O sociólogo Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida classifica o “não lugar” da seguinte maneira: “Um não lugar é um espaço destituído das expressões simbólicas de identidade, relações e história: exemplos incluem aeroportos, auto-estradas, anônimos quartos de hotel, transporte público…”.[2] Gostaríamos de partir desta definição para trazer um alerta a respeito daquilo que algumas igrejas estão se tornando ou podem se tornar. Nosso questionamento parte do pressuposto de que a igreja do Senhor – remanescente fiel – jamais será um não lugar, pois está para além de grupos evangélicos, espaços religiosos e denominações. Entretanto, percebemos alguns movimentos que nasceram com a bandeira cristã e estão se diluindo, consumidos por interesses que não são os interesses do evangelho.
1. Uma igreja se transforma em um não lugar quando sua proposta se fundamenta na exploração do ser humano ao invés da doação.
A igreja como comunidade de Deus é formada por pessoas que abençoam outras pessoas e não um lugar sem afeto e continuidade. Temos percebido que algumas igrejas estão desenvolvendo estratégias que se diferem da proposta original do evangelho. O modus operandi visa extrair o que as pessoas têm, e não ajudá-las a ser o que Deus deseja que sejam. Na medida em que o foco é retirar e não doar – coisa do evangelho -, aquele ambiente se torna um não lugar pelo fato de que não existe interesse genuíno pelo indivíduo enquanto pessoa carente de Deus e de salvação, mas uma tática de exploração aos que passam pelo lugar que de fato é um não lugar.
2. Uma igreja se transforma em um não lugar quando prioriza o solilóquio (monólogo) em detrimento do colóquio (conversação).
A igreja como comunidade de Deus não pode deixar de ser agência de transformação histórica fortalecida pelo diálogo e pela transparência. Quando uma igreja se transforma em um lugar onde o diálogo é desprezado em função de uma proposta qualquer termina sendo na verdade aquilo que não deveria ser: um não lugar. Um lugar sem relacionamentos profundos e sem desenvolvimento pessoal que possibilita crescimento.
3. Uma igreja se transforma em um não lugar quando valoriza uma atuação momentânea sem desdobramentos futuros.
A igreja como comunidade de Deus precisa atuar de forma integral em sua missão libertadora, tendo seus olhos abertos aos clamores do mundo perdido. O que deve provocar um olhar para além das fronteiras da própria comunidade de fé. Quando uma igreja vive de espetáculos como que estivesse representando, embora esteja desenvolvendo muitos papéis dentro do programa local, deixa de ser um lugar de transformação para ser um lugar de exibição. Um lugar de performance sem interesse legítimo pelo outro. Como John Stott afirmou: “Toda atividade cristã se não for uma expressão de amor a Deus e ao próximo, é uma demonstração de falsidade, de gestos vazios e sem significado”.[3]
4. Uma igreja se transforma em um não lugar quando se organiza como recinto religioso de consumo sem proposta de profundidade em Deus.
A igreja como comunidade de Deus precisa rechaçar a superficialidade, marca de nossa sociedade pós-moderna que fabrica indivíduos que não desenvolvem seu potencial, não criam vínculos reais e vivem de experiências de satisfação. Quando uma igreja fortalece esta visão consumista ela se distancia do desígnio de Deus, transformando-se em um não lugar. Um lugar de consumo e um espaço que oferece um momento para ser desfrutado e não um lugar de permanência e de construção com Deus e com o próximo.
5. Uma igreja se transforma em um não lugar quando se distancia de sua missão como portadora da Boa Notícia e dos valores do Reino de Deus.
A igreja como comunidade de Deus não pode ser um lugar efêmero e apenas de passagem – como um hotel, aeroporto, banco, supermercado ou um fast-food – pois nasceu com a missão de ser lugar de vida para os que carecem sem esperança. A missão da igreja não combina com um lugar destituído de identidade e que valoriza a transitoriedade.
Ser igreja é permanecer. Permanecer em Cristo (Jo 15.3-7), permanecer no amor (Jo 15.17); permanecer na comunhão (At 2.42); permanecer no partir do pão (At 2.42); permanecer na misericórdia (Lc 6.36); permanecer na Palavra de Deus (Jo 8.31); permanecer no ensino dos apóstolos (At 2.42); enfim permanecer em uma missão transformadora (Lc 4.18).
Uma igreja jamais será um não lugar se permanecer focada na missão dada por Deus.
* Texto do pastor Evaldo Rocha publicado na Revista Vigiai – Ano 1 – Edição 3 – 2012
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[1] Termo cunhado pelo antropólogo francês Marc Augé para designar um lugar apenas de passagem. Sugestão de leitura: Marc Augé. Não-lu gares: introdução a uma antropologia da modernidade.
[2] Zygmunt Bauman.Modernidade Líquida. p.120.
[3] John Stott. O que Cristo pensa da igreja. p.83.