João 4.23: BACH, SINCERIDADE E FÉ

“O objetivo e a razão final de toda música não podem ser outros senão a glória de Deus e a satisfação da alma” (Johann Sebastian Bach – 1685/1750).

Ninguém compôs mais e ninguém compôs melhor músicas de adoração a Deus do que o alemão Johann Sebastian Bach (1685/1750) no século 18.  Por isto, é “impossível apreciar devidamente a produção religiosa de Bach sem recordar a sinceridade e a fé inabalável que o caracterizaram”. Ele tinha por costume colocar as iniciais J.J. (Jesus, juva — “Ajude-me, Jesus”) no início dos seus manuscritos, os quais terminava com outras três iniciais:  (Soli Deo Glória — “Glória somente a Deus” ou a “Deus toda a glória”). “Estas letras, porém, não eram para ele uma simples formalidade, mas a expressão real de sua íntima comunhão com Deus”. (BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Cânticos de Natal. Rio de Janeiro: Kosmos, 1954, p. 14).

Por isto, alguém imaginou uma entrevista com ele, na qual perguntava:
— Como gostaria de ser lembrado?
A resposta imaginada foi:
— Um homem que glorificou a Deus através da música. (Disponível em <http://www.serve.com/Lucius/Bach.index.html>. Acessado em 20.11.2002.)
Este epitáfio imaginário faz justiça a uma das frases de Bach: “O objetivo e a razão final de toda música não podem ser outros senão a glória de Deus e a satisfação da alma” (Johann Sebastian Bach – 1685/1750).

Bach colocou as coisas de modo claro, mas até hoje a tensão continua. A quem deve fazer bem a adoração, por meio da música? Ao Deus adorado ou ao homem adorador?
Por esta razão, devemos aprender com a Bíblia o que é adorar e como adorar, para que também nos perguntemos se há condições para a adoração que Deus recebe.

A NATUREZA DA ADORAÇÃO
O que é adorar? Geralmente, nós associamos a adoração à música ou ao louvor. Não há dúvida que todo tipo de música sacra faz parte da adoração, mas não a esgota. Não há dúvida que toda música dirigida para a exaltação a Deus faz parte da adoração, mas não a esgota. Adorar é uma atitude de vida.
E que atitude é esta?

1. Adorar é amar a Deus e somente a Deus como Deus.
A recomendação bíblica é bastante clara: não adorarás outro deus; pois o nome do Senhor é zeloso; sim, Deus zeloso é ele (Êxodo 34.14). Deus sabe que encontramos o propósito para a nossa existência, quando mantemos os nossos olhos nEle como o sentido último para a nossa vida. Quando desviamos nossos olhos para outros deuses, ficamos com a cara desses deuses, aos quais passamos a adorar. Quando mantemos nossos olhos em Deus, aproximamo-nos dEle e nos parececemos com Ele. Quando desviamos nossos olhos para outros valores, ficamos compromissados com estes valores, que passam a nos divertir, a nos confundir, a nos nos dividir e a nos consumir. É por isto que o Deus da Bíblia é zeloso: Ele não nos quer perder, para que nós não nos percamos.
A quem estamos amando? Aprendemos a declarar o nosso amor a Deus, mas quando Ele nos pergunta: “Israel, amas-me?”, certamente serei pronto a responder: “Senhor, tu sabes que te amo”. Mas se Ele me pergunta de novo: “Israel, amas-me?”, responderei, olhando para dentro de mim mesmo com alguma desconfiança: “Senhor, tu sabes que te amo”. Mas se Ele me faz a mesma indagação pela terceira vez: “Israel, amas-me?”, eu preciso de muita coragem para encarar o meu Criador, para responder, trêmulo e desejo de ser fiel: “Senhor, tu sabes que te amo”. (João 21) Ou eu amo ao Senhor de todo o coração, ou eu não amo. O egoísta não adora, a não ser a si mesmo.
Adorar ao Senhor é amá-lo de todo o coração, usando minha voz, meu corpo, meus instrumentos para expressar este amor, amor que canta o amor de Deus. Devemos tributar [dedicar] ao Senhor a glória devida ao seu nome; devemos trazer ofertas e entrar nos seus átrios, pois assim fazendo, adorai o Senhor na beleza da sua santidade (1Crônicas 16.29). Aliás, aqui está a diferença entre a música e a música sacra cristã. As duas são formas de arte. A primeira é um fim si mesmo ou o meio para conquistar alguém, mas segunda é tão somente um meio para se cantar tão somente o amor de Deus.

2. Adorar é amar o próximo, criação de Deus.
A adoração tem sido apresentada como um oásis em nossas atribuladas jornadas, e não há dúvida que o seja. Depois de uma semana dura, como se fosse um deserto poeirento, pedrogoso, quente e seco atravessado, é bom estarmos juntos com aqueles que nutrem a mesma fé que experimentamos para relaxar no oásis da presença de Deus e para louvá-lO pelas vitórias alcançados pela força do Seu poder. Diante de uma semana dura que se prenuncia, é bom estarmos juntos com aqueles que vivem na mesma esperança que nos movemos para relaxar no oásis da presença de Deus e para louvá-lO por aquilo que certamente fará em nós.
Todavia, a celebração da gratidão ou da esperança não nos pode afastar daqueles que crêem como nós, que louvam com nós. Há lugar para a adoração intimista, mas é da sua essência a participação comunitária. A adoração não pode ser uma fuga do mundo em que estamos e das pessoas que conhecemos, porque, sem conexão com o próximo, visível, não há conexão com o Outro, invisível. Não podemos entrar em comunhão com Deus, se estamos em desarmonia com o outro. Quando oramos, cantamos ou tocamos, mergulhamos no coração de Deus, para nos deliciarmos nEle, mas Ele não se deliciará em nós se também não estivermos unidos aos corações dos nossos próximos. É doloro ter quer repetir esta verdade, porque temos falhado demais dela, mas é a verdade da Bíblia. Antes de orarmos, cantarmos ou tocarmos, confessemos os nossos pecados, acertemos as nossas diferenças com os nossos próximos. O aroma que sairá de nossa adoração chegará aos céus. Fora disso, é fumaça que nós mesmos consumimos.
A adoração não um intervalo do compromisso ético. Antes, há que ser uma capacitação para amar ainda mais a Deus e para amar ainda mais os outros. Fora disso, é alienação, é adoração vazia, é sacrifício sem misericórdia. A propósito, Bach dedicou um de seus livros à glória do Altíssimo Deus e ao próximo, para dele colher ensinamentos”. (Citado por NEUNZIG, Hans A. Uma nova música européia. Bonn: Inter Natione, 1985, p. 81).
O profeta Amos mostra que podemos cantar à toa ao som da lira. Podemos até inventar instrumentos, como como Davi fez, mas serão instrumentos para nós mesmos, se não foram acompanhados de ação de justiça. (Amós 6.5).

A VERDADE DA ADORAÇÃO
Jesus preocupava-se com o nosso propósito na adoração. Ele disse que o Deus Pai procura pessoas que O adorem em espírito e em verdade (João 4.23).

A adoração verdadeira não tem a ver com lisonja (elogio com a intenção de receber algum benefício). Muito menos, depende ela da forma em que é expressa.

Adorar não é amontoar palavras com a intenção de obter o favor de Deus. Há crentes achando que Deus é idiota, que basta lhes basta repetir um punhado de palavras decoradas que Deus vai atender com um sorriso satisfeito nos lábios. Temos entendido que adorar é louvar, isto é, elogiar, exaltar a Deus. No entanto, esta exaltação há que ser pura.

Adorar não é aprender um conjunto de rituais e formas esteticamente apreciáveis, sejam estes rituais antigos, novos ou pretensamente novos. Nenhuma forma pode ser sacralizada. Ouvi que a oração sincera é aquela em que a pessoa põe a boca no pó. Ora: uma pessoa pode ajoelhar-se e beijar o chão sem que esteja realmente se humilhando perante Deus, embora pareça à luz dos olhos humanos.
Alguns cristãos são criticados porque adoram de uma forma aparentemente conservadora, sem mudança há muito tempo. Na verdade, o culto está sempre mudando. O culto de antigamente só existe na imaginação de quem viveu no “antigamente” ou ouviu acerca deste tempo. Não há como um culto não mudar, mesmo que afirmemos não querer mudar.
Outros cristãos são criticados porque adoram de uma forma considerada extravagante, por incluir movimentos dos braços e até dos corpos e repetição, aparentemente interminável, das melodias.
Quero dizer que os chamados conservadores estão errados, como estão errados os considerados extravagantes. Digo mais: nem a forma bíblica de adoração deve ser cristalizada, porque não há uma forma bíblica, mas várias, em função das necessidades espirituais de cada grupo. Numa experiência litúrgica do Antigo Testamento, lemos que Esdras bendisse ao Senhor, o grande Deus; e todo o povo respondeu: Amém! Amém! E, levantando as mãos; inclinaram-se e adoraram o Senhor, com o rosto em terra (Neemias 8.6). Em nossa cultura, baixar o rosto à terra não tem qualquer significado, mas ajoelhar tem. Toda adoração é prestada por pessoas concretas em práticas culturais específicas.

Por isto, os elementos que compõem o culto têm que provir de diferentes origens cristãs e se manifestar em diferentes estilos. No culto, que deve ser eclético, todos devem encontrar seções que lhes agradem, porque os estilos de culto são aprendidos. Mesmo os conservadores precisarão, numa determinada circunstância de suas peregrinações cristãs, de um culto mais “exagerado”, diante da premência de uma ou mais necessidade. Mesmos os extravagantes precisarão, numa determinada circunstância, de um culto mais elaborado, mais calmo, para que possam meditar e concluir.

CONDIÇÕES PARA ADORAR
Para que a adoração nos faça realmente bem

1. Confissão do pecado
A adoração deve se seguir à confissão dos nossos pecados. Neste sentido, tem pouco a ver com arte, para ter tudo a ver com vida.
Na  grande festa que Esdras mandou celebrar,  encontramos a atitude que deve preceder a adoração, para que nos faça bem. Eis o que lemos: Levantando-se no seu lugar, [os sacerdotes e o povo] leram no Livro da Lei do Senhor, seu Deus, [durante] uma quarta parte do dia; e na outra quarta parte dele, fizeram confissão e adoraram o Senhor, seu Deus (Neemias 9.3)
Sem confissão, a adoração pode nos agradar por sua beleza, mas não agradará a Deus. Sem confissão, a adoração poderá extasiar a congregação, mas não será recebida por Deus,  que se relaciona apenas com corações quebrantados, nunca com os orgulhosos e os altivos.
Quando confessamos os nossos pecados, nós não são entramos na presença dEle, aí sim acompanhados do louvor, como glorificamos a Deus pela obediência das nossas confissões quanto ao evangelho de Cristo (2Coríntios 9.13a)

2. Reconhecimento do amor de Deus
O que Deus tem feito por você?
Espero que a sua percepção seja a mesma dos filhos de Israel no deserto. A descrição bíblica é magistral. Todo o povo via a coluna de nuvem que se detinha à porta da tenda; todo o povo se levantava, e cada um, à porta da sua tenda, adorava ao Senhor. (Êxodo 33.10)
Se não temos adorado ao Senhor, é porque não temos reconhecido o Seu amor para conosco. Tudo o que nos acontece é conseqüência das tramas sociais? Se pensamos assim, não temos o que agradecer. Se, no entanto, achamos que existem as tramas, mas existe um
Deus que está acima da tramas, até para confundi-las a nosso favor, só nos resta adorá-lO.
Ainda segundo a experiência do Êxodo, o povo ouviu que o Senhor o tinha visitado, vendo a sua aflição e se disposto a tirá-lo dela. Então, o povo creu. Então, todos inclinaram-se diante de Deus e O adoraram (Êxodo 4.31).
Mais tarde, Deus fez algo extroardinário com este povo, que teve significado pleno em Jesus Cristo. Ele instruiu o povo a sacrificar cordeiros, tomar o sangue e marcar os portais de todas as casas dos seus filhos. Quando a morte viesse visitar a terra, ela não alcançaria as casas marcadas com o sangue do cordeiro (Êxodo 12.21-23).
Quando morreu na cruz, Jesus marcou nossas vidas com o seu sangue, o sangue do Cordeiro de Deus, para que tivéssemos vida eterna.
Foi o amor de Deus que tirou o povo da escravidão. É o amor de Deus, por meio de Jesus, que nos tira da escuridão da falta de sentido, da falta de perspectiva, e nos lança numa vida que nos motiva a adorar o Deus que fez tudo isto sem que nós merecêssemos. Não há como não adorar diante de tanto amor, amor que encontrou seu clímax na cruz — e este é um necessário resumo do Evangelho a ser repetido — pois foi na cruz que o perdão pleno de nossos pecados nos foi oferecido. É por isto que Bach chama Jesus de a alegria dos homens. Sem o sangue do Cordeiro na cruz, não há alegria.

3. Busca do prazer em estar na presença de Deus
Adora quem tem prazer em estar na presença de Deus. Na verdade, adorar é estar na presença de Deus. Adorar é penetrar não na essência de Deus, mas não essência do que nós somos, já que fomos feitos para o louvor da glória de Deus (Efésios 1).
Entramos na presença de Deus por meio da oração, por meio da contemplação, por meio da música, vocal ou instrumental. Como disse Lutero, a música é “um precioso dom dado ao homem apenas para que ele possa recordar que Deus criou o homem para o expresso propósito de louvar e exaltar a Deus” (Martin Lutero. Forward to Georg Rhau’s Symphoniae, a collection of chorale motets published in 1538.)
Você quer entrar na presença de Deus, ouça o conselho dado a Débora, uma das grandes mulheres da antiguidade bilbica: Desperta, Débora, desperta, desperta, acorda, entoa um cântico (Juízes 5.12).
Seja a sua certeza a do profeta bíblico: Eis que Deus é a minha salvação; confiarei e não temerei, porque o Senhor Deus é a minha força e o meu cântico; ele se tornou a minha salvação (Isaías 12:2).  Quando adorar, faça como Davi: ele e todo o Israel alegravam-se perante Deus, com todo o seu empenho; em cânticos, com harpas, com alaúdes, com tamboris, com címbalos e com trombetas (1Crônicas 3.8).

CONCLUSÃO
Quem tem mais prazer no nosso louvor. Se Deus tiver, será um prazer santo. Se não tiver prazer em nós, será um vazio o nosso louvor. Lembrando novamente Bach, “o objetivo e a razão final de toda música não podem ser outros senão a glória de Deus e a satisfação da alma”. Ver Deus nos faz bem. Ser perdoado por Deus nos faz bem. Adorar é ver Deus. Adorar é ser perdoado por Deus.
Quero terminar parafraseando Bach, que disse: “Para escrever uma grande música, o músico deverá tornar sua vida uma grande canção”. Você pode escrever uma grande vida, crendo em Jesus como Salvador e adorando a Deus por reconhecer que Ele é o seu Senhor.
Da biografia de Bach salta seu propósito de viver para glorificar a Deus. Que propósito salta da sua vida?