Lucas 1.53-54: A HISTÓRIA DE CABEÇA PARA BAIXO

A HISTÓRIA DE CABEÇA PARA BAIXO

Lucas 1.53-54

Pregado na Igreja Batista Itacuruçá, em 19.12.1999 (manhã).

1. INTRODUÇÃO
O desejo de Deus é que não haja famintos e o Natal é um tempo de consciência disto. Um propósito para o Reino é que não haja ricos nem pobres, no sentido espiritual e no sentido material. Neste poema, o sentido é global (espiritual, moral e material).
Esta consciência, de busca de igualdade e dignidade, não pode ser, no entanto, apenas uma consciência de época, mas o Natal deve mover nossa consciência permanentemente em direção ao projeto de Deus. Não pode ser uma consciência que se auto-engana, oferecendo o lixo dos seus bens aos que são obrigados a aceitar o lixo (sapato furado, roupa rasgada, comida vencida). Não pode ser uma consciência que oprime o que recebe, o que se faz, por exemplo, com tratamento desdenhoso. Basicamente os carentes carecem de carinho, carinho que se manifesta em presentes novos, roupas novas, sapatos novos, comida nova…

2. A NATUREZA DO CONTRASTE
Há duas dimensões para este modo divino de agir, modo que inverte a lógica humana, ao fartar os famintos e ao ignorar os ricos.

2.1. O contraste material
Persiste o contrário do desejo divino, pela manutenção do contraste da desigual distribuição de renda, que é, a brasileira, uma das piores do mundo.
A concentração de renda ainda é altíssima no Brasil: os 10% mais ricos detêm 47% de todos os rendimentos do trabalho, enquanto os 70% mais pobres se consolam com 26%. Em outras palavras, imaginemos uma pizza de 20 fatias: 1 pessoa comeria 10 fatias; 2 pessoas ficariam com 5 fatias; 7 pessoas teriam que dividir as 5 fatias restantes.
Lamentavelmente o contraste tem se agravado. Uma pergunta seria: não tem feito o Cristianismo diferença neste aspecto tão essencial? Sim e não.
Sim, porque o desejo da igualdade é, por si, uma conseqüência do Cristianismo. A percepção da desigualdade existe graças ao Cristianismo. Além disso, o Cristianismo não pode ser responsabilizado pelos sistemas políticos, já que ele não é um sistema de governo, mas um conjunto de valores inspirados por Deus para aqueles que aceitam o governo de Deus.
Não, porque o Cristianismo acabou se privatizando, como se Deus só tivesse interesse pelo futuro das pessoas nunca pelo seu presente. Privatização significa aqui centralizar as relações tão somente no plano vertical, como se o contato homem-Deus não implicasse num relacionamento horizontal. O Cristianismo que não tiver implicações sociais não será Cristianismo.
Em certo sentido, somos culpados da desigualdade no mundo e no Brasil, ao nos esquecermos que o Evangelho é para o homem todo.

2.2. O contraste espiritual
Quando Deus despede os ricos, Ele o faz para indicar sua insatisfação com o modo como as aristocracias de todos os tempos tratam os pobres (no que a novela “Força de um Desejo” nos ajuda a entender nossa própria época…)

Este despedimento tem outro sentido, que se aplica a cada um de nós. Os ricos, tenham eles muito ou nenhum dinheiro, são os soberbos. Soberbos são aqueles que acham que não precisam mais da misericórdia de Deus, porque já sabem tudo sobre Deus, vivem tudo de Deus. No tempo de Maria, havia uma espécie de casta religiosa que sabia tudo. Esperava-se que o Messias nasceria entre eles.
No método de Deus, Seu filho nasceu entre os simples, ou humildes, aqueles que sabem que carecem da misericórdia de Deus e que estão prontos para recebê-la. Os soberbos são “religiosos” demais, apegados em suas convicções (nascimento sobrenatural, como o de Maria, nem pensar…) ou em suas tradições (só há beleza num culto transcorrido dentro de padrões sancionados…), tradições de pessoas velhas, mas também tradições de pessoas jovens.
Esses ricos não são capazes de ver que Jesus nasceu e muito menos recebê-lo com seu Senhor.
Há crentes ricos/soberbos, que um dia ouviram a voz de Deus, quando se fizeram famintos e foram alimentados, mas jamais a ouvirão de novo, porque se tornaram ricos, e não buscam mais o alimento em Deus e de Deus, senão em si e de si mesmos.

3. A LEMBRANÇA DA  MISERICÓRDIA
Misericórdia significa graça sem mérito. No Antigo Testamento (heded), significa a devoção de Deus a seu povo, por meio do seu amor pactual. Sua misericórdia fez com que Ele não lavasse as mãos e deixasse Israel entregue a si mesmo.
O Novo Testamento usa como sinônimo a palavra graça, que significa favor a uma pessoa que não tem condições sequer de pedir este favor.

3.1. O plano da misericórdia
A misericórdia de Deus faz parte de um plano; por isto, escolheu Israel. Ele escreve e reescreve a história para nos alcançar. Sua misericórdia não depende do cumprimento de nossa parte no pacto. A fidelidade dele não depende de nossa fidelidade.
Não sei porque as pessoas se esquecem da misericórdia, que deletou a nossa culpa, e experimentam tanta culpa, a maioria delas sem nenhum sentido.
Não sei porque também se esquecem da misericórdia e tratam tão severamente as pessoas. Somos capazes de condenar as pessoas sem as julgar, sem procurar saber quais foram as suas intenções.

3.2. O alcance do outro
É um Deus que se manifesta aos outros e não somente a nós (auxiliou a Israel). Pedimos demais por nós mesmos. Ouso dizer que 90% de nossas orações são pedidos para nós mesmos ou para nossos íntimos. Os outros são apenas apêndices.

4. CONCLUSÃO
O padrão para nós é que nos lembremos de ser misericordiosos como algo natural em nós. Nós também podemos fazer que nossa história vire de cabeça para baixo, ao nos portarmos como o Deus de Maria, que despede os ricos e alimentos os famintos. A misericórdia faz parte da natureza de Deus e deve fazer parte da nossa também.
Como é bom travar conhecimento de pessoas que se lembram de usar de misericórdia. Como é a história de uma senhora que já escreveu milhares de cartas a presidiários, para confortá-los evangeliza-los… Como a senhora que todo ano faz uma festa para crianças pobres, com presentes bons, novos e bem embalados como se eles os estivessem comprando numa loja…

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