos recusarmos a ouvir a voz de Deus, por meio da Sua Palavra revelada ou pela palavra inspirada de pessoas santas e sábias!)
Ele nos livra inspirando pessoas que intervém em ficam ao nosso lado, falando ou em silêncio. O apóstolo Paulo inventou a expressão “família de Deus”. Escreve ele: “Vocês já não são estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus Cristo como pedra angular, no qual todo o edifício é ajustado e cresce para tornar-se um santuário santo no Senhor. Nele vocês também estão sendo edificados juntos, para se tornarem morada de Deus por seu Espírito” (Efésios 2;19-22). Paulo se refere à igreja, onde o parentesco não é sanguíneo mas espiritual. A família de Deus é um meio de graça para os seus membros e até para os que não são. Deus usa a igreja, mesmo com suas falhas, para consolar, para ensinar, para fortalecer. Somos, numa igreja, filhos do mesmo Pai, que carregam as cargas uns dos outros como forma de viver de modo digno do evangelho de Jesus Cristo (“Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim, cumpram a lei de Cristo” (Gálatas 6.2).

AINDA QUE
Talvez você olhe para um coro, muitos cantando sorrindo ou até movimentando o corpo de alegria, e imagine que não tenham problemas. Eles enfrentam dificuldades, como quaisquer pessoas, mas eles são leitores e praticantes do salmo 138.
Por causa do amor de Deus, louve. Por causa do amor de Deus, cante. Por causa do amor de Deus, prostre-se. Por causa do amor de Deus, renda graças. Por causa do amor de Deus, clame. Por causa do amor de Deus, celebre. Por causa do amor de Deus, ore. O amor de Deus permanece para sempre (verso 8).

ISRAEL BELO DE AZEVEDO