Um dos temas mais difíceis para o nosso entendimento, no campo da teologia, é a trindade, doutrina que trata de Deus como um ser triúno.
Seguem alguns elementos que nos ajudam nesta compreensão, embora sabendo-a complexa e alvo de muitas discussões ao longo da história do Cristianismo.
1. A linguagem humana sobre Deus é uma linguagem… humana. A começar pelo seu nome, que ele não tem. Quando Moisés lhe perguntou o nome, sua resposta foi:
“Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês”.
Disse também Deus a Moisés: “Diga aos israelitas: O Senhor, o Deus dos seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó, enviou-me a vocês. Esse é o meu nome para sempre, nome pelo qual serei lembrado de geração em geração". (Êxodo 3.14-15)
Em outras palavra, "Deus" não é nome, mas título. O melhor seria dizermos: "Senhor Deus". No entanto, tomando o devido cuidado, todos entendemos que, quando falamos Deus, falamos das três pessoas em conjunto ou numa delas em particular. O Pai é Deus. Jesus é Deus. O Espírito Santo é Deus.
2. Só o conhecemos por meio do que ele revela. Para se revelar, ele pode se autolimitar.
Toda a comunicação implica um "rebaixamento" do comunicador para "ficar no nível" do interlocutor.
3. Deus é soberano, sábio e bom. Ao mesmo tempo.
Todo poder reside dele. Toda a sabedoria habita nela. Toda bondade é a sua essência. Etas virtudes entraram em operação ao mesmo tempo. Quando ele é bom, é também soberano e sábio. Quando é sábio, ele é bom e soberano também.
4. Deus é transcendente e imanente. 1 Ao mesmo tempo.
O Deus que transcende não é inacessível. O Deus imanente não é fraco.
5. Deus é, ao mesmo tempo, Pai, Filho e Espírito, como o mostra a doutrina da Trindade, como explicada por A.H. Strong (1836-1921) em seis postulados:
. Nas Escrituras há três que são reconhecidos como Deus.
. Estes três são descritos de tal modo nas Escrituras que somos compelidos a concebê-los como pessoas distintas.
. Esta tripla personalidade da natureza divina não é meramente econômica e temporal, mas é imanente e eterna.
. Esta tripla personalidade não é um triteísmo, uma vez que há três pessoas, mas há uma única essência.
. As três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) são iguais.
. Inescrutável, mas não autocontraditória, esta doutrina oferece a chave para todas as outras doutrinas. 2
Entre outros atributos, 3 Deus é autossuficiente, sendo a fonte do seu próprio ser):
“Assim diz o Senhor, o seu redentor, que o formou no ventre:
‘Eu sou o Senhor, que fiz todas as coisas,
que sozinho estendi os céus, que espalhei a terra por mim mesmo,
que atrapalha os sinais dos falsos profetas e faz de tolos os adivinhadores,
que derruba o conhecimento dos sábios e o transforma em loucura,
que executa as palavras de seus servos
e cumpre as predições de seus mensageiros’".
(Isaías 44.24-26a)
Deus é eterno:
"Antes de nascerem os montes e de criares a terra e o mundo,
de eternidade a eternidade tu és Deus"
(Salmo 90.2)
Deus é onipresente:
"Para onde poderia eu escapar do teu Espírito?
Para onde poderia fugir da tua presença?
Se eu subir aos céus, lá estás;
se eu fizer a minha cama na sepultura, também lá estás.
Se eu subir com as asas da alvorada e morar na extremidade do mar,
mesmo ali a tua mão direita me guiará e me susterá".
(Salmo 139.7-10),
Deus é onipotente:
"Jesus olhou para eles e respondeu: ‘Para o homem é impossível, mas para Deus não; todas as coisas são possíveis para Deus’”.
(Marcos 10.27)
Deus é onisciente:
"Nada, em toda a criação, está oculto aos olhos de Deus. Tudo está descoberto e exposto diante dos olhos daquele a quem havemos de prestar contas".
(Hebreus 4.13)
Deus é imutável:
“De fato, eu, o Senhor, não mudo".
(Malaquias 3.6)
"Mas tu permaneces o mesmo,
e os teus dias jamais terão fim".
(Salmo 102.27)
6. A trindade é triúna (três pessoas formando uma unidade de pessoas), como exposta no acróstico do mesmo Strong:
"Três são reconhecidos como Deus;
Reputados como pessoas distintas;
Imanentes e eternas, não meramente econômicas ou temporais;
Unidas na essência;
Nada além de igualdade
Outras doutrinas descerra, mas permanece inescrutável". 4
7. O teólogo Irineu de Lion (c. 130-202) foi o primeiro a expressar a doutrina da trindade nos termos que seriam aceitos como biblicamente ortodoxos (corretos):
"Com efeito, a Igreja espalhada pelo mundo inteiro até os confins da terra recebeu dos apóstolos e seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus; e a vinda, o nascimento pela Virgem, a paixão, a ressurreição dos mortos, a ascensão ao céu, em seu corpo, de Jesus Cristo, dileto Senhor nosso; e a sua vinda dos céus na glória do Pai, para recapitular todas as coisas e ressuscitar toda carne do gênero humano; a fim de que, segundo o beneplácito do Pai invisível, diante do Cristo Jesus, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, todo joelho se dobre nos céus, na terra e nos infernos e toda língua o confesse; e execute o justo juízo de todos: enviando para o fogo eterno os espíritos do mal, os anjos prevaricadores e apóstatas, assim como os homens ímpios, injustos, iníquos e blasfemadores; e para dar em prêmio a vida incorruptível e a glória eterna aos justos, aos santos e àqueles que guardaram os seus mandamentos e perseveraram no seu amor, alguns desde o início, outros, depois de sua conversão". 5
8. As dificuldades para a compreensão da Trindade levaram a outras formulações, entre as quais o modalismo, o subordinacionismo e o triteísmo. 6
. O Modalismo (ou sabelianismo) afirmava que o Pai, o Filho e o Espírito Santo não são três pessoas distintas, mas três modos diferentes de Deus se manifestar. Os três como os conhecemos são modos (máscaras de um mesmo ator) do Único, que aparece ora como Pai, ora como Filho, ora como Espírito Santo.
A Bíblia nos indica o equivoco do modalismo: quando Jesus saiu das águas após sua imersão por João Batista, "veio dos céus uma voz: “Tu és o meu Filho amado; em ti me agrado”. Logo após, o Espírito o impeliu para o deserto". (Marcos 1.11-12)
Num mesmo tempo, portanto, encontramos as três pessoas em ação.
. O Subordinacionismo (ou adocionismo ou arianismo) propunha Deus é o Pai, sendo-lhe subordinados o Filho e o Espírito Santo. Jesus foi adotado pelo Pai como Deus no batismo (adocionismo, segundo o ensino de Paulo de Samósata, no século 3). O Logos existia antes do Jesus histórico em que se encarnou, mas não era eterno com(o) o Pai e nem da mesma essência. Jesus é um Deus menor.
Diferentemente , o prólogo do evangelho de João esclarece:
"No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. 4 Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. (…) Aquele que é a Palavra estava no mundo, e o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o reconheceu. (…) Aquele que é a Palavra tornou- se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade".
(João 1.1-4, 10 e 14)
. O Triteísmo defendia que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas divinas separadas e não um ser unificado composto por três pessoas iguais, eternas e que se permeiam.
Jesus mesmo disse:
"Eu e o Pai somos um”. (João 10.30)
9. O Credo Niceno (325), modificado em Constantinopla (381), tornou-se universalmente aceito pelos cristãos como ortodoxo, exceto na questão do Filioque. 7 Ei-lo:
"Creio em um Deus, Pai Todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só substância com o Pai; pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito Santo da Virgem Maria, e foi feito homem; e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos. Ele padeceu e foi sepultado; e no terceiro dia ressuscitou conforme as Escrituras; e subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas. Creio na Igreja una, universal e apostólica, reconheço um só batismo para remissão dos pecados; e aguardo a ressurreição dos mortos e da vida do mundo vindouro".
10. Dura é a tarefa de compreender a Trindade. Reconheceu-a John Wesley (1703-1791):
"Traga-me um verme capaz de compreender um homem e eu lhe mostrarei um homem capaz de compreender a Deus Uno e Trino". 8
Melhor ficar também com Miroslav Volf (1956):
"Uma vez que o Deus cristão não é um Deus solitário, mas, antes, uma comunhão de três pessoas, a fé leva seres humanos à communio divina. Não se pode, no entanto, ter uma comunhão fechada em si mesma com o Deus Uno e Trino, um "quarteto", por assim dizer, pois o Deus cristão não é uma divindade privada. A comunhão com esse Deus é ao mesmo tempo também uma comunhão com os outros que se têm entregue em fé ao mesmo Deus. Daí um e mesmo ato de fé coloca a pessoa em um novo relacionamento com Deus e com todos os outros que estão em comunhão com Deus". 9
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
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1 "Tremendum et fascinosum", como cantou Rudof Otto ()
2 STRONG, A.H. Systematc Theology, p. 304.
3 OLSON, Roger. História das controvérsias na teologia cristã. São Paulo: Vida, 2001, p. 153-166.
4 No original, lemos:
"Three recognized as God;
Regarded as three distinct persons;
Immanent and eternal, not merely economical or temporal;
United in essence;
No inequality;
Explains all other doctrines yet itself inscrutable".
5 Irineu de Lion. Contra as heresias. Livro 1, 10.1 São Paulo: Paulus, 1995, p. 61-62.
Ele também escreveu: "Eis aqui a regra da nossa fé, o fundamento do edifício e a base de nossa conduta: Deus Pai, não criado, ilimitado, invisível, único Deus, criador do universo. Este é o primeiro e principal artigo. O segundo é este: o Verbo de Deus, Filho de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor, que apareceu aos profetas segundo o desígnio de sua profecia e segundo a economia disposta pelo Pai; por meio d’Ele foi criado o universo. Ademais, no fim dos tempos, para recapitular todas as coisas, fez-se homem entre os homens, visível e tangível, para destruir a morte, para manifestar a vida e restabelecer a comunhão entre Deus e o homem. E como terceiro artigo: o Espírito Santo, por cujo poder os profetas profetizaram, os Padres foram instruídos no que concerne a Deus, os justos foram guiados pelo caminho da justiça e que, no fim dos tempos, foi difundido de um modo novo sobre a humanidade, por toda terra, renovando o homem para Deus". Cf. Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do Sul. A Santíssima Trindade nos Escritos dos Santos Padres dos Primeiros Séculos. Disponível em <http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/pais_da_igreja/a_santissima_trindade_nos_escritos_dos_santos_padres_dos_primeiros_seculos.html#I>
6 OLSON, Roger. História das controvérsias na teologia cristã. São Paulo: Vida, 2001, p. 185-197.
7 Filioque quer dizer "e do Filho", uma expressão acrescentada ao Credo Niceno no século 11 e que marcou o cisma entre as igrejas latina e grega.
8 O mesmo Wesley anotou: "Mostre como nesta sala há três velas e uma luz e eu vou lhe explicar o modo da existência divina".
9 VOLF, Miroslav. After Our Likeness.