OLHAR A CRUZ

Convida-me o Pai para olhar a cruz,
onde seu Filho se esvaiu em sangue.
Por que me pede? para que sinta pavor
porque de modo tão intenso me amou?

Se olho para lá, com o corpo pendido,
a sombra da tristeza me faz exaurido:
embora cercado de regras, foi um crime;
(a lei é também usada para esconder:
até os corruptos agem dentro do regime)
embora bondoso, foi injusto o amor
(eu é que tinha daquela morte morrer:
como posso me alegrar com este favor?)

Se olho para a cruz, vazia de Jesus,
presentes apenas as cicatrizes do cravo,
posso ver o triunfo inconfundível da graça,
posso escutar o cântico do perdão,
posso sentir o convite à comunhão,
posso me alegrar como o escravo
com a carta de liberdade na mão,
posso viver de tal modo que o canto não travo.

Meus conflitos ainda sobre mim pendem:
hoje deixo que as lágrimas fendam
meus sentimentos diante da atrocidade
que quem podia mas não quis evitar;
hoje não deixo de ficar enternecido
diante de um afeto que não sou capaz
de ver por mim imitado ou mesmo retribuído,
mergulhado em soluços que não sei controlar.

Amanhã, faço vir ao rosto enlarguecido
por um sorriso que a alegria abre,
tal a experiência da gratidão,
pela vida que pulsa e no peito não cabe,
tal a certeza clara da libertação,
tal o poderoso prazer da salvação,
tal o sentido iluminado,
tal o presente dado.

Convida-me o Pai para olhar a cruz,
onde seu Filho se esvaiu em sangue.
Olho e consigo ir além do horror,
porque aquele sangue me batizou.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO