“EU NÃO PODIA ME CALAR”

Witenberg, Sexta-feira, Dia de Todos os Santos, 1517
(Folha do diário IMAGINÁRIO de Martim Lutero)

"Pensei que ontem seria estafante, mas foi monótono.
Na segunda-feira, escrevi 95 teses e ontem (já tarde) eu preguei as folhas em quatro colunas na porta da igreja do castelo de Wittenberg, sobre o rio Elba. Eu queria uma disputa entre alunos e professores da minha Universidade. O documento se chamava "Disputa de Martin Lutero sobre o poder das indulgências".
Pensei que hoje às pessoas iram aparecer. Não veio ninguém.
Na verdade, eu não devia me surpreender. No dia 4 de setembro, enviei também 95 teses contra a teologia escolástica para o meu mosteiro em Erfurt e a resposta foi um pétreo e desdenhoso silêncio. Aliás, para ser justo, ontem apareceram três pessoas, um colega e dois alunos. Estavam de acordo comigo. Vim embora.
De noite, no meu quarto, fiquei pensando em como cheguei à alegria de viver, coisa que eu pensava impossível, tão medroso sempre fui. Eu nao queria ser monge. Ninguém queria lá em casa.
Uma tempestade mudou minha vida. Eu tinha 22 anos. Foi no dia 2 de julho, eu me lembro. Eu tinha me matriculado em Direito na Universidade de Erfurt. Depois de uma visita à casa dos meus pais, em Eisleben, estava de volta quando fui surpreendido na floresta por uma terrível tempestade, que me lançou ao chão. Ali me ajoelhei e prometi a Santa Ana que me tornaria um frade. De fato, no dia 15 dei uma festa de despedida para meus colegas, que não entenderam nada (eu era um bom aluno) e no dia seguinte dei entrada aqui.
Nao vieram tempos de paz, como eu imaginei. Li muito a Bíblia. Depois, eu me tornei professor. Lavei muita latrina. Deus veria minhas obras e salvaria minha vida. Nada. Enquanto fazia meu doutorado em teologia, eu gemia. Eu fazia tudo para Deus perdoar os meus pecados, mas ele não me ouvia.
Eu tinha minha vocação e precisava continuar. Gostava de dar aula de Biblia. Meus alunos tinham que lê-la nos originais, nada de latim.
Há uns dois anos, eu ensinava Romanos. Quando estudava, um raio bateu sobre mim. Nao foi um raio da natureza, foi um raio da graça. Meu coração encontrou a paz quando meus olhos leram em Romanos 1.17:

Ὁ δὲ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται.

Para que eu me sacrificava, se para agradar a Deus bastava responder ao dom da graça com fé?
Nao sei como será minha vida daqui para a frente, mas sei que agora tenho paz com Deus. Que mais me importa?
Continuei dando minhas aulas. No ano passado, quando Leão X voltou a lançar mão dessa desgraçada abominação, preguei (também no dia 31 de outubro) contra a venda de perdão. Johann Tetzel (eu sei que ele não é o pai da criança) chegou a Jütterborg. Um aluno me disse que ele dizia que, quando uma pessoa comprava uma indulgência para um parente, a alma saía voando do purgatório. Nada de contrição. Nojo!
Aquilo tinha que parar. Como os apóstolos, eu não podia me calar diante do que tinha visto e ouvido. Por isto, escrevi as teses, coloquei-as num envelope e remeti para o arcebispo Albrecht, para ver se se arrependia e mandava Tetzel para casa. Também preguei na porta da igreja.
Para se construir uma basílica para Jesus Cristo, não se pode vender o Evangelho".

ISRAEL BELO DE AZEVEDO