Não podemos esquecer, como tenho repetido aqui, que a vida cristã é aquela vivida no Espírito Santo. Na verdade, a vida cristã só é possível no Espírito. Fora dEle, nossa vida é como a de qualquer pessoa. Entre as virtudes cristãs elencadas pelo apóstolo Paulo, está a do domínio próprio. Quando relaciona as qualidades de um cristão, Paulo inclui o domínio próprio (Tt 1.8), junto com hospitalidade, benignidade, sobriedade, justiça e piedade. O apóstolo Pedro segue na mesma trilha, colocando como uma das virtudes a ser buscada pelo cristão, ao lado do conhecimento, da perseverança e da piedade (2Pe 1.6). Esta é uma palavra bastante problemática para nossa geração, acostumada à idéia de que a felicidade decorre do desprezo à idéia de disciplina e autocontrole. Colocando esta escolha em outros termos, podemos dizer que, para boa parte das pessoas, se a escolha for entre felicidade e autocontrole, talvez ouçamos alguém se dizer cansado de autocontrole e que agora pretende viver a vida com toda a sua adrenalina. Prevalece a idéia que autocontrole e alegria são incompatíveis. No entanto, a Bíblia nos adverte a não permitir que o pecado tenha domínio sobre nós (Rm 6.14), já que não estamos mais debaixo da lei, que nos leva a produzir, mas sob a graça, que nos deve levar a frutificar, além do domínio próprio, em alegria, amor, benignidade, bondade, fidelidade, longanimidade, mansidão e paz. O sentido do domínio próprio. O apóstolo dava muita importância ao termo (egkrateia), uma vez que o usa várias vezes. Em 1Coríntios 9.25, trata-se da virtude de um atleta em disciplinar seu corpo em busca da vitória; em 1Coríntios 7.9, trata-se da capacidade do cristão em controlar sua sexualidade. É curioso que, quando comparece perante o procurador romano Antonio Felix, que governou a Judéia de 52 a 60, o acusado apóstolo se defende falando de justiça, de juízo final e de domínio próprio, para irritação do representante de Nero (At 24.25). A expressão “domínio próprio” aparece sob diferentes palavras nas versões bíblicas, tendo então como sinônimos principais autocontrole e temperança. Não tem nada a ver, portanto, com endereço particular na internet… Podemos entender melhor o que é domínio próprio pensando no seu oposto. Quem tem domínio próprio se autodomina. Quem não tem é dominado por algo ou por alguém. Quem tem domínio não permite que sentimentos e desejos o controlem; antes, controla-os, não se permitindo dominar por atitudes, costumes e paixões. Domínio próprio, portanto, é a capacidade efetiva que o cristão deve ter de controlar seu corpo e sua mente. Quando fez o homem, Deus deu-lhe o privilégio de dominar sobre todas as coisas: “também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (Gn 1.26). O salmista relembra esta competência humana, ao dizer que Deus deu ao homem domínio sobre todas as obras das suas mãos e dos seus pés (Sl 8.6). Esta competência, no entanto, nem sempre se realiza quando se trata do homem dominar a si mesmo. Embora possa estar em nós desejar fazer o bem, nem sempre o fazemos. Afinal, como aprendemos também com Paulo, na nossa carne não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em cada um de nós; não, porém, o efetuá-lo, “porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Rm 7.18-19) Por isso, parecemos, por vezes, em cidades derrubadas, pois que cidade “que não tem muros, assim é o homem que não tem domínio próprio” (Pv 25.28). Esta percepção não é um convite à passividade, mas um desafio a nos conhecermos mais e a nos esforçarmos mais para viver segundo o padrão de Deus, por difícil que seja. Desenvolvendo o autocontrole Antes, somos convidados a ter domínio sobre nossos sentimentos, sobre nossos desejos e sobre as circunstâncias que nos envolvem. 1. Dominando nossos sentimentos Somos movidos pelos nossos sentimentos. Se, por exemplo, amamos a Deus, ao próximo ou a nós mesmos, somos levados a querer bem, adorando a Deus, respeitando o outro e gostando de nós mesmos. Se, de outro lado, em nós o ódio é forte, seja a Deus pela figura do pai que representa, seja ao próximo, por ser a fonte de nosso sofrimento (o inferno são os outros, já dizia Sartre), seja a nós mesmos, pela incapacidade de ser o que gostaríamos de ser, somos levados ao vale do vazio. Ter domínio próprio é fazer com que os sentimentos bons sejam fortalecidos e canalizados para que possam ser aperfeiçoados. Assim, o amor deve alcançar o seu objeto. Desde Platão, existe uma modalidade de amor silencioso. Há homens que amam mulheres que jamais retribuirão o seu amor pelo simples fato de não saberem que são amadas. Há, pois, um amor erótico platônico. Há também um amor fraternal platônico, que é aquele que nunca passa ao campo da ação. Há ainda um amor espiritual platônico. Há gente que só Deus, que sonda os corações, sabe que é amado por ela, porque dos lábios desse tipo de adorador não sai um cântico, não sai uma palavra de gratidão ou de exaltação a Deus. Quando temos domínio sobre o sentimento do amor, fazemos com que ele se torne operativo. Quanto ao ódio, bem, simplesmente não devemos odiar e poderíamos encerrar a discussão aqui. No entanto, somos também capazes de odiar; este é um gigante da alma, como o descreveu um antigo psicólogo (Emílio Mira y Lopez). Se o Espírito Santo habita em nosso coração, ele não pode conviver com o ódio. Contudo, sabemos que, embora não o desejando, nós odiamos. Por isto, a recomendação bíblica é que, mesmo nos irando, não devemos pecar e nem permitir que o sol se ponha sobre a nossa raiva. Antes, consultemos nosso travesseiro e sosseguemos (Salmo 4.4). Em outras palavras, o ódio não pode ser um sentimento permanente em nós,