Clamei pelo teu nome, Senhor , das profundezas da cova. Tu ouviste o meu clamor: ‘Não feches os teus ouvidos aos meus gritos de socorro’. Tu te aproximaste quando a ti clamei e disseste: ‘Não tenha medo’. Senhor, tu assumiste a minha causa; e redimiste a minha vida. Tu tens visto, Senhor, o mal que me tem sido feito. Toma a teu cargo a minha causa! Tu viste como é terrível a vingança deles, todas as suas ciladas contra mim. Senhor, tu ouviste os seus insultos, todas as suas ciladas contra mim, aquilo que os meus inimigos sussurram e murmuram o tempo todo contra mim. Olha para eles! Sentados ou em pé, zombam de mim com as suas canções. Dá-lhes o que merecem, Senhor, conforme o que as suas mãos têm feito. Coloca um véu sobre os seus corações e esteja a tua maldição sobre eles. Persegue-os com fúria e elimina-os de debaixo dos teus céus, ó Senhor". (Lm 3.55-66 — NVI) Esta oração tem duas partes. Destaquemos que a segunda (versos 59-66) segue o mesmo diapasão das preces anteriores e pede justiça. O sofrimento da cidade, personificada na pessoa do poeta, foi agravada por insultos, ameaças, deboches e ciladas. Em sua oração, o poeta encontra uma solução para a sua dor: a eliminação dos seus inimigos, para que parem de provocar a dor. Neste sentido, o lamento se aproxima dos chamados cânticos de imprecação (ou xingamentos) que lemos no Saltério (Salmos 3 a 7, 9, 10, 12-14, 17, 22, 25, 28, 31, 35, 36, 38, 39, 41-44, 49 e 51-61, 63, 64, 70, 71, 73, 74, 77, 79, 80, 83, 85, 86, 88, 90, 94, 102, 109, 120, 122, 123, 125, 129, 130, 127, 139-143). A leitura destes lamentos deve considerar três pressupostos. O primeiro é que na literatura do Antigo Testamento as adversidades são sempre personificadas; assim, pedir o fim dos inimigos é pedir o fim dos problemas, atitude que qualquer pessoa moderna pode assumir. O segundo é que devem ser meditados junto com os ensinos de Jesus Cristo, que espera que amemos os inimigos, tendo ele mesmo perdoado os seus algozes. O terceiro é que o sofrimento, como megafone de Deus, uma vez que, na conhecida expresão de C.S. Lewis, ele “sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossos sofrimentos”. 1 Em outros termos, o sofrimento pode e deve nos levar a uma vida de mais intimidade com ele. Isto não quer dizer que Deus nos mande padecer (embora possa fazê-lo em casos absolutamente excepcionais) para o buscar. No caso do autor de Lamentações — e chegamos ao coração desta prece, que está na primeira parte (versos 55 a 58) — o poeta clamou ao Senhor do fundo do poço e o Senhor se aproximou dele, assumindo a sua defesa, a qual anunciou por meio de um sussurro suave e claro: "Não tenha medo". A partir daí, toda vez que o medo se agigantava, ele se lembrava dessa promessa divina como um muro de esperança, desenvolvendo uma certeza eloquente: "Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã". (Lm 3.23) Precisamos, como ensinou Paul Tournier, "aceitar com realismo a condição humana onde Deus nos pôs para que voltemos a ele, para que abandonemos cada dia mais o que existe de pecaminoso em nosso medo e para conservar seu aguilhão, na medida em que o próprio Deus o pôs em nosso coração a fim de nos darmos conta de nossa miséria”. 2 Estes cuidados nos permitem captar que o Deus antes percebido como distante e irado é agora o Deus que se aproxima, o Deus da misericórdia que nos ouve quando, mesmo no fundo do poço, recorremos a ele. E sua palavra, como aquela que Jesus proferiu às vésperas de ir embora, é: não tenha medo ou: "Não fiquem aflitos. Creiam em Deus e creiam também em mim" (João 14.1). "Não tenha medo" — escutamos este canto dos lábios divinos dezenas de vezes na sua Palavra. Reescutemos algumas: Quando nos dá uma tarefa, ele promete: . "O próprio Senhor irá à sua frente e estará com você; ele nunca o deixará, nunca o abandonará. Não tenha medo! Não se desanime!” (Dt 31.8 — NVI) . "Não fui eu que lhe ordenei? Seja forte e corajoso! Não se apavore, nem se desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar”. (Js 1.9 NVI) "Certa noite o Senhor falou a Paulo em visão: ‘Não tenha medo, continue falando e não fique calado, pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal ou feri-lo, porque tenho muita gente nesta cidade’”. (At 18.9-10 — NVI) Quando passamos por dificuldades, podemos ouvir sua voz: . "Por isso não tema, pois estou com você; não tenha medo, pois sou o seu Deus. Eu o fortalecerei e o ajudarei; eu o segurarei com a minha mão direita vitoriosa. (Is 41.10 — NVI) . "Não terá medo da calamidade repentina nem da ruína que atinge os ímpios, pois o Senhor será a sua segurança e o impedirá de cair em armadilha" (Pv 3.25-26 — NVI) Estas promessas decorrem daquilo que Deus é, não do que somos: . "Não tremam, nem tenham medo. Não anunciei isto e não o predisse muito tempo atrás? Vocês são minhas testemunhas. Há outro Deus além de mim? Não, não existe nenhuma outra Rocha; não conheço nenhuma”. (Is 44:8 — NVI) Jesus sempre animou os seus seguidores, com palavras de sabedoria e esperança: . "Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno. Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês. Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados. Portanto, não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais!" (Mt 10.28-31 — NVI)