Hebreus 04.16: BONHOEFFER, FIEL ATÉ A MORTE

“Quando Cristo chama um homem, ordena-lhe que vá e morra”. (Dietrich Bonhoeffer,
1906-1945) Preparado para ser pregado na IB Itacuruçá, em 24.11.2002 (noite).

Como vivida por Jesus, a graça nos incomoda. A graça de Deus é o oferecimento gratuito da vida de Jesus Cristo para que, por meio do Seu sacrifício, todos possamos ser salvos. Há muitas pessoas confrontadas com esta verdade, mas que não a aceitam porque ela é simples demais. Há alguns que propõem algum tipo de pagamento, por meio, por exemplo, de reencarnações sucessivas, por julgá-las mais justas, ou por meio de da manutenção de um sistema religioso repleto de proibições, vistas como necessárias para o crescimento espiritual ou santificação. Quem pensa assim está julgando de modo correto a graça: ela não é justa e, por isto, é graça, e é pena que quem pense assim não a receba, porque não a quer…
Não há nada que possamos fazer para merecer esta graça. Segundo o resumo do apóstolo Paulo, ela é uma concessão gratuita de Deus, em Jesus Cristo.
Ajuda-nos a entender a idéia da concessão compreender aquilo que faz a legislação federal sobre certos serviços. Para se tornar concessionária de um serviço público (na área do transporte, por exemplo), a empresa precisa se qualificar e ganhar uma concorrência. Depois de um certo julgamento, “ganha-se” a concessão. Ainda há pouca semelhança desta concessão com a concessão da graça, porque a empresa precisa provar que merece explorar o serviço. No caso da radiodifusão ou teledifusão, as regras são diferentes. O poder executivo pode conceder uma emissora de rádio ou televisão para quem quiser, geralmente em retribuição a algum serviço prestado antes ou a ser prestado no futuro, pressuposto que a empresa terá condições de prestar o servico. No Brasil, a concessão se tornou um instrumento de negociação para fins políticos. Aqui a semelhança é maior, porque a concessão é fruto da vontade do poder executivo. No entanto, a semelhança pára aí, porque no caso da graça, Deus age sem qualquer interesse pessoal e Ele concede a Sua graça a todos, não a apenas a alguns “protegidos”. Como nos ensino o apóstolo Paulo, somos salvos pela graça, mediante a fé; [ela] não vem de nós; é dom de Deus; [ela] não de obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos (Efésios 2.8-10). Ela não decorre da nossa bondade; antes, vem curar a nossa maldade.

Não há nada que possamos fazer para exagerar o impacto desta graça. Na verdade, nossa atitude deve ser outra diante de oferecimento tão magistral: Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna (Hebreus 4.16)
Não há nada que devamos fazer para baratear esta graça. Antes, devemos estar atentos para não a transformarmos numa graça barata. Se ela não nos custou nada, custou tudo a Jesus Cristo: sua própria vida.
Desde o início, a compreensão da realidade da graça, totalmente nova e única na história das religiões, tem provocado muitas incompreensões.
O evangelho da graça do Senhor Jesus Cristo teve que enfrentar diversas tentativas de negação. Os legalistas, em todos os tempos, acham que ela precisa da cooperação das obras para que possa dar seus frutos. Os libertinos, em todas as épocas, acham que tal é a liberdade que traz que nenhum compromisso se espera de quem foi alcançado e salvo por ela.
O Cristianismo tem sofrido demais com a dificuldade de os cristãos entenderem e viverem sob esta graça, bem compreendida. Temos uma enorme facilidade para nos passar para outro evangelho (Gálatas 1.6), desligando-nos de Cristo (Gálatas 5.4).
Ao longo da história, alguns cristãos têm levantado suas vozes para profetizar acerca da verdadeira graça. Paulo, o principal deles, deixou bem claro que assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida (Romanos 5.18). Nós somos justificados gratuitamente (Romanos 3.24), portanto.
Diante dos legalismos, Paulo adverte que, se é pela graça que somos salvos, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça (Romanos 11.6). Se a justificação é mediante a lei, a conseqüência lógica é que Cristo morreu em vão (Gálatas 2.21).
Diante dos libertinismos, Paulo nos lembra: Nós, porém, que somos do dia, sejamos sóbrios, revestindo-nos da couraça da fé e do amor e tomando como capacete a esperança da salvação (1 Tessalonicenses 5:8). Cada um de nós desenvolver a salvação gratuitamente recebida (Filipenses 2.12). O prazer do salvo é crescer na graça, segundo a instrução de outro apóstolo (2Pedro 3.18).

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Nós fomos comprados por um alto preço e não podemos nos deixar escravizar (1 Coríntios 7.23) por nenhuma negação da graça. Antes, devemos glorificar a Deus em nossos corpos (1 Coríntios 6.20), mesmo que isto signifique sofrer por ele, como Paulo e Pedro sofreram, como, na Alemanha nazista, Martin Niemöller (1892-1984) e Dietrich Bonhoeffer sofreram.
Para muitos cristãos, pastores inclusive, o nazismo estava correto no seu anti-semitismo e no seu projeto de supremacia nacional. Uma organização cristã defendia que os não-arianos deviam ser proibidos de participar, ministrar ou ensinar nas igrejas. Muitos se opuseram, como Niemöller e Bonhoffer.
Há uma pequena história que nos ajuda a entender como os cristãos alemães estavam divididos. Numa manhã, Niemöller foi visistado na prisão por um pastor, luterano como ele, que lhe perguntou, surpreso:
— Irmão, o que você fez. Por que está aqui?
Niemöller respondeu:
— Irmão, diante do que está acontecendo em nosso país, eu lhe pergunto: por que você não está aqui?
(Disponível em <http://www.allsaintssunderland.ang-md.org/id64.htm>. Acessado em 17.11.2002)

Niemöller foi libertado pelos aliados da prisão onde aguardava a execução ordenada por Hitler. É atribuído a ele um dos mais importantes poemas em defesa da consciência cívica:

“Quando os nazistas vieram atrás dos comunistas,
eu me calei: eu não era comunista.
Quando prenderam os sociais-democratas,
eu me calei: eu não era social-democrata.
Quando eles vieram procurar os judeus,
eu me calei: eu não era judeu.
Quando foram atrás dos católicos,
eu me calei: eu não era católico.
Quando vieram me pegar,
não havia mais ninguém para protestar.”
(Como citado por Kofi Annan. Disponível em <http://www.ambafrance.org.br/abr/label/label34/annan.html>. Acessado em 17.11.2002)

A história de Bonhoeffer teve outro final. Antes de ser preso, ele escreveu que seguir a Jesus tem um preço. Para ele, “quando Cristo chama um homem, ordena-lhe que vá e morra”. (BONHOEFFER, Dietrich. O preço do discipulado). E ele experimentou esta verdade.
Pastor, professor, músico, poeta e teólogo, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) entendeu que fé e vida não podem ser separadas e que, no contexto em que vivia, era parte da sua fé ajudar os judeus da Alemanha nazista a fugirem para salvar suas vidas. Ele entendeu também que devia fazer tudo o que fosse possível para que Adolf Hitler fosse afastado do poder, mesmo que, para isto, tivesse que ser morto.
Suas dificuldades começaram logo e foi proibido, em 1936, de ensinar na Universidade de Berlin. Uma solução foi deixar o país, tendo chegado a New York em 1939; apesar da carreira promissora que se prenunciava, não conseguiu ficar sequer dois meses, achando que seu lugar era na Alemanha. “Tenho tido tempo para pensar e orar sobre minha situação e a situação da minha nação, estando claro para mim a vontade de Deus. Cheguei à conclusão que comete um erro ao vir para os Estados Unidos. Eu não tenho o direito de participar na reconstrução da vida cristã na Alemanha após a guerra, se não compartilhei das agruras deste tempo com o meu povo. Os cristãos na Alemanha estão diante da terra alternativa de desejar a derrota de sua nação para que a civilização possa sobreviver ou desejar a vitória de sua nação e a destruição da civilização. Eu sei qual destas alternativas devo escolher, mas não posso fazer esta escolha em segurança”. (BONHOEFFER, Dietrich. Citação disponível em <http://www.gospelcom.net/chi/GLIMPSEF/Glimpses/glmps063.shtml> Acessado em 16.11.2002) De volta ao seu país, continuou suas críticas ao regime por torturar e matar judeus e à igreja alemã por sua cumplicidade. Foi proibido (em 1941) de escrever ou publicar. Para ele, o preço do discipulado não excluía a perseguição, a prisão e mesmo a morte.
Em setembro de 1941, participou de uma operação para resgate de judeus que foram enviados à Suíça. Um ano e meio depois, já noivo de Maria von Wedemeyer, foi preso e levado para a prisão em Berlin, junto com  a irmã Cristine. Aí ficou por quase dois anos, quando foi enviado para o campo de concentração de Buchenwald, no dia 7 de fevereiro de 1945. Hitler ordenou a execução do grupo que fez um plano para eliminá-lo. Bonhoeffer fazia parte deste grupo. A quem parecer estranho este comportamento, sirva a palavra do pacifista Bonhoeffer à sua cunhada, Emmi: “Se eu vejo um louco dirigindo um carro para cima de um grupo de inocentes pedestres, não posso, como cristão, simplesmente esperar pela catástrofe para, depois, consolar os feridos e enterrar os mortos. Eu tenho que lutar para tirar o volante de direção das mãos do motorista”. (BONHOEFFER, Dietrich. Citado por Theologian Executed on Order from Hitler. Disponível em <http://www.gospelcom.net/chi/GLIMPSEF/Glimpses/glmps063.shtml> Acessado em 16.11.2002) O enforcamento foi marcado para o dia 9 de abril (1945). Nu sob a corda, o pastor Bonhoeffer se ajoelhou e orou. Cinco minutos depois, aos 39 anos, foi enforcado no campo de concentração de Flossenbürg, para onde fora transferido. Três semanas depois Hitler se suicidaria. (Para maiores informações sobre o autor, acesse-se a página da sociedade que leva seu nome <(http://www.dbonhoeffer.org; www.sociedadebonhoeffer.hpg.com.br> Acessadas em 16.11.2002).
Sua morte foi a conseqüência de uma vida coerente com a graça de Deus, sobre a qual escrevera, em 1937, um livro extraordinário (O preço do discipulado, ou, simplesmente, Discipulado, na edição brasileira. Porto Alegre: Sinodal. Aqui estou o resumo de SUMNER, Darren. Em: Paying the Cost: the demands of Christ and the failure of the church. Disponível em <http://www.thesumners.com/bonhoeffer/examinations.html>. Acessado em 17.11.2002).

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Segundo Bonhoffer, a graça custou a Deus a vida do Seu próprio Filho e não pode ser barateada por nós. Graça barata é perdão divino sem arrependimento humano. Graça barata é graça sem discipulado, graça sem cruz, graça sem Jesus Cristo. Graça barata é Cristianismo sem Cristo. Graça barata é fé sem compromisso (com a vida e com a igreja, vale dizer, sem a missão que Deus dá a cada um). Graça barata é graça autoconferida, não presente de Deus.
A única pessoa que tem o direito de dizer que é justificado pela graça somente é aquela que deixou tudo para seguir a Cristo. Esta pessoa sabe que a chamada ao discipulado é um dom da graça e que esta chamada é inseparável da graça. Quem usa a graça para se dispensar de seguir a Cristo está enganando a si mesmo.
Ser discípulo de Jesus é ser obediente a Jesus. Engana-se quem afirma que segue a Cristo mas não o obedece diariamente.  A graça barata justifica todos os comportamentos humanos. Não há lugar para a obediência nela, pois ela se tornou uma licença para a complacência, para a indiferença e mesmo para o pecado. Obedecer a Cristo é morrer para a velha natureza.
A graça barata não destrói nossos desejos pecaminosos; antes, os justifica. A graça barata nos leva a dizer e viver frases como:
. “Deus me aceita e me abençoa como eu sou”.
. “Eu não consigo ser melhor do que sou, e Deus me compreende”.
Há verdade nestas frases, mas há mentira nelas também. A mentira está em justificar os nossos atos, permitindo-nos levar a vida que quisermos. Graça barata é um Cristianismo egocentrado naquilo que o cristão pensa e deseja, não naquilo que Deus propõe e espera. (Cf. MEDINGER, Alan P. Cheap Grace vs. Pearl of Great Price. Disponível em <http://www.messiah.edu/hpages/facstaff/chase/h/articles/regenera/25.htm>. Acessado em 17.11.2002) As perguntas de Paulo são eloqüentes respostas: Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos? (Romanos 6.1-2)
Ser discípulo de Jesus é tomar a cruz de Jesus. Engana-se quem pensa que pode seguir a Cristo sem tomar a Sua cruz. O discípulo só é discípulo quando compartilha o sofrimento de Jesus, marcado pela rejeição e pela crucificação. Sofrer por Cristo é, também, suportar as cargas dos outros e perdoar os seus pecados para conosco, assim como Ele predoou os nossos. Sofrer por Cristo é, ainda, comprometer-se com uma vida reta e com a transformação da sociedade.

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Nós somos convidados a viver no compasso de uma graça valiosa.

A graça é valiosa porque vem de Cima. É esta percepção que nos leva a desejar relacionamentos verticais e não apenas horizontais. É este tipo de fé que levou o salmista a exclamar, com a licença própria dos poetas, que a graça de Deus é melhor do que a vida (Salmos 63.3).
É neste sentido que ela é justa: ela é justa porque vem diretamente de Deus. O nosso pecado é contra Ele. Ele é o ofendido. Então, Ele pode nos perdoar. Se alguém olha para você e resolve lhe dar um presente, você vai questioná-lo e recusar o presente? Há muitos questionando a justiça de Deus e perdendo a oportunidade de serem justificados por Ele. A iniciativa da graça é dEle. Felizes são aqueles que a recebem.

A graça é valiosa porque nos dá vida. Em Cristo, a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens (Tito 2.11). Eis como estávamos todos: mortos em nossos delitos, arrasados em nossa culpa, mas Deus nos deu vida em Cristo (Efésios 2.5). Por isto, somos agora herdeiros de Cristo, segundo a esperança da vida eterna (Tito 3.7).

Vale a pena receber esta graça valiosa. Jesus a compara a uma pérola preciosa. O Reino dos céus também é como um negociante que procura pérolas preciosas. Quando ele encontrou uma pérola de grande valor, foi, vendeu tudo o que tinha e a comprou (Mateus 13.45-46). A graça é uma pérola de grande valor. Vale a pena largar tudo para “comprá-la”.
Há alguns presos ao seu passado. Acharam que já andaram ou andam não longe de Deus, que não têm como receber a Sua graça. Esqueça o seu passado, porque Deus o esquece. Ele não mandou Seu Filho para morrer para os “bonzinhos”, mas para todos os que se encontram afastados dEle, não importa a distância.
Há outros presos à sua razão. Eles dizem que a graça precisa ser entendida para ser aceita. Eu lhes digo: uma graça racionalmente entendida não é graça. É lógica humana. A lógica não salva. A lei não salva. A bondade humana não salva.

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A graça é gratuita, mas não é barata. Não é barata pelo preço (a própria vida) que significou para Quem a ministrou e não é barata também porque Ele espera de nós um compromisso de uma vida própria de quem já foi crucificado na cruz.
Não queiramos conquistar a terra das promessas, sem passar pelo monte do sacrifício, como Abraão.
Não queiramos ter visões sem experimentar a solidão do exílio da ilha de Patmos, como João experimentou.
Não peçamos que Deus nos tire os espinhos da carne, se não estamos dispostos a ouvir dEle, como Paulo ouviu, que a Sua graça nos basta.

Receber esta graça significa reconhecer o senhorio de Jesus sobre todas as áreas da vida, como a vida e o testemunho de Dietrich Bonhoeffer indicam, e não apenas sobre as dimensões ditas religiosas da experiência humana.

Venha a Cristo, deixando morrer suas necessidades e seus desejos.
Venha e siga a Cristo como alguém que tomou a gratuita água da vida.
Venha, siga a Cristo e se disponha a reconhecer o alto preço que foi pago por Ele para que você pudesse ser salvo.