Números 27.12-22: CREIO NO DEUS QUE GUARDA REBANHOS (Felipe Fanuel)

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CREIO NO DEUS QUE GUARDA REBANHOS

(Números 27,12-22)

 

É tão bonito ver como os nossos textos sagrados são repletos de simbolismo. Há sempre coisas muito interessantes. Hoje chama a minha atenção aqui a presença viva de uma gente simples.

Uma gente que não foi apagada da história. Uma gente que tem sua história vinculada a seu Deus.

Só que me parece que essa gente não tem muita coisa de especial. Não tem muito pedigree. Talvez se trate de meros operários do dia-a-dia. Aquele tipo de gente que faz o trabalho que deve ser feito, sem muitos holofotes. Mas que é um tipo de gente sem o qual nenhuma sociedade viveria. É o tipo de gente trabalhadora.

Ouço a voz dessa gente aqui no texto.

Estou falando daquele homem ou daquela mulher que cuidava do rebanho. Daquele ou daquela que conduzia seus animais para o pasto e os vigiava. Falo do pastor, da pastora.

Falo de quem liderava ovelhas. É sua voz que quero ouvir aqui. Porque quero acreditar que Deus se parece com alguém assim. Alguém que cuida de ovelhas.

Acredito em um Deus que tem a cara da gente. Daquela gente que não é contada nas grandes decisões. Daquela gente que, nos dias de hoje, podemos considerar do tipo Pinduca — “todos os dias, toda manhã, sorriso aberto e roupa nova”[1].

Não estou muito à vontade com um Deus distante de gente que cuida de pasto. De gente que fica de olho para que nada aconteça com o seu sagrado rebanho.

 

“… Assim a comunidade do Senhor não será como ovelhas sem pastor.” (v. 17b)

 

Você sabia que a mesma palavra usada para “pastor”[2] aqui tem também alguns outros significados interessantes?

Então, veja só. A extensão de sentido desta palavra nos aproxima de algumas outras palavrinhas mágicas, como “amigo” e “companheiro”[3]. É mais interessante ainda ver que, em alguns momentos, estas palavras estão associadas com o feminino. Estão relacionadas à mulher!

Por falar nisso, eu me lembro da teóloga Sallie McFague[4]. Corajosamente, ela sugere que, em uma relação íntima entre divindade e seres humanos, faz mais sentido falar de Deus como “mãe”, “amante” e “amigo”, do que insistir em manter modelos tradicionais de Deus como “pai” ou “senhor”.

Estamos falando de metáforas, sentidos figurados, assim como as parábolas contadas por Jesus. Metáforas, através das quais podemos falar do mundo como corpo de Deus. Afinal, estamos falamos de um Deus “que dispõe do sopro de toda criatura”, do “Deus dos espíritos que animam toda a carne”[5], como bem diz o texto que lemos. (cf. v. 16a)

Em outras palavras, é impossível falar de um Deus dissociado da humanidade, de um Deus que se esqueceu da gente como se fosse um demiurgo que está lá bem distante, enquanto “aqui embaixo as leis são diferentes”[6].

Não. Tenho fé em um Deus que é do povo, com a cara da gente. Com a nossa cara. Com a cara de um Zé Ninguém, do andar daqui de baixo. Com a cara de um amigo-amante-mãe. Com a cara de um companheiro. Com a cara de um mero pastor/a que está preocupado com o pasto para alimentar seus animais e com a segurança deles.

Com a confiança neste Deus com a cara do mundo, podemos sempre ter esperança de que jamais estaremos sozinhos, como “ovelhas sem pastor”, como cães sem rumo.

É como se nossa a jornada passasse a ter sentido com esta sensação de confiança. Tenho a impressão de que é isso que se pode observar aqui no texto. Moisés se vai. Ele morre. Mas o sonho não pode acabar. Haverá sempre a esperança de um novo líder, que representa esperança. De alguém que “seja posto/a à frente da comunidade, que saia e os faça entrar”. (v. 17a)

Para mim, isso tudo quer dizer que a esperança não depende de nós. A esperança é sempre divina. Aliás, se depender de nós, “a vida é uma grande ilusão”[7], como bem nos alerta uma linda canção. Como ovelhas, estamos destinados a depender de um divino pastor, que nos “guie mansamente a águas tranquilas”. (Sl 23,2a)

Mas precisamos lembrar que quem cuida de ovelhas vê a vida diferentemente. Para entender como é o seu coração, quero aprender com o poeta Fernando Pessoa, que pintou a alma do pastor em seu poema “O guardador de rebanhos”, do qual quero citar os seis primeiros versos:

 

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.[8]

 

Creio neste Deus-“guardador de rebanhos”. Neste Deus que segura o seu cajado como um poeta segura a pena para escrever seus versos. Neste Deus que olha para suas ovelhas como o poeta olha para as suas ideias. É neste Deus-Poeta-“guardador de rebanhos” que creio. E quero não ser mais que apenas uma linha de seu grande poema chamado Vida.

Deste poema todos nós fazemos parte. Pois nenhum de nós deixará de ter sua história contada nos sagrados versos divinos. Nossa vida é como um verso guardado por um poeta. Um verso que começou a ser escrito ontem, ainda está sendo escrito hoje, e continuará a ser escrito amanhã. Amém.



[1] Trecho da canção “Roupa Nova”, de Milton Nascimento.

[2] h[,ro

[3] Cf. Bible Works.

[4] Modelos de Deus: teologia para uma era ecológica e nuclear. Paulus, 1996.

[5] Respectivamente, Bíblia Tradução Ecumênica e Bíblia de Jerusalém.

[6] Trecho da canção “Eu sou um bobo, Eu sou um Zé Ninguém”.

[7] Trecho da canção “Sei lá (A Vida Tem Sempre Razão)”, de Toquinho e Vinicius de Moraes.

[8] O guardador de rebanhos e outros poemas. Cultrix, 1991.

FELIPE FANUEL