É BÍBLICA A ORAÇÃO POR UM INCÊNDIO NA IGREJA? (Sylvio Macri)

Ultimamente têm feito sucesso certas músicas que, no seu refrão, pedem para Deus incendiar sua igreja. Trata-se de um jargão que vem da primeira hora do movimento pentecostal, que pode ser produto de duas vertentes.

Em primeiro lugar, pode ser uma influência inconsciente do paganismo. Desde a sua descoberta, o fogo vem sendo adorado como um deus em quase todas as culturas antigas ou primitivas. Os gregos antigos diziam que ele é um dos quatro elementos basilares do universo, juntamente com a terra, a água e o ar, falácia desmentida pela ciência moderna, que classifica os átomos que constituem a matéria em mais de cem elementos químicos. O ser humano sente uma atração estranha pelo fogo. A obsessão que se observa em certos arraiais evangélicos com relação ao fogo beira o paganismo, haja vista a maneira sensual com que se expressam as letras das músicas acima referidas. Infelizmente, o paganismo ainda arraigado na mente dos autores dessas músicas, muitos deles recém convertidos ou mal doutrinados, os leva a endeusar coisas que nada têm a ver com a verdadeira espiritualidade.

Em segundo lugar e em um sentido mais claro, é má interpretação da Bíblia.

No Antigo Testamento o fogo é basicamente usado para queimar os sacrifícios oferecidos ao Senhor, como parte principal do culto israelita. Pelo fato de consumir os animais e outras coisas oferecidas no culto, o fogo tem a função metafórica de purificação e expiação. Como diz Dt.4.24, Deus é um fogo consumidor.

Entretanto, não é nesse sentido que se ouve o povo cantar “incendeia”. Não se trata de confissão e arrependimento de pecados, mas de um desejo de ser inflamado por uma paixão violenta, que se expressa por meio de uma linguagem por vezes sensual. A oração é por um certo poder evidenciado por muita emotividade.

No Novo Testamento, o fogo aparece em três sentidos básicos, todos figurados ou metafóricos:

1.  Como sinal da glória divina

Em Ap.1.14, 2.18 e 19.2 os olhos de Jesus são descritos como tendo a aparência de chamas de fogo. Em Ap.10.1, o anjo forte que desceu do céu tinha as pernas como se fossem colunas de fogo. Em Ap.4.5, diante do trono, estavam sete tochas de fogo. Em Ap.15.2, é mencionado um mar de vidro misturado com fogo. Em Atos 2.3, por ocasião da descida do Espírito Santo, aparecem línguas como de fogo. Em todas essas ocasiões o uso do fogo é figurado, em alguns casos usando-se a expressão “como de fogo”. Certamente não é para ver a glória de Deus que se pede ao Senhor que incendeie a igreja, mas sim para obter uma certa glória pessoal.

2. Como figura de provação, sofrimento e tentação

Em 1Pd.1.7, o valor da fé é provado assim como o ouro é provado pelo fogo. Na mesma carta, em 4.12, o fogo surge no meio dos leitores, a fim de pô-los à prova. Em Ap.3.18, o ouro refinado pelo fogo representa a fé cristã verdadeira, que resiste aos testes mais duros. Em Ef.6.16, Paulo diz que o Diabo dispara flechas de fogo contra os crentes. Sem dúvida, também não é nesse sentido que se canta pedindo um incêndio na igreja.

3. Como símbolo de juízo

Sem mais comentários, por que são muitas passagens, apenas mencionamos sua referência: Mt.3.10,11, 7.19; Mc.9.43,47-49; Lc.3.9; Jo.15.6; 1Co.3.13; 2Ts.1.8; 2Pd.3.7,10,12; Ap.17.18, 20.9. Todas essas passagens mostram o fogo como símbolo do julgamento divino, mas, com certeza, quando se canta “incendeia” não é o julgamento divino que se está pedindo.

Entretanto, gostaríamos de fazer uma observação especial sobre Mt.3.10,11, pois nesse versículo 11 o profeta João, o Batista, diz sobre Jesus: “Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo.” Baseados nessa passagem os pentecostais falam que o batismo do Espírito é com fogo, mas basta ver o contexto para concluir que fogo aqui se refere ao juízo. Não há, na Bíblia, nenhuma afirmação de que o batismo do Espírito Santo é com fogo, nem mesmo na passagem de Atos 2.

Não quer tudo isso dizer que não devamos ser crentes fervorosos, pois é justamente o que Paulo ensina em Rm.12.11, mas na mesma passagem ele também ensina que devemos amar uns aos outros, e sem fingimento, que devemos dar preferência aos outros, que devemos ser zelosos, pacientes na tribulação, perseverantes na oração, hospitaleiros, solidários com os humildes, que devemos nos alegrar na  esperança, ajudar os irmãos necessitados, abençoar os que nos perseguem, retribuir o mal com o bem, viver em paz com todos, nunca buscar vingança. Enfim, ser crente fervoroso está incluído num grande pacote que não pode ser adquirido separadamente.

Pr. Sylvio Macri