PORQUE PRECISAMOS DA GRAÇA DE DEUS
Pregada na Igreja Batista Itacuruçá, em 17 e 24.2.2002
Em janeiro de 2002, morreu João Filson Soren, aos 93 anos de idade. Pastor da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro por cinco décadas (e este risco os irmãos não correm comigo…), serviu como capelão na Segunda Guerra Mundial. No exercício de sua perigosa missão, viu granadas explodirem corpos de companheiros ao seu lado. Era sua tarefa, entre outras, preparar os feridos para a morte, num tempo e numa circunstância em que os recursos médicos eram limitados. Por isto, ele até hoje é lembrado como o grande capelão dos militares brasileiros.
Ele também é lembrado porque durante todo o seu pastorado, pregou a cada primeiro domingo do ano um sermão baseado num mesmo versículo bíblico: “dize aos filhos de Israel que marchem” (Êxodo 14.25).
Estive no seu funeral, quando Fausto de Aguiar Vasconcelos, atual pastor da Primeira Igreja Batista do Rio, lembrou que um dos motos de Soren era viver “no compasso da graça”. Foi, para mim, a mais completa explicação sobre uma vida, frase que deveria biografar todo cristão, que pode, então, ser definido como aquele que vive no compasso da graça.
Mas o que é graça? Precisamos ler Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses (e de resto, todo o Novo Testamento, onde ela aparece 132 vezes), para defini-la, mas não é o que faremos.
Quando eu era estudante de teologia, nosso prazer era discutir todos os assuntos, de preferência aqueles que mostrassem que éramos mais sábios que os nossos professores. Um deles, depois de nos ouvir, sempre saía com uma condição prévia, que complicava nossas vidas:
— Precisamos definir os termos (isto é, as palavras).
Esta é uma regra para qualquer exposição. Precisamos definir as palavras que usamos. Precisamos dar o significado que damos aos termos, para que a exposição prossiga.
No entanto, à palavra “graça” esta regra não se aplica. Então, não vamos defini-la: não tem graça defini-la, como não tem graça definir amor, que toda criança sabe o que é desde bebê, embora ninguém lhe tenha definido. Os cristãos sabemos o que é graça, porque ela nos tem envolvido.
Assim, comecemos por afirmar que nós precisamos da graça de Deus.
1. PRECISAMOS DA GRAÇA DE DEUS PARA SERMOS JUSTIFICADOS
A biografia de Noé contém uma frase curta e definidora: Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor (Gênesis 6.8). A Bíblia não explica porque os olhos do Senhor viram com graça o pai de Sem, Cão e Jafé.
Gosto desta expressão, precisamente porque não a entendo, mas mais exatamente porque ela descreve todos os cristãos cujas vidas são centradas em Cristo (porque não é cristão quem tem a vida centrada em si mesmo…), de modo que poderíamos reescrevê-la: nós, porém, achamos graça aos olhos do Senhor.
Noé tinha pecado, mas achou graça aos olhos do Senhor. Nós estávamos mortos em nossos delitos e pecados, mas Ele, por sua graça, nos perdoou todos os pecados (Colossenses 2.13), especialmente o pecado original (isto é, a culpa original: o pecado de achar que podemos nos justificar (redimir, salvar) a nós mesmos.
Especialmente nos últimos 100 anos, temos sido entupidos com o ideário de que não existe culpa, que toda a culpa é uma produção da cultura. No entanto, a Bíblia é muito precisa quando afirma que todos somos culpados pelos nossos pecados. O pecado entrou no mundo por Adão, mas ninguém é condenado pelo pecado de Adão, mas pelo seu próprio pecado.
O ideal de uma sociedade melhor, de um mundo justo, por uma produção humana, seja pela educação, seja pela ciência, seja pela política. O que temos visto é um mundo injusto e violento, no plano pessoal e no plano coletivo. Merecemos assim a justiça, a justiça de Deus, isto é, o castigo por nossa culpa, porque Deus é justo.
Há pessoas que, teoricamente pelo menos, desafiam esta justiça, achando que Deus pode julgá-las, porque passarão pelo tribunal e serão absolvidos. A história e a Bíblia mostram que não uma pessoa justa sequer diante de Deus (Romanos 3.10). Há justos aos próprios olhos, mas não diante dos olhos de Deus. Na verdade, nenhum de nós consegue viver apenas com a justiça de Deus.
Tranqüilizarmos em função desta realidade é o ministério literário e teológico do apóstolo Paulo. Em várias de suas epístolas, ele insiste que, pelo sangue de Jesus Cristo, o Pai nos deu vida, juntamente com Cristo (Efésios 2.5), segundo as riquezas da sua graça (Efésios 1.7).
Esta verdade fica ainda mais clara em Gálatas 3.11-14.
É evidente que pela lei ninguém é justificado diante de Deus,
porque: O justo viverá da fé; ora, a lei não é da fé,
mas: O que fizer estas coisas, por elas viverá.
Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós;
porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro;
para que aos gentios viesse a bênção de Abraão em Jesus Cristo,
a fim de que nós recebêssemos pela fé a promessa do Espírito.
(Gálatas 3.11-14)
Paulo, portanto, mostra que é evidente que pela lei ninguém é justificado diante de Deus, porque “o justo viverá da fé” (Gálatas 3.11). Uma definição para “lei” é “esforço humano”. Não há nenhum prêmio para quem cumpre a lei, mas há o castigo para quem não a cumpre e é flagrado. Se alguém declara direitinho o Imposto de Renda e recolhe o que deve, não recebe uma carta de “parabéns”. Mas se não declara ou não recolhe… Se um motorista anda no limite de velocidade, um guarda não o pára para cumprimentá-lo, mas se o radar registra excesso… Se um consumidor pega algo no supermercado e paga, não recebe um telegrama do presidente da companhia ou um aperto de mão do segurança, mas não se não paga…
É isto que a Bíblia está dizendo: ninguém é justificado, isto é, considerado justo, por cumprir a lei, mas todos que não a cumprem são condenados. A lei, na verdade, é o código que nos condena. Estávamos, pois, condenados, até que a graça de Deus entrou em ação: Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós (Gálatas 3.13)
Quando Ele se deixou pendurar no madeiro (isto é, a cruz), Ele tomou sobre si a nossa maldição. Ao fazê-lo, possibilitou que todos quantos aceitamos este sacrifício em nosso lugar recebamos o selo do Espírito Santo sobre as suas vidas (Gálatas 3.14), selo que nos separa para uma vida liberta. Assim, não somos salvos porque o merecemos cumprindo as regras da lei, porque ela só nos detonam (condenam). Somos salvos pela fé (Gálatas 3.11).
Esta mensagem está resumida de forma magistral em Efésios 2.8-10.
Pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus;
não vem das obras, para que ninguém se glorie.
Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para boas obras,
as quais Deus antes preparou para que andássemos nelas.
(Efésios 2.8-10)
A fé em Jesus Cristo como Salvador nos habilita a receber a graça salvadora de Deus. A graça divina obviamente não é auto-produzida pelo homem. Até mesmo a fé salvadora não é uma produção humana, mas um dom de Deus. Este dom (o dom da fé salvadora) é dado a todo ser humano, mas é ativada pela vontade do homem. Querer ter fé, que já foi dada a cada um de nós, é a única ação humana; todas as outras foram tomadas por Deus.
Todos fomos criados para a salvação. Todos fomos criados para viver na graça, graça preparada por Deus para nos ser concedida por meio da fé.
A graça, portanto, nos torna todos iguais. Não há mérito algum em nós. Logo, não pode haver vaidade (para que ninguém se glorie — Efeios 2.9b) alguma em nós. Na lei há mérito. Na graça, não há. Por que, então, somos tão vaidosos, por vezes? Vaidosos por sermos salvos, vaidosos por termos mais graça que os outros, vaidosos por termos mais do Espírito Santo conosco? Não faz sentido.
Porque somos obras de Deus criadas para boas ações, porque somos criações de Deus feitas para criar, precisamos estar sempre lembrados que a sua graça providenciou a nossa salvação, que é um presente de Deus preparado para os que fé O aceitam com Senhor, a Seu Filho como Salvador e a Seu Espírito Santo como Sustentador.
Quem nos salva? A graça de Deus.
2. PRECISAMOS DA GRAÇA DE DEUS PARA APROVARMOS AS COISAS EXCELENTES DA VIDA
E isto peço em oração: que o vosso amor aumente mais e mais
no pleno conhecimento e em todo o discernimento,
para que aproveis as coisas excelentes,
a fim de que sejais sinceros e sem ofensa até o dia de Cristo;
cheios do fruto de justiça, que vem por meio de Jesus Cristo,
para glória e louvor de Deus.
(Filipenses 1.9-11)
A vida cristã consiste de três práticas essenciais (conforme Filipenses 1.10-11): sinceridade (sejais sinceros), santidade crescente (sem ofensa até o dia de Cristo) e coerência (cheios de frutos de justiça). Essas práticas nos levam a aprovar as coisas excelentes da vida.
2.1. A prática da sinceridade
A sinceridade é um atributo da comunicação. No teatro grego, sinceridade era a máscara colocada pelo ator para representar papéis diferentes. Sincero é quem tem um rosto parecido com o seu interior, que não tem máscaras, que não representa papéis para os outros.
O sincero não vive dando tapinhas nas costas e lançando venenos pelas costas, práticas que condenamos nos políticos profissionais e reproduzimos em nossas igrejas. Antes, somos chamados a uma comunicação sincera, a uma comunicação sem máscara.
Quem nos capacita para uma vida sincera? A graça de Deus.
2.2. A busca da santidade
Uma vida assim requer santidade crescente. A meta é elevada: nossa vida deve ser sem ofensa, isto é, sem culpa, sem condenação, sem tequel. Lembram-se desta palavra? O rei Belsazar (Daniel 5), da Babilônia, promovia uma grande festa para seus milhares de convidados. Enquanto celebravam seus deuses, feitos todos de ouro, de prata, bronze, ferro, de madeira e de pedra (verso 4), apareceram uns dedos de mão de homem (verso 5), que escreviam palavras ininteligíveis. Uma delas era tequel (verso 25). Chamado para interpretar, Daniel deu o sentido: Pesado foste na balança e foste achado em falta (verso 27). Ser sem ofensa é não ser achado em falta, em falta de sinceridade, por exemplo.
Podemos pensar na santidade como tendo duas dimensões: uma dimensão original e uma dimensão atual.
A santidade original é o selo colocado em nós pelo Espírito Santo quando reconhecemos o nosso pecado, arrependemo-nos dele e aceitamos o pagamento gracioso da nossa culpa por Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor. Este selo nos identifica como salvos e nos qualifica como santos. É por causa deste selo que somos chamados de “perfeitos” (Filipenses 3.15).
Já a santidade atual é o nosso esforço constante em desenvolver atitudes próprias de quem tem o selo do Espírito Santo. Quando nos contentamos apenas com o selo, perdemos a alegria da salvação, permitimos que o selo vá se esmaecendo. É por causa de nossa incapacidade de permanecer na perfeição para a qual fomos chamados, somos considerados “imperfeitos” (Filipenses 3.13).
Não há contradição nesta realidade, mas tensão. A constância de Cristo (2Tessalonicenses 3.5) se torna operativa em nós quando nos lembramos que não alcançamos ainda a santidade, na sua dimensão atual, mas, assim mesmo, vamos prosseguindo, para alcançar a perfeição para a qual fomos alcançados por Jesus (Filipenses 3.12-13)..
Rumamos para a perfeição, quando não ficamos nos vangloriando no que conquistamos ou quando nos deprimimos no que fracassamos, mas nos livramos desses fardos perigosos (Filipenses 3.13). Quando curtimos o louro de alguma conquista, mesmo que espiritual, se torna um lodo que faz com que nossos navios não avancem nos oceanos da vida. Enchemo-nos de nós mesmos, e não do Espírito, que nos capacitou para aquela vitória. Se há mérito é dEle. Um crente “convencido” é um crente perto do abismo.
Na vida cristã, podemos parodiar o futebol, quando um jogador, após uma vitória no campeonato, antes da final, proclama: “ainda não conquistamos nada”. Nossa vocação é receber o prêmio no pódio celestial das mãos de Cristo (Filipenses 3.14), não das mãos de um pastor ou de um generoso irmão em Cristo ou de nós mesmos.
Sem o auto-engano da glória própria ou da baixa estima, devemos avaliar o que já alcançamos e prosseguir na crescente santidade (Filipenses 3.16).
Quem nos põe no caminho da vida santa? A graça de Deus.
2.3. A dignidade do cristão
A sinceridade e a santidade não são representações, mas expressões presentes em vidas plenas do Espírito Santo. Sinceridade e santidade são os frutos do arrependimento de que falam Jesus Cristo (Mateus 3.8) e Paulo (Atos 26.20; 2Coríntios 9.8). Se somos santos, damos frutos bons; se não somos, damos maus frutos (Mateus 7.18). É por isto que Jesus diz que somos conhecidos pelos frutos que damos (Mateus 7.16). Como tem sido os nossos frutos? Dá para vender, dá para exportar, ou temos que escondê-los nas cestas secretas guardadas debaixo de nossas camas ou nos quartinhos escuros de nossas vidas, onde vão apodrecer?
Sejamos coerentes, sejamos cheios do(s) fruto(s) da justiça, isto é, vivamos de modo coerente com a justificação que, pela graça de Deus, recebemos. Temos sido pesados na balança e temos sido achados em falta. Chega de representação. Vivamos aquilo em que acreditamos. Vivamos aquilo que pregamos.
Nós somos constantemente convidados a viver de maneira digna do Senhor (principalmente Romano 12.17; Efésios 4.1; Filipenses 1.27; 1Tessalonicenses 12.2; 2Tessalonicenses 1.5).
Segundo aprendemos ainda com o apóstolo Paulo, devemos pedir a Deus que nos encha do pleno conhecimento da Sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento espiritual, para que possamos andar de maneira digna do Senhor, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus, corroborados com toda a fortaleza, segundo o poder da sua glória (Colossenses 1.9b-11a).
Precisamos da graça para andar de maneira digna diante do Senhor
Quem nos capacita para tal? A mesma graça que nos alcançou, desde que permitamos que ela opere (atue, funcione) em nós.
Por isto, a oração de Paulo deve ser a nossa: “oh Deus, aumente o nosso amor mais e mais, ao mesmo tempo em que nos faças crescer no conhecimento e no discernimento das coisas” (Filipenses 1.9).
É sincero para com o outro quem ama o outro. É santo diante de Deus quem ama a Deus. Quem só ama a si mesmo não ama e não tem porque ser sincero e santo. Amar, portanto, deve ser nossa busca suprema, por ser o caminho sobremodo excelente da vida (1Coríntios 12.31).
Todos certamente queremos crescer na capacidade de amar a Deus e de amar ao nosso próximo e de amar a nós mesmos. Quem nos capacitará? A graça de Deus. O pecado nos torna egoístas, interessados tão somente em nós mesmos; a graça nos torna altruístas, também interessados no bem-estar do outro e na adoração a Deus.
Quando nos relacionamos com pessoas e situações, precisamos do amor, se não ficaremos cheios de nós mesmos, e não haverá relacionamento verdadeiro. Relacionamento sem amor é produção vazia, não passa de aparência de relacionamento. Quem enche os nossos relacionamentos de amor? A graça de Deus.
2.4. A fruição das coisas excelentes
Ser um cristão sincero e santo, portanto digno de Deus, é aprovar as coisas excelentes da vida (Filipenses 1.10).
Aprovar tem a ver com conhecer, por experiência própria, e discernir a partir deste conhecimento. Aprovar, no pensamento de Paulo, significa distinguir aquilo que é falso daquilo que é verdadeiro, não apenas para julgar, mas para experimentar o que é verdadeiro. Numa palavra, aprovar significa ter prazer naquilo que é essencial, não naquilo que é superficial.
1. Quanto ao conhecimento, o Primeiro Testamento põe o homem no seu lugar, quando o compara um boi, que conhece o seu dono, e a um jumento, que sabe o caminho da sua manjedoura, enquanto ele mesmo não escuta a voz do seu Senhor (Isaías 1.3).
Os cristãos, e não há nisto nenhuma glória, temos o conhecimento da salvação (Lucas 1.77) por meio de Jesus Cristo. Os cristãos, portanto, devem acordar para a justiça e não viver pecando, porque já têm conhecimento de Deus (1Coríntios 15.34).
Por esta razão, o apóstolo Paulo dá este conselho radical: A fé que tens, guarda-a contigo mesmo diante de Deus. Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que aprova (Romanos 14.22). Como é triste ver pessoas que conhecem a Palavra de Deus, até já experimentaram a Sua graça, viverem contrariamente àquilo que aprovam. Essas pessoas concordam que devem viver de modo sincero, santo e digno, mas preferem a falsidade, a impiedade e o afastamento do Espírito Santo, seja porque não conseguem, seja porque não querem. Não são bem-aventuradas, achando estar fruindo as coisas excelentes da vida, quando, na verdade, longe da graça. Essas pessoas aprovam as coisas excelentes, mas provam das piores
2. Quanto ao discernimento, ele tem a ver com esta distinção essencial, a de separar o que é falso do que é verdadeiro.
O falso e o verdadeiro estão juntos. Na água que dá vida às bromélias estão os mosquitos, inclusive o que transmite a dengue. Um dia desses me mostraram um mosquito num microscópio: eu não soube dizer se era o aedes Egypt. Eu não sei discernir essas coisas. Para ter esta capacidade, eu precisaria estudar.
Pelo estudo e pela observação, olhamos para o mundo em que vivemos e criticamos o seu estilo de vida, comparando-o com o projeto de Deus, como expresso na Sua Palavra. Cidadãos dos céus, somos cidadãos daqui. Não podemos aceitar como algo inevitável a exclusão social e econômica da maioria da população mundial; isto não é da vontade de Deus, que, para cumpri-la, convida-nos a ser seus parceiros para derrubar as potestades e as fortalezas, chamem-se elas livre-mercado ou globalização. Não podemos aceitar como inevitável nenhuma epidemia urbana (e aqui me refiro ao flagelo da dengue) que um mínimo de planejamento, pesquisa e honestidade poderia evitar; isto não é da vontade Deus, que requer dos Seus filhos ações corajosas no combate aos micróbios da democracia.
Além do discernimento que vem pelo conhecimento, há aquele que é espiritual, porque vem da graça de Deus. Ela nos dá uma aguda consciência crítica, para reter, como válido, aquilo que é realmente bom. Por isto, o texto fala em aprovar, em testar, em experimentar (cf. Romanos 2.18).
Na igreja local, há coisas ruins e coisas boas. Podemos até dizer que é alto o preço que temos que pagar para fruir as boas. Entre os evangélicos, há coisas ruins e coisas boas. Temos que discernir as excelentes e ficar com elas, buscando praticá-las.
Numa igreja evangélica, há pessoas dignas e pessoas indignas. Há pessoas que convidaram Cristo para converter o seu coração, mas não o seu caráter, a sua língua, o seu bolso, o seu corpo. Há muitos que, sem discernimento espiritual, levados apenas por juízos carnais, e às vezes para encobrir sua própria escuridão, vivem de julgar os outros.
Por isto, muitas vezes somos julgados, pelas costas evidentemente, por pessoas cujas vidas são sepulcros pintados de branco para disfarçar suas entranhas, os quais, por fora, realmente parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos e de toda imundícia (Mateus 23.27). Mesmo assim, estes julgamentos, que discernimos como verdadeiros emissários de Satanás para nos derrubar, conseguem nos ferir. Aqui então precisamos da graça de Deus, para que ela nos capacite a não permitir que o julgamento que vem deste tipo de falsos cristãos deixe cicatrizes em nós e venha a embaçar o nosso compromisso com o Senhor. Afinal, só o bem a nós feito deve ser por nós retido (1Tessalonicenses 5.21).
3. O cristão é capacitado para discernir entre coisas boas e ruins, mas principalmente as melhores coisas entre as boas coisas da vida, sabendo que as melhores são da vontade de Deus.
Na vida, queremos experimentar as boas coisas. A graça nos possibilita esta fruição. No entanto, estas boas coisas não são excelentes, isto é, não são essenciais. A graça nos ajuda a ter o senso daquilo que é realmente fundamental, levando-nos a abrir mão (sofrer perda, refugar) tranqüilamente daquelas coisas que nos afastam das excelentes coisas de Cristo (Filipenses 3.8).
Assim, aprova as coisas excelentes aquele que está insatisfeito com as coisas de hoje, mesmo que boas, porque procura as melhores. O cristão quer uma vida cristã com mais qualidade, uma vida que se supera.
Coisa excelente é conhecer mais que conhecemos. Coisa excelente é discernir mais que discernimos. Coisa excelente é buscar sempre a sinceridade. Coisa excelente é ter a cada dia mais prazer na santidade. Coisa excelente é nos excedermos em amar. Estes são os frutos espirituais de quem aprova as coisas excelentes (cf. Gálatas 5.22,23).
Quem nos capacita para esta qualificação? A graça de Deus.
3. PRECISAMOS DA GRAÇA DE DEUS PARA NÃO DESERTARMOS DELE
O Novo Testamento nos recomenda a permanecer firmes na graça (1Pedro 5.12), mas esta não é uma tarefa fácil. Há vários “evangelhos” a nos seduzir contra a verdadeira graça.
Em Gálatas 1.6-9, o apóstolo Paulo menciona uma, mas que tem um alcance maior.
Estou admirado de que tão depressa estejais desertando
daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho,
o qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam
e querem perverter o evangelho de Cristo.
Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos pregasse outro evangelho
além do que já vos pregamos, seja anátema.
Como antes temos dito, assim agora novamente o digo:
“Se alguém vos pregar outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema”.
(Gálatas 1.6-9)
O apóstolo está horrorizado com uma tendência, que lhe chegou ao conhecimento, verificada entre algumas igrejas da Galácia. Havia, entre elas, quem estava se deixando levar pelo canto da sereia legalista. É por isto que ele pergunta se seus leitores eram tão insensatos ao ponto de, tendo sido alcançados pela graça, porque convencidos pelo Espírito do seu pecado, agora voltarem ao império da Lei mosaica, que afirma o valor do esforço humano para a salvação. O tom paulino é severo: Sois vós tão insensatos [que], tendo começado pelo Espírito, é pela carne que agora acabareis? (Gálatas 3.3) Em outras palavras, depois de terem recebido a graça, a partir de agora voltarão a viver pela Lei?
O contexto para a repreensão era que, depois de evangelizados, os gálatas estavam sendo des-evangelizados pelos pregadores que propunham uma volta parcial ao judaísmo. O conhecimento deste dado nos ajuda a entender melhor toda a Epístola. A eloqüência desses judaizantes era tanta, que estavam seduzindo a muitos cristãos, que estavam abandonando a fé cristã.
O apóstolo Paulo lembra-lhes, então, para não se esquecerem que eles eram cristãos porque foram chamados pela graça de Cristo. Tendo sido chamados, aceitaram o convite, foram transformados e passaram a viver segundo esta graça. Como agora passavam uma borracha em toda aquela experiência?
No fundo, eles não achavam que estavam abandonando a Cristo, mas que podiam ficar com ele e com o seu contrário. Talvez achassem que não havia problema algum em ficar com o Evangelho e com a Lei. Paulo, então, afirma que Evangelho e Lei são contraditórios. Como agora queriam conciliar o que não pode ser conciliado?
Assim, pelo efeito da propaganda, alguns cristãos estavam desertando (abandonando) a fé cristã. O risco ainda permanece, seja pela razão dos gálatas, essencialmente de fundo teológico, seja por outras razões, mais existenciais.
Quero mencionar outras dessas razões, porque a solução paulina se lhe aplica integralmente.
Algumas abandonam a fé cristã porque se deixam seduzir por outras crenças que apenas se parecem evangélicas, parecem-se ou porque negam a graça ao afirmarem que tudo é graça (com, por exemplo, um evangelho tão sincrético, abrindo-se a tudo, que não é mais evangelho) ou porque negam a graça ao afirmarem que nada é graça (com, por exemplo, um evangelho mercadológico em que tudo é troca).
Desde o apóstolo Paulo, há alguns que acham que o Evangelho é pouco e que é preciso acrescentar-lhe novos conteúdos, provenham eles do saber em diálogo com o mundo ou de alguma formulação nova, apresentada como “revelação especial de Deus”. É por isto que a cada estação surgem ensinos esdrúxulos (estranhos), aos quais o apóstolo chama de “ventos de doutrina” (Efésios 4.14).
Que eles surjam, não surpreende. Que eles seduzam, provoca espanto. Que os cristãos não cotejem (confiram) estas “novidades” com o Evangelho, estarrece.
Além dessa deserção (de cepa teológica, como entre os gálatas), há outras de natureza existencial a nos perturbar.
Outros trocam a graça Deus pela “graça” do presente século. Encantam-se com a tecnologia (que é realmente encantadora, mas insuficiente para dar sentido à vida) ou com os meios de entretenimento (que produzem maravilhas que nos embevecem, mas são suficientes apenas para nos divertir, e só como tais devem ser recebidos), que não têm mais tempo para os prazeres com Deus (encontrando-se com Ele por meio da leitura da Bíblia, da oração e da proclamação dos Seus feitos).
Fruamos as técnicas e os meios, mas não nos esqueçamos que viver é ser alimentado pela Fonte.
Outros abandonam a fé porque ficam cansados de esperar a intervenção de Deus para que Suas promessas se cumpram. É-nos muito difícil viver fora de uma relação mercantil. Mesmo o nosso relacionamento sofre esta tentação, a mesma que levou o povo de Israel a fabricar um bezerro de outro. Queremos um deus que nos sirva. Nós lhe prometemos fidelidade, desde que valha a pena e o resultado seja imediato.
Muitas pessoas buscam o batismo cristão, são batizadas e desaparecem das igrejas, talvez decepcionadas, como a dizer: “eu fiz a minha parte, mas Deus não fez a dEle”.
Outros oram meses e anos a fio em busca da solução de um problema, e como não a recebem (ou acham que não a recebem, porque seus olhos mercantilizados não conseguiram ver a resposta, e não a viram porque não se parece com a resposta engendrada no próprio coração do crente, mas lançada do coração do Pai), desertam de Deus.
Outros largam Deus de lado porque ficam cansados de ver a indignidade dos injustos e dos justos. Porque não esperada, a indignidade dos justos (seriam mesmo justos?) é capaz de estragos maiores, típicos de uma bomba. Olhar para um evangélico e não ver nele o Evangelho é algo que mina até a fé dos fortes. Quando esta frase vai para o plural (olhar para os evangélicos e não ver neles o Evangelho), os fortes balançam e, se a graça não os sustentam, eles caem.
Diante destas possibilidades de deserção, o ensino paulino nos ajuda.
Ele nos lembra que devemos nos lembrar do Evangelho que aceitamos. Embora anunciado por homens, não é um Evangelho de homens, mas de Jesus Cristo. Um dia, fomos transformados por este Evangelho de graça e por esta graça estamos no caminho da transformação, um caminho que não tem fim. A legitimidade do Evangelho não está nas nossas vidas (por mais corretas que sejam) mas em Jesus Cristo.
A visão deste Evangelho nos mantém firmes na graça, mesmo que os pregadores da Lei sejam convincentes, mesmo que as seduções das maravilhas da tecnologia e da comunicação sejam poderosas, mesmo que a decepção com o Deus que imaginamos nos aperte a garganta, mesmo que o sucesso dos incrédulos nos atordoe, mesmo que a duplicidade de vida dos cristãos nos amargure.
Só o Evangelho de Jesus Cristo como pregado por Paulo e por todos os que são fiéis à vocação com que foram realmente chamados, no passado e no presente, é Evangelho. O resto é criação humana e como tal deve ser tratada.
***
Nosso desejo, então, é que seja sobre nós a graça do Senhor, nosso Deus e que Ele confirme sobre nós a obra das nossas mãos; sim [Senhor], confirma a obra das nossas mãos (Salmo 90.17).