FAMÍLIA: CONFLITOS NO LAR

Preparado para ser pregado na Igreja Batista Itacuruçá, em 2003 (manhã)

1. INTRODUÇÃO

Numa hospedaria ao longo do caminho, o Senhor foi ao encontro de Moisés e procurou matá-lo. Mas Zípora pegou uma pedra afiada, cortou o prepúcio de seu filho e tocou os pés de Moisés. E disse:
— Você é para mim um marido de sangue!
Ela disse "marido de sangue", referindo-se à circuncisão. Nessa ocasião o Senhor o deixou.
(Êxodo 4.24-26 — NVI)

Estamos diante de uma história sobre a qual nada mais sabemos. O texto é um dos mais difíceis de serem traduzidos, pelas possibilidades que apresenta.
Em meio ao drama do Faraó, o autor incluiu o drama de Moisés, encarregado por Deus para enfrentar o líder do Egito.

2. OS CONFLITOS PODEM ATINGIR A TODOS OS LARES.
Mesmo os lares que têm se consagrado ao Senhor para servi-lO podem ser atingidos por conflitos.
O lar de Moisés é um exemplo desta triste verdade. No meio de uma viagem explodiu uma crise, envolvendo o casal e o filho mais velho, Gerson. Seguindo uma tradição iniciada com Abraão, todo filho devia ser circuncidado. Moisés, talvez ocupado demais com sua missão pública — a missão de resgatar um povo — esqueceu-se de sua missão familiar — a missão de resgatar seu filho. A solução do conflito envolveu uma áspera discussão, em que sua esposa o chamou de "sanguinário".
Não podemos esquecer que o conflito faz parte da experiência humana, como uma necessidade, para nos constituir. No entanto, quando ele cresce e fica sem controle, ele deixa de ter uma função de vida para ter uma função de morte.
Nossos lares devem reconhecer a existência dos conflitos e criar condições para que sejam minimizados e superados. Não dá para não ter conflitos, mas dá para viver saudavelmente com eles.
A presença de um conflito tão dramático na família de Moisés nos mostra mesmo os lares cristãos podem ser afetados por conflitos dramáticos. Nós dizemos, numa confissão de desejo é fé: "Eu e minha casa serviremos ao Senhor". Esta confissão, no entanto, não nos isenta de ver nossos lares mergulhados em conflitos, expressos em termos de ameaça da separação, de falta de recursos para a sobrevivência, de triunfo da falta de comunicação, de desentendimento sobre a criação dos filhos, de escolhas unilaterais.
Nossa esperança deve ser que a separação não aconteça, que a família consiga recursos para honrar os compromissos financeiros, que as partes em conflito se engajem no envolvimento, que os pontos de discórdia sejam discutidos em busca de um consenso, que as escolhas seja compartilhadas.
Estes ideais, contudo, poderão vir a se realizar a partir do reconhecimento de que os conflitos são reais. Muitos, no entanto, estamos fazendo com Moisés, que fez de conta que havia uma pendência — a circuncisão do seu filho — a ser resolvida. Muitos estamos fazendo de conta que os conflitos não existem.
Pior: olhando para as nossas igrejas, incluindo a nossa em particular, concluo que estamos falhando. Não estamos investindo o suficiente no fortalecimento da família. Não estamos fazendo tudo o que devemos para fortalecer a família. Não estamos provendo as melhores condições para que as familias se desenvolvam.
Em nome do respeito à privacidade, estamos falhando —  e eu me incluo como o omisso principal. E ao fazê-lo, contribuímos para deixar os lares se afundar e se romper.  A idolatria da privacidade nos tem levado a uma conspiração do silêncio. Fazemos de conta que tudo vai, quando muitas coisas não vão bem, quando muitos lares não vão bem.
Também não estou fazendo o discurso do terror, para dizer que todos os lares vão mal. Acredito que a maioria de nossos lares vão bem, vivenciando e resolvendo conflitos controlados. No entanto, penso que esses lares podem viver melhor. Também penso que os lares com conflitos dramáticos podem ser despertados para um recomeço, para uma reconstrução.
No texto que lemos, há uma frase que nos incomoda. Na tradução que adotamos, Deus desejou matar Moisés por sua negligência como pai. Deus chamou Moisés para uma grande missão, mas agora, renunciava a tudo, desejava matar Moisés, e o mataria, mesmo que tivesse que achar um substituto. Deus não queria um líder quebrado. Deus sabia que não havia uma nação forte com famílias fracas.
Quero derivar deste nosso mal-estar o mal-estar de Deus diante de famílias distantes do seu projeto. Deus está incomodado com lares destruídos, e nós devemos nos incomodar também. O Deus incomodado coloca os mais variados recursos, desde o ensino ao conforto do Seu Espírito, para reunir famílias e fortalecer lares.
Eu gostaria que nossa igreja — de novo me incluindo — se transformasse numa agência de Deus para o fortalecimento das familias tanto das fortes quanto das fracas. Eu gostaria que as famílias com dificuldades acima de suas capacidades se apresentassem, compartilhassem suas lutas.
É possível que algumas não o façam porque não confiam nos pastores que têm. Outras se calam porque acham que ninguém tem nada a ver com a sua vida ou porque não crêem que haja solução para os seus conflitos.

3. OS CONFLITOS PODEM SURGIR DE DIFERENTES FONTES
Boa parte der nós não consegue superar os seus conflitos por não entender a natureza deles. Por isto, quero convidar você a considerá-los melhor a partir da experiência de Moisés, Zípora e Gerson.

3.1. Os conflitos podem decorrer das diferenças individuais na família
Zípora era midianita e vivia sob o teto e as ordens do pai Jetro. Moisés era um nômade, vivendo longa da sua família e do seu povo
Zípora não era monoteísta e não adorava ao Deus dos hebreus, embora o respeitasse, como fazia seu pai. Moisés tivera um encontro pessoal com o Eu Sou, que lhe deu uma missão para toda a vida.
Zípora era uma dona-de-casa. Moisés era um político.
Zípora vivia para os filhos. Moisés vivia para o seu povo.
Zípora e Moisés eram pessoas diferentes, como são todos os maridos e mulheres de qualquer época e lugar. A noção de tempo não a mesma entre eles, como não o é com a maioria dos casais.
Uma família é o palco dos conflitos, porque todos os seus integrantes são diferentes.
Essas diferenças devem ser respeitadas e, mais que respeitadas, cultivadas, estimuladas e valorizadas.
No caso de Moisés e Zípora, estas diferenças ficaram no seu devido lugar, exceto neste episódio dramático. Numa espécie de retrato de muitos de nossos lares, a ansiedade de Zípora, diante da passividade de Moisés, levou-a à explosão.

Diante da realidade das diferenças, precisamos aprender a conviver com elas. Para bem conviver, precisamos aceitá-las, mas — bem entendido! — só aceitar aquelas que não tragam prejuízo à vida familiar.
Não use suas diferenças para se fechar, nem para justificar seu egoísmo. Use as suas diferenças para enriquecer os demais membros da família.

3.2. Os conflitos podem decorrer da falha no cumprimento dos papéis familiares.
Moisés não estava cumprindo o seu papel. Ainda não tinha circuncidado seu filho. A circuncisão era uma tarefa para os pais. Zípora teve que cumprir o papel do marido.
Há tarefas específicas para cada um no lar, e isto inclui os filhos.  Quando um não cumpre a sua parte, há sobrecarga dos outros. Há maridos, por exemplo, que apenas cumprem UM (o de provedores financeiros) dos seus papéis, esquecidos das outras provisões, como a co-educação dos filhos, o suporte emocional à esposa, entre outros.
Há esposas que, mesmo que trabalhem apenas em casa, não fazem da casa um lugar para onde os maridos querem voltar.
Há filhos que só querem ser amados, mas nunca se lembram de amar. Só querem ser aceitos, mas têm imensa dificuldade de aceitar seus pais.

Moisés, não espere que Zípora entre em ação. Ela não entende nada de circuncisão. Ela nem sequer adora o Deus verdadeiro. Você está deixando que ela eduque seus filhos, mas, Moisés, que valores terão eles? Acorda, Moisés. A família deve estar em primeiro lugar.
Zípora, não humilhe Moisés porque ele não fez o que devia e acabou sobrando para você. Lembre-se que ele também já vez algo que cabia a você.

3.3. Os conflitos podem decorrer da tirania de um dos cônjuges.
Moisés tiranizou Zípora ao deixar para ela a tarefa repulsiva e estranha de circuncidar seu filho. Zípora tiranizou Moisés ao lançar sobre ele mais um peso. Se o problema estava resolvido, para que lançar-lhe em rosto, como a mostrar a sua superioridade.
Há pais tiranos. Há filhos tiranos. Há cônjuges tiranos. Há avós tiranos. Esses tiranos do lar disseminam o terror num lugar em que o amor deve ser a meta de todos. Tirano é aquele que impõe a sua vontade sobre as vontades dos outros.
Os tiranos abusam sexual, financeira e emocionalmente dos seus familiares, ou de alguns deles. As áreas em que a tirania pode ser exercida não têm limites.

Faça uma revisão da sua vida: não seja tirano. Deixe sua esposa viver. Se você não consegue, procure ajuda. Não deixe que o seu amor por sua esposa, por exemplo, apague a vida que há nela, o amor que há nela por você.
Se você foi tiranizado, não  seja escravo do passado. Se você foi vítima de abuso, tome uma atitude para não continuar sendo abusado a partir da sua memória. Use a sua memória para ser livre e feliz.
Se você está sendo tiranizado, não aceite esta condição de vida. Ore pelo tirano. Se você não pode mudá-lo, Deus pode. Se você não consegue conviver com o tirano, afaste-se dele, sem violência.

3.4. Os conflitos podem decorrer do pecado
Moisés estava pecando ao negligenciar seu dever diante do filho, deixando de circuncidá-lo. A omissão é pecado.
O pecado tem devastado famílias.
Quero mencionar três categorias de pecado que têm feito muitas vítimas.

Menciono primeiramente o pecado do desinteresse pelo bem-estar do outro. Uma família em que cada membro busque apenas o que lhe interessa, o seu sucesso, o seu gosto, está prestes a se esfacelar. A indiferença é uma arma apontada para o coração.
Interesse-se pelo seu familiar. Promova seu cônjuge. Fortalece seu filho. Ame seu pai.

Menciono em segundo lugar o pecado da mentira. A mentira destrói a confiança. A falta de confiança solapa a família. Se o marido não trabalhou até tarde, ele não trabalhou até tarde. Se o filho não estou e foi mal nas provas, ele não estou e foi mal nas provas.
Viva de tal modo que não precisa mentir para se justificar.

Menciono em terceiro lugar os pecados sexuais. Não há pecado mais devastador do que o sexual, porque ele sempre envolve o desinteresse pelo sucesso da família e a prática de um sem-número de mentiras. Há maridos, mesmo cristãos, sujando seus corpos em outros leitos que não os seus. Há maridos viciados em pornografia. Há esposas, mesmo cristãs, desejando outros corpos que não o do seu marido.
Prefira o padrão de pureza, instruído por Deus. Não vá na onda dos vendedores de ilusão.

Deus apontou o pecado de Moisés. Se você está em falta como o grande líder do Êxodo, Deus também está apontando para o seu pecado. Deixe que Ele toque a sua vida, para purificá-la.

4. O QUE FAZER DIANTE DOS CONFLITOS
Se você vive sozinho, ore por aqueles que vivem em familias. Eles precisam da sua oração.

Se sua família não está experimentando conflitos ameaçadores, agradeça a Deus pelos familiares que tem e peça a Ele para ajudar vocês a serem cada vez mais fortes e a continuarem servindo ao Senhor.
Ajude a sua igreja a ter um ministério relevante para as familias.

Se o conflito tem desorientado a sua família, eis algumas sugestões:

. Não desista da sua família
Ela é a melhor coisa da sua vida. A separação, por exemplo, só não dói na novela. Na vida real, é um trauma que traz sofrimento para a vida toda. Para os filhos, sair de casa é mais uma rima do que uma solução. Para o conselho dos ímpios, os laços não são importantes, mas os que têm laços rompidos sabem que não há ruptura sem sangue.

. Procure ajuda.
Não se esconda. É verdade que tudo que o ocorre no recôndito do seu lar só deve interessar a você e a Deus. No entanto, também é verdade que Deus coloca pessoas para ajudarem você a ser o que Ele quer que você seja. Deus fez a família para ser feliz. Não aceite uma vida familiar atribulada. Use os recursos que Deus disponibiliza você.

. Aconteça o que acontecer, viva uma vida santa.
Se você não tem sexo em casa, não se desespere: viva uma vida santa.
Se você é vítima da língua de alguém em casa, não baixe o nível: viva uma vida santa.
Se você pecou, não se afunde mais ainda: confesse o seu pecado. Confesse a sua mentira, se você mentiu. Confesse a sua traição, se você adulterou.

. Ore por sua família.
Ore por seu filho todos os dias, esteja ele precisando ou não.
Ore por seu cônjuge, mesmo que ele mereça o seu desprezo ou  seu ódio.
Peça a Deus para ajudar você a cumprir o seu papel no lar.
Ore por sua igreja para que ela possa ser o porto seguro das famílias.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO