1Coríntios 10.23-33: UMA TEOLOGIA DA LIBERDADE

Pregado na Igreja Batista Itacuruçá, em 5.11.2000 (manhã).

1. INTRODUÇÃO

Eu já fui roubado. Num dos episódios, nossa casa em Cianorte, no Paraná, foi arrombada enquanto estávamos no culto de oração. A perda para mim foi grande: os ladrões levaram minha calça “jeans”, chamada à época de “calça Lee”, e que eu comprara no Paraguai, porque no Brasil era muito cara.
Minha lembrança da perda é muito significativa. Nos anos 70, a calça “jeans” era um símbolo de liberdade. Um fabricante chegou a dizer que “liberdade era uma calça azul, leve e desbotada” (como preconizava o anúncio da empresa Levi’s).
Todos nós amamos a liberdade. Por isto, a história da humanidade pode ser vista como a história da afirmação e da negação da liberdade. A maioria dos sistemas políticos promete liberdade plena. As mais importantes revoluções dos dois milênios da era cristã (as paradigmáticas revoluções inglesa e francesa do século 18) foram feitas em nome da liberdade e também da igualdade e da fraternidade. Os Estados Unidos da América surgiram como o resultado de uma luta pela liberdade, inexistente na Inglaterra, tanto no plano econômico, como no social e religioso. No Brasil, houve vários movimentos pela liberdade política em relação a Portugal, culminando no acordo conhecido como “Independência do Brasil”.
Uma das liberdades mais ameaçadas no mundo contemporâneo é a de ir e vir. Em Cuba, os cubanos lutam pelo direito de entrar e sair livremente do país. Nos Estados Unidos, os estrangeiros lutam pelo direito de entrar naquela potência, que restringe o acesso ao sabor dos seus interesses mais imediatos. Os palestinos lutam pelo direito de ter um Estado livre. No Brasil, todos somos livres para ir, depois de ter colocado ferrolhos em todas as portas e nas janelas dos automóveis, mas o vir depende da permissão dos bandidos, pelo que temos que lutar
A coroa das liberdades, que é a de o ser humano poder expressar sua opinião, ainda é vista como uma ameaça por centenas de governos nacionais. Pessoas ainda são presas por pensarem diferentemente do ideário oficial, como se devesse haver uma cartilha pela qual as mentes devessem se reger. Em boa parte do mundo não há liberdade de culto. Ainda é proibido pregar-se o Evangelho na Índia, por exemplo. Na Indonésia, por exemplo, os cristãos são massacrados, sob os olhares complacentes das autoridades políticas e policiais. O mesmo Islamismo, que se beneficia da liberdade que lhe dá, para crescer e se tornar uma das principais religiões do mundo em termos quantitativos, cassa o direito de seus seguidores conhecerem o Cristiansimo e optarem por Jesus Cristo.
No Brasil e nos países considerados plenamente democráticos, os meios de comunicação nos colocam diante de um dilema. Eles alcançaram um poder, nunca conhecido, de conquistar as atenções e conduzir as sociedades, ao ponto de se poder dizer que só existe aquilo que esses meios mostram; só interessa o que está exposto em suas páginas e principalmente em suas telas.
Devem ter esses meios o direito de escolher aquilo que vamos pensar e aquilo que vamos ver? Deve ser absoluta a liberdade concedida aos seus donos, já que as populações são indefesas diante do seu poder, exercido sempre em função de interesses ideológicos e principalmente econômicos?

2. A TENSÃO

Apesar dessas ameaças nós vivemos numa sociedade democrática, onde cada pessoa pode crer no que quiser (até mesmo em superstições, como faziam os coríntios ao reverenciar um deus desconhecido), pode cultuar como achar melhor (conquanto as modas litúrgicas nos tentem seduzir), pode votar em quem escolher (embora numa lista sempre muito reduzida), pode se portar segundo a sua consciência (mesmo que seja difícil saber o que é ela e mantê-la). Eu me refiro à consciência da sociedade contemporânea.
Sim, existe uma consciência coletiva, que tem valores próprios. Um deles é que a liberdade é o bem maior do cidadão, com o que os cristãos devemos estar de acordo, e que cada indivíduo é senhor do seu próprio destino, com o que também devemos estar de acordo.
O problema começa quando esta consciência coletiva se torna absoluta, o que nos coloca diante de um duplo paradoxo. A marca essencial da visão secular acerca da liberdade é o relativismo, segundo o qual todas as decisões humanas devem ser respeitadas, porque legítimas. Este relativismo, no entanto, se torna absoluto, ao pretender que todas as consciências individuais aceitem este padrão coletivo, subordinando as suas visões a ele.
Ora, o cristão é cidadão de duas pátrias, habitante do Reino de Deus e do reino dos homens e tributário de valores humanos de orientação divina, pela Palavra de Deus, e de valores humanos humanistas, às vezes conflitantes com os de instrução divina.
Os valores humanos humanistas afirmam que todas as coisas permitidas pelas leis da sociedade são lícitas, mas os valores humanos divinos lembram que mesmo as coisas legais não são lícitas para um cristão. A lista poderia ser enorme, mas lembremos apenas que as leis brasileiras permitem, sob a supervisão do governo federal, os mais variados tipos de jogo (discriminando apenas os explorados por setores considerados marginais, como o jogo do bicho); no entanto, um cristão não deve jogar, por mais sedutora que seja a propaganda bancada pelo próprio Estado. Os vícios do fumo e do álcool são social e legalmente aceitos, mas nem por isto devem ser praticados por um cristão.
De outro lado, é longa a lista de determinações injustas, que somos obrigados a respeitar, como o pagamento de impostos com destinação imoral, como a CPMF, que nasceu para financiar a saúde e mudou de nome e destino e continua permanentemente a surrupiar parte de nossos recursos. Quando fazemos nossa declaração de Imposto de Renda, somos obrigados a abater com a educação dos nossos filhos um valor que corresponde a despesas mensais, nunca a encargos anuais.

3. O DRAMA DOS CORÍNTIOS

Ao tempo do apóstolo Paulo, todos os cidadãos eram obrigados por lei a reverenciar o imperador como um deus; embora lícita, esta reverência não convinha aos cristãos. Em Corinto, o centro da vida eram os templos pagãos. O mais importante deles ficam na parte mais elevada da cidade e era dedicada a Afrodite. Seus mil prostitutos e prostitutas prestavam seus serviços em honra de Vênus, tida como a deusa do amor. Mais que centro de adoração, o templo era o lugar mais interessante da cidade. Ao seu redor, ao ar-livre, ficavam os melhores restaurantes. Neles se tocava e se cantava a melhor música, comia-se a melhor comida e se bebia o melhor vinho. Os cristãos, que tinham posses, eram tentados a freqüentar esses lugares em busca dos prazeres da vida. Paulo adverte que a participação neste tipo de vida era lícito, mesmo porque estabelecido na agenda cultural, não convinha aos cristãos, como ele o explica nos versículos 20 e 21, com todas as letras: as coisas sacrificadas nestes templos são sacrificadas aos demônios e um cristão não deve se associar aos demônios. Vocês não podem beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podem ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
Os cristãos podiam até ir a estes centros culturais e sociais, mas sabiam que estavam fora dos padrões divinos para seus filhos.
Havia, no entanto, um ponto que gerava dúvida entre os cristãos. A produção e a distribuição dos alimentos, especialmente da carne, seguiam um roteiro comum: iam direto para os templos, onde eram sacrificados aos ídolos (“demônios”, como diz o apóstolo) e utilizados para fins litúrgicos, sendo consumidos pela elite religiosa. Depois, o excedente (que era obviamente a maior parte da produção) era encaminhado para venda nos mercados (particularmente os açougues). Só então a população, a cristã inclusive, tinha acesso a esses produtos.
O cristão podia comprá-los, prepará-los e consumi-los? A resposta de Paulo é “sim”: comam de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntarem por motivo de consciência (v. 25). E se um cristão fosse almoçar ou jantar na casa de um pagão e este pusesse à mesa esses produtos, o cristão devia comê-los? “Claro”, diz o apóstolo (v. 27). Ele mesmo as comia (como o indica o versículo 30, em que lembra que foi acusado de ter este tipo de comportamento). Embora tenham passado por ritos de consagração aos ídolos, esses alimentos continuam com as mesmas propriedades; eram alimentos e deviam ser comidos. Além disso, seria muito difícil aos cristãos obter carne com outro tipo de itinerário. Igualmente, seria praticamente impossível saber se um determinado produto passou ou não pelo rito de consagração idolátrica. Os cristãos acabariam vítimas de uma paranóia (como a nossa hoje, para saber se o produto tem ou não agrotóxico, é ou não transgênico, é ou não asseado).
O critério devia ser alterado apenas numa condição: se, antes da compra ou antes da refeição, alguma pessoa voluntariamente informasse a origem dos produtos, o cristão faria bem se se abstivesse, não por causa dos alimentos, que continuavam alimentos, mas por causa do escândalo que a prática poderia originar. Desenvolvendo diretamente a recomendação de Jesus (apresentada em Lucas 17.1 — É inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual eles vêm!), Paulo coloca um princípio essencial: Meus irmãos, não se tornem causa de tropeço nem para os judeus, nem para os gregos, nem para [os membros d]a igreja de Deus (v. 32). Os benefícios pessoais, ensina Paulo, não compensam os custos nas vidas dos outros, com prejuízos às vezes irreparáveis.

Os problemas de Corinto não são os mesmos que os nossos. Os princípios propostos por Paulo precisam ser postos em prática por nós, porque preciosos e profundos.
Temos problemas que estes princípios podem nos orientar. Eis alguns deles:
. Pode um cristão comer acarajé, preparado por senhoras de branco e pretensamente dedicados aos orixás? Uma cristã pode ter uma barraca de produtos da culinária bahiana?
. Deve um cristão pagar uma conta numa casa lotérica, onde pode ser confundido com um apostador? Ou o problema é de quem o viu?
. Até que ponto deve ir um cristão em sua resistência à corrupção, já incorporada à cultura de nossa época e vista como normal? Não estaremos sendo rígidos demais nesta matéria?
. Precisa o cristão de afastar dos pagãos, para marcar sua diferença? Existem ambientes inconvenientes para o cristão ou será tudo depende de sua atitude neles? Mas que apenas convivido com os pagãos, não temos aceito como nossos os seus valores?
. Deve um cristão propor a censura prévia aos meios de comunicação eletrônicos (especialmente a televisão), como forma de preservar valores cristãos e proteger as crianças?
. Deve um cristão aceitar como legítimas todos as decisões legais? Se, por exemplo, o Congresso aprovar uma lei que torne amplamente legal o aborto, teremos que mudar nossa opinião contrária a ele?
Deve o cristão se abster de alguma prática que considera correta só porque seu amigo (não crente) ou seu irmão em Cristo considera esta pratica como inconveniente?

4. SÚMULA DE PRINCÍPIOS

A súmula de princípios que o apóstolo Paulos apresenta no capitulo 10 nos ajuda na resposta a estas perguntas.

1. Nós fomos retirados do reino das trevas e habitamos o território da luz, tendo sido conduzidos pela nuvem de Deus, sobrevivido a todo tipo de tempestade e batizados pelo Espírito Santo. Portanto, o único manjar que nos deve dar prazer é o manjar de Deus. A fonte de nosso alimento é Cristo (vv. 1-4). Não faz sentido voltar a nos alimentar dos salgados das trevas, por mais doces que pareçam.

2. Não podemos colocar nenhum desejo acima da glória de Deus. Se o fizermos, estaremos sendo idólatras, ao trocar nossos prazeres em Deus por esses desejos. Qualquer coisa que você faça e que o afasta dEle é idolatria. Assim, atitude idolátrica é toda aquela ação que toma o lugar do seu amor a Cristo. Pode ser umA telenovela ou um jogo de futebol. Pode ser uma namorada ou mesmo um parente obsessivamente querido. No passado, a falta de controle em relação aos seus desejos levou os israelitas a quererem atravessar de volta o deserto e o mar, de onde foram tiradas e sobre o qual trafegaram miraculosamente (vv. 7-14).

3. Deus nos fez livres e temos o dever de conservar a nossa liberdade. Esta liberdade não é um salvo-conduto para uma vida imoral, como a sociedade em que vivemos. A preservação desta liberdade implica em que devemos olhar para a vida de modo responsavelmente crítico. Ninguém pode pensar por nós (v. 15). Todas as nossas ações devem considerar as suas conseqüências.

4. A propósito, devemos continuar campeões da liberdade, que é sempre uma conquista. Na Inglaterra do século 17, um grupo se levantou a favor da liberdade de pensamento e de culto, primeiramente para si mesmos, que discordavam da religião oficial de então, e depois para todos os outros crentes. Esta luta os tornou batistas. Devemos lutar pela liberdade religiosa, mesmo para credos contrários ao nosso e até mesmo para o ateísmo. Como a concebemos, a liberdade foi gratuitamente concedida a nós por Deus, que nos criou livres e para a liberdade. O pecado fez com que ela se tornasse uma conquista. Por isto, por exemplo, devemos nos opor a todo tipo de censura prévia, que volta e meia é sugerida como estratégia para “moralizar” a televisão brasileira. Nossa escolha deve ser outra: a censura posterior, com processos contra os programas que atentarem contra a liberdade e contra os valores da dignidade humana, e a educação dos produtores e dos espectadores em relação aos meios. Se você acha imoral uma novela, não a veja mais. Se você acha que um programa atentou contra a dignidade da pessoa, não o veja mais. O problema é que assim como os produtores não são responsáveis, nós também não somos. Preferimos o fácil e perigoso caminho de transferir para os outros a nossa responsabilidade, que significa abrir mão de nossa liberdade. Devemos, pois, nos educar para a liberdade, pois a educação para os meios é o melhor meio de educar esses meios.

5. Devemos viver segundo os valores de Deus, sem concessões aos padrões do nosso tempo, por mais “lógicos” que pareçam. Deus não quer que os que bebemos do cálice da graça de Deus venhamos a misturar o seu líquido com a graxa que unta os motores do mundo (vv. 16-22). Isto não quer dizer fuga da vida. Separarmo-nos para Cristo não significa separarmo-nos das pessoas para quem Cristo também veio. Devemos evitar o templo dos pagãos, mas não os pagãos que vão la, desde que não os deixemos impor sobre nós seus valores.

6. Há costumes e hábitos que a sociedade e o governo consideram lícitos, mas que não devem integrar as práticas dos cristãos. Sua disseminação e sua elevação à categoria de normais não autorizam a sua adoção pelos cristãos. Todos os nossos atos devem contribuir para a glória de Deus, tanto na nossa vida pessoal quanto na vida da sociedade em que vivemos. Todos os nossos atos devem contribuir para a construção de uma igreja mais envolvida com o Reino de Deus e com uma sociedade mais justa (v. 23-24,31-33).

7. Voluntariamente podemos abrir mão de nossa liberdade, desde que para a edificação dos membros da igreja. O critério do amor ao outro pode nos levar a uma restrição temporária de nossa liberdade, no campo daquelas ações que, embora não ofendendo a Deus, podem ofender a consciência do nosso irmão. O princípio permanece: devemos fazer aquilo que, antes de fazer, podemos dar graças a Deus por estar fazendo. Podemos dar graças a Deus por estar fazendo algo que levou nosso irmão ao pecado? A consciência de nosso irmão, mesmo que estreita, deve ser considerada. A nossa consciência também. O problema se manifesta quando nossa consciência se torna tão elástica, que ela passa a abarcar todos os hábitos. Quanto mais larga for nossa consciência, menos problemas de consciência teremos… e mais usaremos a nossa liberdade, não para a santidade mas para o pecado…

5. CONCLUSÃO

O cristão valoriza a liberdade, porque é a liberdade que nos faz imagem-semelhança de Deus. O valor da liberdade é tal que pode se tornar um ídolo, posto acima dAquele que nos fez livres.
Deus ama a liberdade, pelo que não só a criou como a respeita, mesmo contra a sua vontade. Este é, por exemplo, o sentido da informação do Apocalipse (Ap 3.20), segundo a qual Jesus está à porta das vidas das pessoas, batendo e esperando ser convidado para entrar e transformá-las.
Depois de o convidarmos para dirigir nossas vidas, procuremos fazer aquilo que contribua para a sua glória e pelo qual podemos dar antecipadamente graças. Este é um princípio que deve reger nossas ações.
Na dúvida, se este princípio não pode ser posto em pratica, não façamos. Não vamos morrer por isto. Afinal, nosso comportamento não deve servir de pedra para que nós mesmos ou nosso próximo (crente ou não) venha tropeçar e cair.

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